Como Teresa de Sousa o descreve: jovem,
corajoso, condescendente e cedendo por vezes, por inteligência orientadora, mas
jamais desistindo, suportando os enxovalhos de um povo que, porque teve uma
pátria de filósofos da liberdade, se arroga o direito de, de tempos a tempos,
descer à rua a aniquilar as bastilhas do poder. Pareceu temível, e nós logo os
imitámos, os franceses, no folclore vistoso do amarelo em colete, com escassez de
filósofos mas não de gosto folgazão. Mas isto é só um aparte inócuo, pois que de
Macron se trata. Como sempre, Teresa de
Sousa revela seriedade e precisão na análise, não só das políticas mas dos
comportamentos políticos. Parece-me uma excelente síntese das motivações para
estes movimentos de protesto, que uma globalização económica desregulada provocou,
além de uma serena análise de um presidente jovem e dinâmico, que também
admiro.
ANÁLISE
A
coragem política de Emmanuel Macron
Nos mais diversos lugares da França, o
Presidente foi capaz de aguentar aquilo que pouca gente conseguiria.
24 de Fevereiro de 2019
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO, 24/2/17
1. É
relativamente fácil teorizar o fenómeno dos gilets jaunes. É
muito mais difícil enfrentá-los e combater as causas que levaram à sua erupção
violenta e inorgânica na sociedade francesa. Durante
anos, escreveu-se na melhor imprensa e nas melhores academias sobre as
consequências sociais e políticas de uma globalização económica desregulada,
permitida pela revolução tecnológica. Sobretudo nas sociedades
democráticas e desenvolvidas, essa globalização provocou a estagnação dos
rendimentos das classes médias – a esmagadora maioria da população, como
sabemos –, compensada em grande medida pela facilidade de acesso ao crédito,
que foi permitindo manter o seu relativo conforto durante muito tempo. A
crise financeira de 2008 e as suas duras consequências económicas puseram cobro
a este estado de coisas, fechando o crédito, acentuando as desigualdades ou
deixando-as à vista desarmada, aumentando a distância entre uma camada da
população com maior acesso ao conhecimento e à informação, que singrava sem
dificuldade neste novo mundo globalizado, e aqueles que foram deixados para trás,
ainda presos nas malhas das velhas indústrias produtivas, com menos acesso ao
conhecimento e mais distantes dos centros de poder onde as decisões políticas
se tomam.
Assistimos hoje, um pouco por toda a
Europa desenvolvida e democrática, à erupção política dessas realidades sociais
e económicas, precisamente quando os efeitos mais dramáticos da crise
financeira nas economias começaram a ser superados. É quase sempre assim, mesmo
que nos consiga apanhar sempre de surpresa. A explosão deste forte mal-estar
social faz-se sentir das mais diversas formas. Pode gerar movimentos
nacionalistas ou populistas, que cultivam os valores da nação protectora contra
os outros, da cristandade, da etnia ou as emoções de quem pura e simplesmente
se revolta contra o facto de ter sido deixado para trás. Atinge uma parte
significativa das classes médias, aliás, muito mais do que as camadas que são
consideradas estatisticamente pobres.
Em
França, traduziu-se num forte movimento inorgânico, que ultrapassa as
fronteiras partidárias, que aponta o dedo às elites que governam para si
próprias, que fez da violência de massas a sua arma preferencial para obrigar a
sociedade a olhar para ele. A sua raiva encontrou um alvo preferencial na
figura do Presidente – o representante perfeito de uma elite jovem, arrogante,
indiferente à vida das pessoas normais, que tinha decidido quebrar o molde da
velha política francesa e reformar o país mais irreformável do mundo. Compreende-se.
Foi o primeiro grande revés de Emmanuel Macron, que, com 39 anos, chegou à
ribalta, viu e venceu de uma forma que deixou as elites políticas europeias de
boca aberta. Sem entender exactamente aquilo que representava, fascinadas pelas
suas qualidades, atraídas pela sua ambição e pela sua capacidade de se afirmar
como a prova viva de que era possível vencer, negando qualquer cedência às
tentações nacionalistas, xenófobas, antieuropeias, retrógradas, que desafiavam
os partidos do mainstream europeu. Passou
a ser uma referência política, tal como Tony Blair já tinha sido para toda a
Europa no final do século passado e no início deste. Macron era o anti-Marine,
o anti-Orbán, o anti-Salvini e uma espécie de vacina contra o europessimismo.
Tinha anunciado ao que vinha: romper com o molde da velha esquerda contra a
velha direita e substituí-lo por uma nova oposição entre fechamento e abertura
– aos outros ou à Europa. Não foi certamente por acaso que, nas eleições
presidenciais de 2017, Marine Le Pen se definiu como a sua antítese, nem que
Viktor Orbán ou Matteo Salvini o tenham elegido como o seu verdadeiro
“inimigo”.
