sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

A fatalidade do nosso mal



Não somos indiferentes ao mal, o que me parece é que pertencemos a uma nação em que, mais do que explorar as questões, aprofundando-as e habituando-nos a discutir-lhes os contornos, fixando-lhes os dados, nos limitamos a um falazar subjectivo de repúdio ou apreço, de pura parlação coscuvilheira e imprecisa, que a preguiça mental nos impede de definir com rigor. Pertencemos antes àquela categoria de pessoas que admiram as flores vagamente, sem lhes conhecer o nome, exaltando a paisagem na sua globalidade - forjadora, sim, de arroubo lírico - mas não a amando nem conhecendo, no pormenor da sua realidade. Como, de resto, nas questões da arte, e por aí fora. Julgo que a nossa educação, durante séculos descuidada, tem a ver com todos os problemas de paralisia social e económica que apontam João Miguel Tavares e os seus comentadores, mas paralisia também nos valores morais e cívicos, reflectindo uma despudorada ausência de princípios, acrescida de uma descontrolada vaga de indisciplina e deseducação. O certo é que nos sentimos viver num atoleiro, que sai continuamente hoje à luz, pelo escândalo mediático, no despudor de tanta trafulhice e infâmia. Na sua profissão de jornalista, João Miguel Tavares habituou-se a investigar e a trazer à cena os casos da sua pesquisa e da sua crítica. Admiramo-lo, na tentativa hercúlea de esclarecer e condenar. Mas, assim como assim, a coisa está-nos na massa do sangue, tal como a predilecção pelo álcool, em que saímos vencedores, segundo estatísticas recentes. Pobre do nosso país!

OPINIÃO
Não ouça o mal, não fale do mal, não veja o mal
Perante tamanho escândalo na Caixa, alguém escuta um burburinho sequer vagamente parecido com aquele que ouvimos quando o VAR falha um fora de jogo no Porto-Benfica?
PÚBLICO, 29 de Janeiro de 2019

Se alguém me perguntar qual é o grande problema de Portugal, aquele que mais contribui para a sua paralisia social e estagnação económica, a minha escolha não vai para a escassez de produtividade, nem para a falta de formação, nem para o peso da dívida. O maior problema português é a incapacidade em aprender com os erros cometidos, em inscrever na memória colectiva as consequências dos grandes falhanços nacionais, em reflectir seriamente sobre aquilo que se passa à nossa volta, e em punir (seja politicamente, seja judicialmente) os responsáveis por falhanços catastróficos.
A grande tragédia portuguesa não está tanto no número e na dimensão das nossas asneiras, mas na forma como elas adormecem num limbo de espanto e de indignação, sem que jamais consigamos arrancar dali uma força transformadora, que ao menos obrigue a que as coisas sejam diferentes no futuro e que os erros do passado não se repitam. Ficamos todos a resmungar, estacionados no “como foi possível?!?”, e nunca damos um passo em direcção ao mais importante de tudo: analisar o que aconteceu para que não volte a acontecer.
Portugal é um dos maiores especialistas internacionais nesta espécie de inimputabilidade, e o caso da Caixa Geral de Depósitos é um excelente exemplo daquilo que estou a dizer. Nós já conhecíamos os milhares de milhões de euros que lá tinham sido enterrados, mas o relatório preliminar da auditoria à CGD é absolutamente chocante quanto aos métodos: são empréstimos de centenas e centenas de milhões de euros feitos sem uma avaliação séria do risco, ou contra o conselho das equipas que avaliaram esse risco, ou sem garantias de quem pediu o dinheiro emprestado, ou sem a necessária documentação. Não foi apenas um grande conjunto de asneiras – foram procedimentos criminosos que delapidaram o património do banco e exigiram aos contribuintes portugueses mais um esforço hercúleo na sua recapitalização. O dinheiro que se esvaiu na Caixa não se deveu a negócios que inesperadamente correram mal. Deveu-se a negócios que previsivelmente correram mal.
Estes são os factos. Que consequências tiramos deles? Se depender dos nossos políticos, da própria Caixa ou do Banco de Portugal, as consequências são zero. Nicles. Nenhumas. E nada – nem sequer os roubos colossais – é mais chocante do que isso. O banco público português esbanjou quatro mil milhões de euros em seis anos, e não parece haver um só grupo parlamentar genuinamente interessado em apurar até ao último detalhe o que se passou. O PS não quer porque isso demonstra que a governação de Sócrates foi o maior assalto ao Estado desde Alves dos Reis. O PSD e o CDS querem pouco porque a CGD sempre foi o paraíso do Bloco Central. E o PCP e o Bloco não querem lá muito porque bater em instituições públicas é coisa de neoliberais. Quem sobra? Quem nos defende? Quem analisa tudo isto para que nunca mais volte a acontecer? Ninguém.
OK, melhoraram-se alguns procedimentos internos no Banco de Portugal. A CGD está mais abrigada de boys incompetentes. E a auditoria segue para o Ministério Público, provavelmente para concluir que a maior parte dos crimes já prescreveu. Mas, perante tamanho escândalo, alguém escuta um burburinho sequer vagamente parecido com aquele que ouvimos quando o VAR falha um fora de jogo no Porto-Benfica? Tal como os três macacos sábios, nós somos aconselhados a não ouvir, a não ver e a não falar. Infelizmente, se de macaco isto tem muito, de sábio não tem nada.

