Tanto no caso exposto galhardamente por Paulo Tunhas, em texto de extrema sagacidade e
elegância sobre esses partidos de uma esquerda que já nem doutrinária é, desestabilizadora
apenas, por maquiavelismo próprio em prática de sobrevivência, como no caso do
texto de Luís Teixeira, sobre Salman Rushdie, escritor cujos “Versículos Satânicos” provocaram em
tempos tanto estridor e a condenação à morte pelo sinistro Khomeini, que nunca
esperaríamos que escapasse. Mas a polícia britânica soube protegê-lo. Dos excelentes
textos sobre más vivências e más
memórias.
A cabeça de fora da caverna /premium
OBSERVADOR, 31/1/2019
Em
cada bloquista há um lado Renato Alexandre (o personagem do programa do grande
Bruno Aleixo). Um lado retardado, que traz consigo uma imensa
irresponsabilidade. Em gente adulta seria impossível.
Toda
a gente fala de assédio, hoje em dia: sexual, laboral, etc. Infelizmente,
ninguém refere a forma mais comum e praticamente omnipresente: o assédio
político-moral que a comunicação social pratica quotidianamente em nome da
esquerda. Em relação à imprensa escrita, o cidadão comum tem mais meios de se
proteger. Quanto à televisão, estamos praticamente indefesos. A propósito ou a
despropósito (tornaram-se praticamente indistinguíveis), lá vem mais uma sobre
“o Trump” ou sobre quem estiver mais na moda como encarnação do mal e lá somos
pela enésima vez assediados pelo missionário de serviço. O que não deixa de ter
resultados curiosos. Durante muito tempo, é verdade, irrita. A partir de certa
altura, no entanto, faz mergulhar numa espécie de tédio difuso, num estado de
triste torpor melancólico. Em excesso, o assédio gera a acédia.
Nestes
casos, urge reagir e pôr a cabeça fora da caverna sobrelotada, esquecer por um
bocado os encontrões dos humanos e dedicarmo-nos um pouco à contemplação.
Não é por acaso que nesse livro único que é a Ética a Nicómaco, Aristóteles,
que procede a um extenso e profundo elogio da vida política (a ética
encontra-se dependente da política, ciência arquitectónica), acaba por
reconhecer a superioridade da contemplação (teórica) sobre a acção (prática).
No caso do filósofo, os breves estados máximos de contemplação (não podem
nunca durar muito, porque a fadiga o impede) quase o assemelham a um Deus.
Pessoalmente, não viso tão alto. É melhor evitar desilusões. Mas o aumento da
atenção já é um bem. Como nos quadros do maravilhoso pintor alemão Carl
Spitzweg (1808-1885), em que os personagens repetidamente concentram a sua
atenção num livro ou fixam o olhar num objecto (um cacto, por exemplo). Faz bem
pôr a cabeça de fora da caverna. E ouvir música, que é o que mais realiza em si
a contemplação e exige precisamente uma atenção de que normalmente não
dispomos. Tudo o que faça esquecer os ruídos da caverna, mesmo aqueles, bem
intencionados, uma espécie de muzak, organizados pela enérgica empresa Afectos
& Eventos, sediada em Belém.
Mas
somos feitos de tal maneira que não resistimos por muito ao apelo da caverna
e da mosca-jornal, como dizia O’Neill. E com o zumbido da mosca-jornal
vêm o assédio e a acédia. Por estes dias, dois dos fundamentais pilares
parlamentares do nosso governo, o PC e o Bloco, contribuíram generosamente,
cada um ao seu modo, para a nossa melancolia. O caso do PC foi o mais
significativo. Não me esqueço nunca da natureza totalitária da ideologia do PC
nem das malfeitorias comunistas passadas. Mas há coisas que exigem uma espécie
de memória sensível para serem convenientemente lembradas e às vezes os
estímulos não chegam convenientemente até nós.
Desta
vez chegaram. Ver os comunistas, em bloco, defenderem o tintinesco ditador
Maduro, com a mais acabada língua de pau e a mais absoluta indiferença pelo
sofrimento dos venezuelanos, gela a espinha. De repente, voltam na memória os tempos da defunta
URSS e a cegueira militante face ao horror totalitário. O espectáculo, o
espectáculo do absoluto fechamento das mentes a qualquer informação exterior,
confina com o espectáculo da loucura, sem se identificar inteiramente com ele.
Apesar de tudo, o “partido das paredes de vidro” não pode ser inteiramente
constituído por alienados mentais. Mas há indubitavelmente um elemento de
loucura na coisa. Uma loucura teórica, por assim dizer, com efeitos práticos. O
desprezo absoluto pelo sofrimento humano que aquela gente exibe em nome do
feliz futuro da humanidade é próprio de uma associação de criminosos.
O
Bloco é sem dúvida mais pacato. As suas transgressões possuem uma natureza
quase adolescente, evidente até no seu carácter verbal: “bosta da bófia” e
coisas assim. Em cada bloquista há um lado Renato Alexandre (o personagem do
programa do grande Bruno Aleixo). Um lado retardado, que traz consigo uma
imensa irresponsabilidade. Não pretendo de forma alguma que tudo isso seja
inocente e puramente espontâneo. Em gente adulta seria impossível. Há cálculo
na coisa, sem dúvida, e há método. O Bloco não teria nunca chegado onde chegou
sem cálculo e sem método. Mas tal como no PC a imunidade face ao sofrimento
humano confina com a loucura, também no Bloco a sucessiva adopção de causas
destinadas a assegurarem-lhe um palco mediático sempre renovável (desta vez a
luta contra um racismo supostamente omnipresente na sociedade portuguesa)
possui algo de regressivo em gente adulta.