2. Quando os gilets jaunes irromperam nas ruas
de Paris, desafiando abertamente o seu poder e voltando a baralhar o
jogo político francês, a primeira tentação das elites mais instaladas foi de um
indisfarçável regozijo, com um leve sabor a vingança. A imprensa deu-o como
politicamente morto. A
tentação de colagem ao movimento foi inicialmente, ainda que brevemente,
irresistível. De Jen-Luc Mélenchon a Le Pen, passando pela liderança de “Os
Republicanos”. A violência sistemática e a rejeição de qualquer aproximação
política levou-os a arrepiar caminho. Não nos discursos a denunciar os erros
de Macron, mas na aproximação ao movimento. As sondagens comprovaram que não
valia a pena. Socialistas, radicais de esquerda ou centro-direita capitalizaram
zero. Le Pen capitalizou sem ter de sujar as mãos. A “República
em Marcha” do Presidente aguentou os resultados, mesmo que a popularidade de Macron tenha descido aos
confins da tabela habitual
dos ocupantes do Eliseu. Provisoriamente. Como se começa agora a ver.
A
imprensa, incluindo a de centro-esquerda, lançou-se igualmente numa série de
diatribes contra o Presidente, algumas justas, outras já muito gastas,
elegendo, mais do que as suas políticas, o seu estilo como o primeiro
responsável pela violência social. Conhecemos essas críticas. O Presidente Júpiter,
solitário no seu castelo de ameias douradas, distante do povo, arrogante.
Verdade? Talvez. Mas foram exactamente algumas dessas características que
acabaram por permitir-lhe dar a volta. Já a deu. “Macron
recuperou a iniciativa política”, é o que escrevem hoje muitos
analistas. Se vai ser capaz de retomar o controlo da política francesa e
europeia, ainda ninguém sabe. Mas esse é o mundo em que vivemos: incerto.
3. Apenas alguém com a
extrema juventude dos seus 40 anos, com a segurança de quem se acha o “primeiro
da classe” e de quem acredita com enorme convicção no caminho que escolheu para
restituir à França e à Europa a sua glória perdida, podia fazer o que ele fez. Os mais cínicos diriam – e disseram – que o “grande debate nacional” que resolveu lançar no
início de Janeiro era apenas uma saída política muito mais de forma do que de
conteúdo. Uma artimanha. Hoje, há já um balanço possível. Em primeiro lugar sobre
o próprio. Nos mais diversos lugares da França, o Presidente foi capaz de
aguentar aquilo que pouca gente conseguiria: seis ou sete horas de pé, sem
intermediários, de mangas arregaçadas, a responder ininterruptamente às
críticas, aos insultos, aos problemas, às questões, aos desesperos, expressos
das mais variadas formas por muita gente que respondeu ao seu desafio. É
preciso ser-se jovem e ser-se mesmo o “primeiro da classe” para aguentar. E é
preciso dispor da qualidade que hoje está mais ausente das lideranças
europeias: a coragem política. Por ele, já realizou oito debates. No país, já
foram organizados 2500 e recolhidas 850 mil sugestões e perguntas. O processo
continua até 15 de Março.
4. O
veredicto ainda não chegou. A natureza do movimento dos gilets
jaunes veio ao de cima, começando a decantar as águas – no movimento e na
sociedade. A violência praticada, não como um incidente, mas como um modo de
expressão, começa a afastar muita gente. Os ataques
anti-semitismo das últimas semanas, que visaram o filósofo judeu
Alain Finkielkraut ou cobriram de cruzes suásticas o rosto de Simone Veil,
levaram a França a reagir como quase sempre reage: ocupando a rua.
Falta saber o que Macron vai retirar do “grande debate nacional” para
tentar renovar a sua agenda política. Não se imagina que abandone as reformas,
mesmo que algumas se adivinhem ainda mais difíceis num ambiente mais
polarizado. Finalmente, as sondagens começaram a subir de forma sustentada.
5. António Costa tem toda a razão quando, na
convenção socialista do último fim-de-semana, escolheu três líderes
europeus para simbolizar a agenda “progressista” que defende para a Europa.
Alexis Tsipras, que converteu um “Bloco de Esquerda” grego numa força política
responsável e que foi capaz de ser o primeiro governo europeu a anunciar o seu
apoio à adesão da Macedónia do Norte à NATO. Leu bem. O primeiro-ministro sueco, Stefan
Lofven, social-democrata, que quer unir uma
tradição de boa gestão das contas públicas à recuperação de uma agenda social
europeia. Finalmente, Emmanuel
Macron que, com todos os seus defeitos e
qualidades, é aquilo que mais se aproxima de um líder com uma agenda aberta,
ambiciosa e europeia.
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