COMENTÁRIOS:
JORGE COSTA, Terras do Norte...  JMT, mais uma vez um EXCELENTE!! artigo a tocar na ferida da nossa sociedade.
Raquel Azulay, 29.01.2019 " O PS não quer porque isso demonstra que a governação de Sócrates foi o maior assalto ao Estado desde Alves dos Reis. O PSD e o CDS querem pouco porque a CGD sempre foi o paraíso do Bloco Central. E o PCP e o Bloco não querem lá muito porque bater em instituições públicas é coisa de neoliberais. Quem sobra? Quem nos defende? Quem analisa tudo isto para que nunca mais volte a acontecer? Ninguém." / //// Certíssimo, JMT. Mantenha esta admirável equidistância, caro JMT. Fica-lhe muito bem. Agora percebo porque é que o Sr Presidente da Republica o convidou para as celebrações do 10 de Junho. Fez muito bem. Congrats. :)
Mario Coimbra, 29.01.2019: Parabéns JMT. Muito bom. Muito bom mesmo.
vpverissimo, 29.01.2019 : Tem muita razão, João Miguel. Mas que podemos nós, comuns cidadãos, fazer para debelar esse cancro nacional? Nós só votamos e nada mais. Mas vós jornalistas - tal como você e mais alguns fazem e muito bem - não devem deixar morrer o assunto, e fazer com que essa corja de bandidos seja expropriada de todos os bens e encerrada por muitos anos numa prisão de alta segurança e poucas condições.
Célio Carreira, 29.01.2019: Concordo com o autor. Em Portugal nada se inscreve, não existe memória colectiva, não se aprende com experiências enriquecedoras nem se corrigem erros passados, apenas se alimentam alguns traumas, para mal dos nossos pecados. Ecos de um salazarismo bolorento ou, indo mais atrás, fruto de uma malapata de raiz sebastianista? José Gil, no seu livro Portugal, Hoje - O Medo de Existir, afirma que somos o país da não-inscrição. Os portugueses não conseguem inscrever no seu percurso colectivo os factos mais marcantes da sua história, nem retirar das suas experiências bem sucedidas ou falhadas o cimento para alicerçar o presente e o futuro do seu país. Domina-nos um ressentimento vago, mas crescente, contra um inimigo imaginário, que afinal reside apenas dentro de nós. A cura do mal não é fácil.
albergaselizete, 9.01.2019 : Os erros passados constituem a linha basilar de orientação para os erros futuros. Que o diga a ex-banca portuguesa, a ex-PT, a ex-GALP, a ex-EDP, etç. Começou com as ex-companhias de navegação, e ainda não parou. O que é que se segue?
Célio Carreira, 30.01.2019 Meu caro, com os erros passados aprende-se a corrigir e a orientar o futuro. Só voltam a cair no mesmo erro os burros (não desfazendo dos simpáticos animais que assim se chamam). Aliás, por falar em animais (irracionais), a própria natureza se encarrega de os fazer ganhar experiência e emendar certos comportamentos que têm a ver com a sua sobrevivência. Se o bicho Homem, que tem pensamento racional, não aprende nada com os erros, então é mais burro do que se pensa (de novo não desfazendo desse simpático animal, que até é bastante inteligente).
Manuel, Seixal  Existe um tipo de corrupção muito integrada na nossa sociedade e sobretudo no poder político e administração pública que e quase impossível de provar mas também mina a confiança: o favor, o lobby, o amiguismo na escolha dos lugares. Nomear alguém por critérios de amizade ou preferências para um lugar onde vai ganhar milhares, porque mais tarde irá retribuir o favor, ou alguém seu próximo, é um dos principais cancros da nossa sociedade.
publico1234567 29.01.2019: "Quem sobra? Quem nos defende? Quem analisa tudo isto para que nunca mais volte a acontecer? Ninguém." - Os portugueses não votam? Para que serve o nulo em formato de protesto ("branco" não porque pode ser aldrabado e "não votar" é dar o nosso voto a quem "eles" quiserem, como já se viu em eleições anteriores em que apareceram eleitores para votar e , como não era usual fazerem-no, já tinha sido usado o seu número de eleitor para votar)
