sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Burrice e intolerância de mãos dadas



Tanto no caso exposto galhardamente por Paulo Tunhas, em texto de extrema sagacidade e elegância sobre esses partidos de uma esquerda que já nem doutrinária é, desestabilizadora apenas, por maquiavelismo próprio em prática de sobrevivência, como no caso do texto de Luís Teixeira, sobre Salman Rushdie, escritor cujos “Versículos Satânicos” provocaram em tempos tanto estridor e a condenação à morte pelo sinistro Khomeini, que nunca esperaríamos que escapasse. Mas a polícia britânica soube protegê-lo. Dos excelentes  textos sobre más vivências e más memórias.
A cabeça de fora da caverna /premium
OBSERVADOR, 31/1/2019
Em cada bloquista há um lado Renato Alexandre (o personagem do programa do grande Bruno Aleixo). Um lado retardado, que traz consigo uma imensa irresponsabilidade. Em gente adulta seria impossível.
Toda a gente fala de assédio, hoje em dia: sexual, laboral, etc. Infelizmente, ninguém refere a forma mais comum e praticamente omnipresente: o assédio político-moral que a comunicação social pratica quotidianamente em nome da esquerda. Em relação à imprensa escrita, o cidadão comum tem mais meios de se proteger. Quanto à televisão, estamos praticamente indefesos. A propósito ou a despropósito (tornaram-se praticamente indistinguíveis), lá vem mais uma sobre “o Trump” ou sobre quem estiver mais na moda como encarnação do mal e lá somos pela enésima vez assediados pelo missionário de serviço. O que não deixa de ter resultados curiosos. Durante muito tempo, é verdade, irrita. A partir de certa altura, no entanto, faz mergulhar numa espécie de tédio difuso, num estado de triste torpor melancólico. Em excesso, o assédio gera a acédia.
Nestes casos, urge reagir e pôr a cabeça fora da caverna sobrelotada, esquecer por um bocado os encontrões dos humanos e dedicarmo-nos um pouco à contemplação. Não é por acaso que nesse livro único que é a Ética a Nicómaco, Aristóteles, que procede a um extenso e profundo elogio da vida política (a ética encontra-se dependente da política, ciência arquitectónica), acaba por reconhecer a superioridade da contemplação (teórica) sobre a acção (prática). No caso do filósofo, os breves estados máximos de contemplação (não podem nunca durar muito, porque a fadiga o impede) quase o assemelham a um Deus. Pessoalmente, não viso tão alto. É melhor evitar desilusões. Mas o aumento da atenção já é um bem. Como nos quadros do maravilhoso pintor alemão Carl Spitzweg (1808-1885), em que os personagens repetidamente concentram a sua atenção num livro ou fixam o olhar num objecto (um cacto, por exemplo). Faz bem pôr a cabeça de fora da caverna. E ouvir música, que é o que mais realiza em si a contemplação e exige precisamente uma atenção de que normalmente não dispomos. Tudo o que faça esquecer os ruídos da caverna, mesmo aqueles, bem intencionados, uma espécie de muzak, organizados pela enérgica empresa Afectos & Eventos, sediada em Belém.
Mas somos feitos de tal maneira que não resistimos por muito ao apelo da caverna e da mosca-jornal, como dizia O’Neill. E com o zumbido da mosca-jornal vêm o assédio e a acédia. Por estes dias, dois dos fundamentais pilares parlamentares do nosso governo, o PC e o Bloco, contribuíram generosamente, cada um ao seu modo, para a nossa melancolia. O caso do PC foi o mais significativo. Não me esqueço nunca da natureza totalitária da ideologia do PC nem das malfeitorias comunistas passadas. Mas há coisas que exigem uma espécie de memória sensível para serem convenientemente lembradas e às vezes os estímulos não chegam convenientemente até nós.
Desta vez chegaram. Ver os comunistas, em bloco, defenderem o tintinesco ditador Maduro, com a mais acabada língua de pau e a mais absoluta indiferença pelo sofrimento dos venezuelanos, gela a espinha. De repente, voltam na memória os tempos da defunta URSS e a cegueira militante face ao horror totalitário. O espectáculo, o espectáculo do absoluto fechamento das mentes a qualquer informação exterior, confina com o espectáculo da loucura, sem se identificar inteiramente com ele. Apesar de tudo, o “partido das paredes de vidro” não pode ser inteiramente constituído por alienados mentais. Mas há indubitavelmente um elemento de loucura na coisa. Uma loucura teórica, por assim dizer, com efeitos práticos. O desprezo absoluto pelo sofrimento humano que aquela gente exibe em nome do feliz futuro da humanidade é próprio de uma associação de criminosos.
O Bloco é sem dúvida mais pacato. As suas transgressões possuem uma natureza quase adolescente, evidente até no seu carácter verbal: “bosta da bófia” e coisas assim. Em cada bloquista há um lado Renato Alexandre (o personagem do programa do grande Bruno Aleixo). Um lado retardado, que traz consigo uma imensa irresponsabilidade. Não pretendo de forma alguma que tudo isso seja inocente e puramente espontâneo. Em gente adulta seria impossível. Há cálculo na coisa, sem dúvida, e há método. O Bloco não teria nunca chegado onde chegou sem cálculo e sem método. Mas tal como no PC a imunidade face ao sofrimento humano confina com a loucura, também no Bloco a sucessiva adopção de causas destinadas a assegurarem-lhe um palco mediático sempre renovável (desta vez a luta contra um racismo supostamente omnipresente na sociedade portuguesa) possui algo de regressivo em gente adulta.
O PC e o Bloco não seriam na verdade importantes se não fosse o PS. Porque quem, em seu são juízo, pode pensar que nada nos hábitos mentais do PC e do Bloco afecta o PS e o governo? A própria cabeça de António Costa, como o mostra a recente história da “cor da pele”, dá sérios sinais de estar infectada pelos costumes contíguos dos parceiros.
Bom, já basta de reflexões sobre a vida na caverna, sobre o assédio e a acédia. Não convém abusar da irrespirabilidade. Fora da caverna há pelo menos a música para ouvir. E seria ingratidão dizer que é pouco. Ponhamos, pois, a cabeça de fora.

