Não somos indiferentes ao mal,
o que me parece é que pertencemos a uma nação em que, mais do que explorar as
questões, aprofundando-as e habituando-nos a discutir-lhes os contornos,
fixando-lhes os dados, nos limitamos a um falazar subjectivo de repúdio ou
apreço, de pura parlação coscuvilheira e imprecisa, que a preguiça mental nos
impede de definir com rigor. Pertencemos antes àquela categoria de pessoas que
admiram as flores vagamente, sem lhes conhecer o nome, exaltando a paisagem na
sua globalidade - forjadora, sim, de arroubo lírico - mas não a amando nem
conhecendo, no pormenor da sua realidade. Como, de resto, nas questões da arte,
e por aí fora. Julgo que a nossa educação, durante séculos descuidada, tem a
ver com todos os problemas de paralisia social e económica que apontam João
Miguel Tavares e os seus comentadores, mas paralisia também
nos valores morais e cívicos, reflectindo uma despudorada ausência de
princípios, acrescida de uma descontrolada vaga de indisciplina e deseducação.
O certo é que nos sentimos viver num atoleiro, que sai continuamente hoje à luz,
pelo escândalo mediático, no despudor de tanta trafulhice e infâmia. Na sua
profissão de jornalista, João Miguel
Tavares habituou-se a investigar e a trazer à cena os casos da sua pesquisa
e da sua crítica. Admiramo-lo, na tentativa hercúlea de esclarecer e condenar.
Mas, assim como assim, a coisa está-nos na massa do sangue, tal como a
predilecção pelo álcool, em que saímos vencedores, segundo estatísticas
recentes. Pobre do nosso país!
OPINIÃO
Não ouça o mal, não fale do mal, não
veja o mal
Perante
tamanho escândalo na Caixa, alguém escuta um burburinho sequer vagamente
parecido com aquele que ouvimos quando o VAR falha um fora de jogo no
Porto-Benfica?
PÚBLICO,
29 de Janeiro de 2019
Se
alguém me perguntar qual é o grande problema de Portugal, aquele que mais
contribui para a sua paralisia social e estagnação económica, a minha escolha
não vai para a escassez de produtividade, nem para a falta de formação, nem
para o peso da dívida. O
maior problema português é a incapacidade em aprender com os erros cometidos,
em inscrever na memória colectiva as consequências dos grandes falhanços
nacionais, em reflectir seriamente sobre aquilo que se passa à nossa volta, e
em punir (seja politicamente, seja judicialmente) os responsáveis por falhanços
catastróficos.
A
grande tragédia portuguesa não está tanto no número e na dimensão das nossas
asneiras, mas na forma como elas adormecem num limbo de espanto e de
indignação, sem que jamais consigamos arrancar dali uma força transformadora,
que ao menos obrigue a que as coisas sejam diferentes no futuro e que os erros
do passado não se repitam. Ficamos todos a resmungar, estacionados no “como foi
possível?!?”, e nunca damos um passo em direcção ao mais importante de tudo:
analisar o que aconteceu para que não volte a acontecer.
Portugal é um dos maiores especialistas internacionais nesta espécie de
inimputabilidade, e o caso da Caixa Geral de Depósitos é um excelente exemplo
daquilo que estou a dizer. Nós já
conhecíamos os milhares de milhões de euros que lá tinham sido enterrados,
mas o relatório preliminar da auditoria à CGD é absolutamente chocante quanto aos métodos: são
empréstimos de centenas e centenas de milhões de euros feitos sem uma avaliação
séria do risco, ou contra o conselho das equipas que avaliaram esse risco, ou
sem garantias de quem pediu o dinheiro emprestado, ou sem a necessária
documentação. Não foi apenas um grande conjunto de
asneiras – foram procedimentos criminosos que delapidaram o património do banco
e exigiram aos contribuintes portugueses mais um esforço hercúleo na sua
recapitalização. O dinheiro que se esvaiu na Caixa não se deveu a negócios que
inesperadamente correram mal. Deveu-se a negócios que previsivelmente correram
mal.
Estes
são os factos. Que
consequências tiramos deles? Se depender
dos nossos políticos, da própria Caixa ou do Banco de Portugal, as
consequências são zero. Nicles. Nenhumas.