Raquel Azulay, 29.01.2019  A malta vota mas pouco ou nada muda.
DNG,  Lisboa 29.01.2019 "Portugal está em 10º lugar no ranking das democracias a nível mundial, segundo o Relatório da Democracia de 2018, o segundo relatório anual do projecto Variedades da Democracia (V-Dem), concretizado através de uma rede global de investigadores e peritos com sede na Universidade de Gotemburgo, que avalia a qualidade da democracia em 201 países de todo o mundo" in Público. Nem tudo é mau segundo a liturgia do modo de vida de Jota...
Gnôthi Sautónn:   Europa, Paz e Democracia29.01.2019 CQB! Cáustico quanto baste. Diz-se por aí à boca pequena que João Miguel Tavares é de direita. Pois que seja. Mas não tem papas na língua. Espero que não soçobre e de um ou de outro modo, nem que com muita diplomacia à mistura, demonstre a sua causticidade no próximo 10 de Junho.
Carlos Brigida, Alges 29.01.2019 :  É um artigo oportuno e coloca um tema / questão central: como é que as sociedade aprendem, e porque umas aprendem mais ou melhor e outras não !? A resposta é difícil e complexa. Há investigação feita e publicada (sobretudo em língua inglesa) mas não seriamente integrada na nossa discussão pública. Desde já uma achega, a aprendizagem ao nível de uma sociedade não resulta de uma 'vontade de aprender' . Acontece por necessidade, imposta por factores do ambiente económico, político e cultural, e interioriza-se como vontade ... Mas mesmo com a nossa iliteracia e a pouca necessidade e vontade de a superar, sempre é possível introduzir algumas melhorias; no lugar onde os erros foram cometidos, mantendo as atenções ai focadas e cometendo erros semelhantes ou piores fora da atenção mediática
AndradeQB, Porto 29.01.2019 : De facto, a atitude liderante dos portugueses faz lembrar alguém com cirrose hepática alcoólica a despejar garrafas de bagaço goela abaixo. A partir de determinados níveis de degradação já não há retorno. Como se começa a perceber, e como o alerta António Barreto num seu artigo recente, ainda não vai ser desta.
Henrique Duarte, Portugal 29.01.2019: Bem resumida a essência do problema: «A grande tragédia portuguesa não está tanto no número e na dimensão das nossas asneiras, mas na forma como elas adormecem num limbo de espanto e de indignação, sem que jamais consigamos arrancar dali uma força transformadora, que ao menos obrigue a que as coisas sejam diferentes no futuro e que os erros do passado não se repitam. Ficamos todos a resmungar, estacionados no “como foi possível?!?”, e nunca damos um passo em direcção ao mais importante de tudo: analisar o que aconteceu para que não volte a acontecer
OldVic, Música do dia: "Haja o que houver" (Madredeus) 29.01.2019: “Mas, perante tamanho escândalo, alguém escuta um burburinho sequer vagamente parecido àquele que ouvimos quando o VAR falha um fora de jogo no Porto-Benfica?”: de modo nenhum, e por causa desta imaturidade cívica continuamos a ser um país onde o mérito fica no banco de trás, quando não fica na beira da estrada. E em última análise, a culpa é nossa, porque o poder de mudar as coisas também é nosso. Se não o usarmos, outros o farão, com ou sem legitimidade, e nós pagaremos a conta.
Manuel Dias, Lisboa 29.01.2019: Excelente análise. Mais uma vez a ilustração de que a explicação mais sempre tende a ser a que está mais próxima da verdade.


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