COMENTÁRIOS
Meio Vazio: Muito bom, Paulo Tunhas. Mas não volte para a caverna (sim, pode ser o "jornal" - digamos - da Sic) sem o mínimo de precaução: habitue-se de novo às trevas e prepare-se para ser apedrejado...
António Sennfelt: Se é certo que, se não fosse o PS, o PCP e o BE não seriam importantes, o inverso também não é menos verdade! Donde se chega à ilação que o morbo deve ser atalhado na sua origem! 
Fernando Prata: Excelente! Descrição muito reveladora da pobreza de espírito demonstrada por elementos do PCP e BE. É evidente que, a pouco e pouco, o PS tem vindo a ser contaminado.
Jorge Trindade: Soberbo texto. Seria cómico se não houvesse quase 20% a votar neles. Assim é trágico.
Carlos Quartel: O PCP é a coerência absoluta. Celebrou a repressão na Hungria, na Checoslováquia , na Alemanha, banhos de sangue a tiros de canhão, que desmoronavam prédios, depois de destruir o rés-do-chão, indiferentes as centenas ou mesmo milhares de mortos indefesos. Foi e continua a ser amigo fiel da monarquia de loucos de Coreia do Norte, cantou loas aos assassinos psicopatas Che ou Fidel. Maduro é só mais um na lista. Tem a coerência dos talibans que destroem estátuas ou cassetes com música. Quanto a BE ainda acredito que algo se mova. Há sinais (poucos) de estarem a passar os efeitos dos cogumelos. A Catarina parou a psicose jamaicana, já não é mau ...

TERRORISMO
O melro de Rushdie /premium
LUIS TEIXEIRA
OBSERVADOR, 14/2/2019
Foi há 30 anos e Khomeini tinha uma razão mesquinha para lançar a fatwa que condenava Rushdie à morte: precisava de congregar à sua volta as multidões desiludidas com o fiasco da guerra com o Iraque.
1. Uma jornalista idiota telefonou-lhe a perguntar: “Qual é a sensação de saber que se foi condenado à morte pelo ayatollah Khomeini?” Ele respondeu: “Não é boa.” E pensou: “Sou um homem morto.” Foi assim que ele soube. Isto foi no mesmo dia em que Bruce Chatwin, que era amigo dele, foi a enterrar.
2. Ele não faltou ao funeral. Depois, quando chegou a casa da mãe do seu filho, a polícia britânica já estava lá. Da mesma forma aparentemente desorganizada mas firme com que resistiu a tantas outras ameaças, o país tomou conta dele. Dois pais que exigiram que o filho dele saísse da escola onde estavam os seus próprios filhos foram repreendidos pelo director da escola e o filho dele ficou. Os editores americanos dos seus livros também ficaram resolutamente do lado dele, apesar das ameaças de boicote. Amigos como Edward Said ficaram do lado dele.
3. Muitos outros afastaram-se dele. Editores adiaram edições. Jornais cancelaram entrevistas. Intelectuais manifestaram dúvidas: talvez ele devesse ter tido mais cuidado, mais respeito, porque quem era ele para ofender outras pessoas, etc. No fundo era um arrivista, um tipo a aproveitar-se da polémica para ganhar dinheiro, etc. O mundo está cheio de cobardes, prontos a pedir desculpa por serem pisados.
4. Khomeini tinha uma razão mesquinha para lançar a fatwa que condenava Rushdie à morte: precisava de congregar à sua volta as multidões desiludidas com o fiasco da guerra com o Iraque, doridas com a morte inútil dos seus filhos. Isso tornava-o humano e compreensível na sua crueldade brutal. Mas a gente que encheu as ruas de Londres e de dezenas de cidades muçulmanas pelo mundo para gritar contra ele, para rezar pela sua morte e para glorificar quem o matasse – essa gente não tinha nenhum motivo razoável, apenas cérebros cheios de ódio e estupidez.
5. “Quando [a mãe] Neguin Rushdie morreu, um jornal paquistanês [escreveu] que todos os que tinham estado no funeral dela deviam implorar perdão a Deus porque ela era mãe do autor apóstata.” Isto não foi dito numa conversa de café nem escrito nas redes sociais. Foi escrito num jornal.
6. Foi no dia 14 de fevereiro de 1989.
7. “Mais tarde, depois de iniciada a praga, é fácil às pessoas verem o primeiro melro como um prenúncio. Ao pousar nas barras, porém, é apenas um pássaro. Nos anos vindouros ele [compreenderá] que a sua história é … o momento em que o primeiro melro poisa. … Passar-se-ão mais doze anos até a história se ampliar e cobrir o céu … como um par de aviões a colidirem com edifícios altos.”
Todas as citações são de “Joseph Anton”, a autobiografia de Salman Rushdie. Que continua vivo, graças à polícia britânica.


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