E nada – nem sequer os roubos colossais – é mais chocante do que isso. O banco
público português esbanjou quatro mil milhões de euros em seis anos, e não
parece haver um só grupo parlamentar genuinamente interessado em apurar até ao
último detalhe o que se passou. O
PS não quer
porque isso demonstra que a governação de Sócrates foi o maior assalto ao
Estado desde Alves dos Reis. O
PSD e o CDS querem pouco porque a CGD sempre foi o paraíso do Bloco Central. E o PCP e o Bloco não querem lá muito
porque bater em instituições públicas é coisa de neoliberais. Quem sobra? Quem nos defende? Quem analisa tudo isto
para que nunca mais volte a acontecer? Ninguém.
OK,
melhoraram-se alguns procedimentos internos no Banco de Portugal. A CGD está
mais abrigada de boys incompetentes.
E a auditoria segue para o Ministério Público, provavelmente para
concluir que a maior parte dos crimes já prescreveu. Mas, perante tamanho escândalo, alguém escuta um
burburinho sequer vagamente parecido com aquele que ouvimos quando o VAR falha
um fora de jogo no Porto-Benfica? Tal como os três macacos sábios, nós
somos aconselhados a não ouvir, a não ver e a não falar. Infelizmente, se de
macaco isto tem muito, de sábio não tem nada.
COMENTÁRIOS:
JORGE COSTA,
Terras do Norte... JMT,
mais uma vez um EXCELENTE!! artigo a tocar na ferida da nossa sociedade.
Raquel Azulay,
29.01.2019 " O PS não quer porque isso
demonstra que a governação de Sócrates foi o maior assalto ao Estado desde
Alves dos Reis. O PSD e o CDS querem pouco porque a CGD sempre foi o paraíso do
Bloco Central. E o PCP e o Bloco não querem lá muito porque bater em
instituições públicas é coisa de neoliberais. Quem sobra? Quem nos defende?
Quem analisa tudo isto para que nunca mais volte a acontecer? Ninguém." /
//// Certíssimo, JMT. Mantenha esta
admirável equidistância, caro JMT. Fica-lhe muito bem. Agora percebo porque é
que o Sr Presidente da Republica o convidou para as celebrações do 10 de Junho.
Fez muito bem. Congrats. :)
vpverissimo,
29.01.2019 : Tem muita razão, João Miguel. Mas que podemos nós, comuns
cidadãos, fazer para debelar esse cancro nacional? Nós só votamos e nada mais.
Mas vós jornalistas - tal como você e mais alguns fazem e muito bem - não devem
deixar morrer o assunto, e fazer com que essa corja de bandidos seja
expropriada de todos os bens e encerrada por muitos anos numa prisão de alta
segurança e poucas condições.
Célio Carreira,
29.01.2019: Concordo com o
autor. Em Portugal nada se inscreve, não existe memória colectiva, não se
aprende com experiências enriquecedoras nem se corrigem erros passados, apenas
se alimentam alguns traumas, para mal dos nossos pecados. Ecos de um salazarismo
bolorento ou, indo mais atrás, fruto de uma malapata de raiz sebastianista? José
Gil, no seu livro Portugal, Hoje - O Medo de Existir, afirma que somos o país
da não-inscrição. Os portugueses não conseguem inscrever no seu percurso colectivo
os factos mais marcantes da sua história, nem retirar das suas experiências bem
sucedidas ou falhadas o cimento para alicerçar o presente e o futuro do seu
país. Domina-nos um ressentimento vago, mas crescente, contra um inimigo
imaginário, que afinal reside apenas dentro de nós. A cura do mal não é fácil.
albergaselizete,
9.01.2019 : Os erros passados constituem a linha basilar de orientação
para os erros futuros. Que o diga a ex-banca portuguesa, a ex-PT, a ex-GALP, a
ex-EDP, etç. Começou com as ex-companhias de navegação, e ainda não parou. O
que é que se segue?
Célio Carreira,
30.01.2019 Meu caro, com os erros passados aprende-se a corrigir e a
orientar o futuro. Só voltam a cair no mesmo erro os burros (não desfazendo dos
simpáticos animais que assim se chamam). Aliás, por falar em animais
(irracionais), a própria natureza se encarrega de os fazer ganhar experiência e
emendar certos comportamentos que têm a ver com a sua sobrevivência. Se o bicho
Homem, que tem pensamento racional, não aprende nada com os erros, então é mais
burro do que se pensa (de novo não desfazendo desse simpático animal, que até é
bastante inteligente).