O
PC e o Bloco não seriam na verdade importantes se não fosse o PS. Porque quem,
em seu são juízo, pode pensar que nada nos hábitos mentais do PC e do Bloco
afecta o PS e o governo? A própria cabeça de António Costa, como o mostra a
recente história da “cor da pele”, dá sérios sinais de estar infectada pelos
costumes contíguos dos parceiros.
Bom,
já basta de reflexões sobre a vida na caverna, sobre o assédio e a acédia. Não
convém abusar da irrespirabilidade. Fora da caverna há pelo menos a música para
ouvir. E seria ingratidão dizer que é pouco. Ponhamos, pois, a cabeça de fora.
COMENTÁRIOS
Meio Vazio: Muito bom, Paulo Tunhas. Mas não volte
para a caverna (sim, pode ser o "jornal" - digamos - da Sic) sem o
mínimo de precaução: habitue-se de novo às trevas e prepare-se para ser
apedrejado...
António Sennfelt: Se
é certo que, se não fosse o PS, o PCP e o BE não seriam importantes, o inverso
também não é menos verdade! Donde se chega à ilação que o morbo deve ser
atalhado na sua origem!
Fernando Prata: Excelente! Descrição muito reveladora da pobreza de
espírito demonstrada por elementos do PCP e BE. É evidente que, a pouco e
pouco, o PS tem vindo a ser contaminado.
Jorge Trindade: Soberbo
texto. Seria cómico se não houvesse quase 20% a votar neles. Assim é trágico.
Carlos Quartel: O PCP é a coerência absoluta. Celebrou a repressão na
Hungria, na Checoslováquia , na Alemanha, banhos de sangue a tiros de canhão,
que desmoronavam prédios, depois de destruir o rés-do-chão, indiferentes as
centenas ou mesmo milhares de mortos indefesos. Foi e
continua a ser amigo fiel da monarquia de loucos de Coreia do Norte, cantou
loas aos assassinos psicopatas Che ou Fidel. Maduro é só mais um na lista. Tem a coerência dos
talibans que destroem estátuas ou cassetes com música. Quanto a BE
ainda acredito que algo se mova. Há sinais (poucos) de estarem a passar os
efeitos dos cogumelos. A Catarina parou a psicose jamaicana, já não é mau ...
TERRORISMO
O melro de Rushdie /premium
OBSERVADOR, 14/2/2019
Foi há 30 anos e Khomeini tinha uma
razão mesquinha para lançar a fatwa que condenava Rushdie à morte: precisava de
congregar à sua volta as multidões desiludidas com o fiasco da guerra com o
Iraque.
1.
Uma jornalista idiota telefonou-lhe a perguntar: “Qual é a sensação de saber
que se foi condenado à morte pelo ayatollah Khomeini?” Ele respondeu: “Não é
boa.” E pensou: “Sou um homem morto.” Foi assim que ele soube. Isto foi no
mesmo dia em que Bruce Chatwin, que era amigo dele, foi a enterrar.
2. Ele
não faltou ao funeral. Depois, quando chegou a casa da mãe do seu filho, a
polícia britânica já estava lá. Da mesma forma aparentemente desorganizada mas
firme com que resistiu a tantas outras ameaças, o país tomou conta dele. Dois
pais que exigiram que o filho dele saísse da escola onde estavam os seus
próprios filhos foram repreendidos pelo director da escola e o filho dele ficou.
Os editores americanos dos seus livros também ficaram resolutamente do lado
dele, apesar das ameaças de boicote. Amigos como Edward Said ficaram do lado
dele.
3. Muitos
outros afastaram-se dele. Editores adiaram edições. Jornais cancelaram
entrevistas. Intelectuais manifestaram dúvidas: talvez ele devesse ter tido
mais cuidado, mais respeito, porque quem era ele para ofender outras pessoas,
etc. No fundo era um arrivista, um tipo a aproveitar-se da polémica para ganhar
dinheiro, etc. O mundo está cheio de cobardes, prontos a pedir desculpa por
serem pisados.
4.
Khomeini tinha uma razão mesquinha para lançar a fatwa que condenava Rushdie à
morte: precisava de congregar à sua volta as multidões desiludidas com o fiasco
da guerra com o Iraque, doridas com a morte inútil dos seus filhos. Isso
tornava-o humano e compreensível na sua crueldade brutal. Mas a gente que
encheu as ruas de Londres e de dezenas de cidades muçulmanas pelo mundo para
gritar contra ele, para rezar pela sua morte e para glorificar quem o matasse –
essa gente não tinha nenhum motivo razoável, apenas cérebros cheios de ódio e
estupidez.
5. “Quando
[a mãe] Neguin Rushdie morreu, um jornal paquistanês [escreveu] que
todos os que tinham estado no funeral dela deviam implorar perdão a Deus porque
ela era mãe do autor apóstata.” Isto não foi dito numa conversa de café nem
escrito nas redes sociais. Foi escrito num jornal.
6. Foi
no dia 14 de fevereiro de 1989.
7. “Mais
tarde, depois de iniciada a praga, é fácil às pessoas verem o primeiro melro
como um prenúncio. Ao pousar nas barras, porém, é apenas um pássaro. Nos anos
vindouros ele [compreenderá] que a sua história é … o momento em que o primeiro
melro poisa. … Passar-se-ão mais doze anos até a história se ampliar e cobrir o
céu … como um par de aviões a colidirem com edifícios altos.”
Todas as citações são de
“Joseph Anton”, a autobiografia de Salman Rushdie. Que continua vivo, graças à
polícia britânica.
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