Manuel, Seixal Existe
um tipo de corrupção muito integrada na nossa sociedade e sobretudo no poder
político e administração pública que e quase impossível de provar mas também
mina a confiança: o favor, o lobby, o amiguismo na escolha dos lugares. Nomear
alguém por critérios de amizade ou preferências para um lugar onde vai ganhar
milhares, porque mais tarde irá retribuir o favor, ou alguém seu próximo, é um
dos principais cancros da nossa sociedade.
publico1234567 29.01.2019: "Quem sobra? Quem nos
defende? Quem analisa tudo isto para que nunca mais volte a acontecer?
Ninguém." - Os portugueses não votam? Para que serve o nulo em formato de
protesto ("branco" não porque pode ser aldrabado e "não
votar" é dar o nosso voto a quem "eles" quiserem, como já se viu
em eleições anteriores em que apareceram eleitores para votar e , como não era
usual fazerem-no, já tinha sido usado o seu número de eleitor para votar)
DNG, Lisboa 29.01.2019
"Portugal está em 10º lugar no ranking das democracias a nível mundial,
segundo o Relatório da Democracia de 2018, o segundo relatório anual do
projecto Variedades da Democracia (V-Dem), concretizado através de uma rede
global de investigadores e peritos com sede na Universidade de Gotemburgo, que
avalia a qualidade da democracia em 201 países de todo o mundo" in
Público. Nem tudo é mau segundo a liturgia do modo de vida de Jota...
Gnôthi
Sautónn: Europa, Paz e Democracia29.01.2019 CQB! Cáustico quanto baste. Diz-se por aí à
boca pequena que João Miguel Tavares é de direita. Pois que seja. Mas não tem
papas na língua. Espero que não soçobre e de um ou de outro modo, nem que com
muita diplomacia à mistura, demonstre a sua causticidade no próximo 10 de
Junho.
Carlos Brigida, Alges 29.01.2019
: É um artigo oportuno e coloca um tema / questão central:
como é que as sociedade aprendem, e porque umas aprendem mais ou melhor e
outras não !? A resposta é difícil e complexa. Há investigação feita e
publicada (sobretudo em língua inglesa) mas não seriamente integrada na nossa
discussão pública. Desde já uma achega, a aprendizagem ao nível de uma
sociedade não resulta de uma 'vontade de aprender' . Acontece por necessidade,
imposta por factores do ambiente económico, político e cultural, e
interioriza-se como vontade ... Mas mesmo com a nossa iliteracia e a pouca
necessidade e vontade de a superar, sempre é possível introduzir algumas
melhorias; no lugar onde os erros foram cometidos, mantendo as atenções ai
focadas e cometendo erros semelhantes ou piores fora da atenção mediática
AndradeQB, Porto 29.01.2019
:
De facto, a atitude liderante dos
portugueses faz lembrar alguém com cirrose hepática alcoólica a despejar
garrafas de bagaço goela abaixo. A partir de determinados níveis de degradação
já não há retorno. Como se começa a perceber, e como o alerta António Barreto
num seu artigo recente, ainda não vai ser desta.
Henrique Duarte,
Portugal 29.01.2019:
Bem resumida a essência do problema: «A
grande tragédia portuguesa não está tanto no número e na dimensão das nossas asneiras,
mas na forma como elas adormecem num limbo de espanto e de indignação, sem que
jamais consigamos arrancar dali uma força transformadora, que ao menos obrigue
a que as coisas sejam diferentes no futuro e que os erros do passado não se
repitam. Ficamos todos a resmungar, estacionados no “como foi possível?!?”, e
nunca damos um passo em direcção ao mais importante de tudo: analisar o que
aconteceu para que não volte a acontecer
OldVic, Música
do dia: "Haja o que houver" (Madredeus) 29.01.2019: “Mas, perante tamanho escândalo, alguém escuta um
burburinho sequer vagamente parecido àquele que ouvimos quando o VAR falha um
fora de jogo no Porto-Benfica?”: de modo nenhum, e por
causa desta imaturidade cívica continuamos a ser um país onde o mérito fica no
banco de trás, quando não fica na beira da estrada. E em última análise, a
culpa é nossa, porque o poder de mudar as coisas também é nosso. Se não o
usarmos, outros o farão, com ou sem legitimidade, e nós pagaremos a conta.
Manuel Dias, Lisboa 29.01.2019: Excelente análise. Mais uma vez a ilustração de que a
explicação mais sempre tende a ser a que está mais próxima da verdade.
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