segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Um livro explosivo


De Jaime Nogueira Pinto – HEGEMONIA. O humanismo e a inteligência crítica, ao que parece. Como sempre.

A China não é a União Soviética: a transformação e o futuro de uma potência /premium

OBSERVADOR: Texto

O Observador faz a pré-publicação de um excerto de "Hegemonia", o novo livro de Jaime Nogueira Pinto, sobre os conflitos que moldaram a atualidade e a escalada da China enquanto país dominador.

26 set 2021

O protagonismo deHegemonia”, livro de Jaime Nogueira Pinto que é publicado pela Crítica a 28 de setembro, vai para os conflitos que construíram o mundo como o conhecemos hoje: a Guerra do Peloponeso, as Guerras Púnicas, as Guerras de Carlos V, as Guerras franco-britânicas, as Guerras da Alemanha e a Guerra Fria.

As causas e consequências de políticas e medidas com a hegemonia de um povo ou de um país parecem repetir-se ao longo dos tempos. A estratégia geopolítica parece estar continuamente assente numa relação quase primária com sentimentos vividos pela humanidade desde sempre.

Do passado para a actualidade, é o “frente-a-frente China – Estados Unidos da América a que hoje assistimos e que promete dominar o futuro”, que acaba por concentrar atenções. E é sobre este tema em particular o excerto de “Hegemonia” que o Observador publica. Onde está a China actualmente, qual a relação com o passado recente do país que as autoridades chinesas continuam a cultivar e que futuro podemos esperar.

"Hegemonia: 7 Duelos Pelo Poder Global", de Jaime Nogueira PInto (Crítica)

A falência da União Soviética ficou a dever‐se a dois factores essenciais: um foi o fracasso económico, em nada surpreendente para quem não seja um profundo adepto do marxismo‐leninismo; o outro foi o desaparecimento do terror, o único modo de manter a estabilidade numa sociedade em que fracassava o progresso económico. E quando Gorbachev tentou compensar o fim do medo com melhorias económicas, os americanos, em conluio com os sauditas, baixaram o preço do petróleo, que era a grande fonte dos recursos financeiros da União Soviética.

Ora, a China de Xi Jinping tem conseguido manter o equilíbrio entre um regime autoritário e policial, também graças à monitorização da população em grande escala, que desencoraja e pune a dissidência activa. Ao mesmo tempo, transformou materialmente a vida das grandes massas nas últimas três gerações.

Não se vê por isto que na República Popular da China possam ocorrer os grandes movimentos desestabilizadores que pareciam implícitos na retórica do secretário de Estado de Trump, Mike Pompeo.

O movimento liberalizador atingiu o seu ponto mais alto em 1988, no ano anterior a Tiananmen. Nesse ano foi possível exibir, na televisão oficial, uma série documental, A Elegia do Rio, de Wang Luxiang, que criticava a imagem tradicional da cultura confuciana e exibia a Muralha da China como símbolo de «um espírito de isolacionismo e defesa perante o mundo», contrastando o «amarelo» do rio chinês com o «azul» do mar ocidental. Isto traduzia uma certa aspiração de liberdade, crítica do imaginário tradicional e do autoritarismo do Partido Comunista. A série, difundida na CCTV (a televisão central chinesa), provocou grandes debates entre os quadros do Partido, que a avaliaram criticamente. Uma versão corrigida foi depois exibida. Mas com Tiananmen os debates e as polémicas terminaram com parte da equipa que produziu a série detida ou exilada.

Sem terem de recorrer ao grau de terror e à magnitude dos desastres humanos do maoísmo, o Partido Comunista e o presidente conseguiram manter e aperfeiçoar o aparelho de controlo interno, graças à evolução tecnológica, de que a China é líder.

Depois de Tiananmen, ainda voltou, nos anos de Hu Jintao, um autoritarismo suave. Há quem diga, entretanto, que a crise de 2007‐2009 terá sido interpretada em Pequim como um sinal prenunciador da decadência e próxima queda da Euro‐América capitalista. Tal foi proclamado pelo então primeiro‐ministro Wen Jiabao, que afirmou que «o Ocidente tinha falhado como guardião do sistema económico mundial e que a China tomaria um rumo diferente». Na realidade, a resposta chinesa na época da crise foi uma política keynesiana de construção de infra‐estruturas – aeroportos, ferrovias, grandes arranha‐céus urbanos. Não muito diferente das soluções capitalistas. Mas em 2012 deu‐se o escândalo de Bo Xilai e a chegada de Xi ao lugar de secretário do Partido e à sua política de progressiva concentração do poder até à grande consagração de 2018.

É interessante observar que, além de uma confirmação do nacionalismo chinês como um nacionalismo «defensivo», que reagiu ao século da humilhação, e da afirmação e centralização do poder do Partido sobre o Estado e do presidente Xi no Partido, tenha havido também, entre académicos e intelectuais chineses, a preocupação de fundamentar e legitimar teoricamente, através de uma teoria «iliberal» do Estado, o «socialismo com características chinesas». Um dos teóricos a que recorrem é, nem mais nem menos, «o jurista da coroa» do nacional‐socialismo, o jurista e filósofo político Carl Schmitt, que nas últimas duas décadas tem sido traduzido e estudado nos círculos do poder cultural da RPC.

Os schmittianos chineses são, além de Liu Xiaofeng, que o traduziu para mandarim, o especialista em literaturas Zhang Xudong e os juristas Gao Quanxi e Qi Zheng. Segundo Jack T. Reinhardt, «todos eles utilizam o pensamento político de Schmitt em diferentes projectos políticos para ajudar a consolidar a legitimidade da China e do PCC».

A China não recorre hoje à criação e exportação de partidos «chineses», como os partidos maoístas dos anos 60 e 70 do século passado. Mas, graças aos seus grandes investimentos em todos os continentes, incluindo na Europa e nos Estados Unidos, e ao Projecto das Rotas da Seda, criou grandes dependências e lealdades, precisamente entre as classes empresariais e políticas de todo o mundo.

Ao mesmo tempo, o modo como tem reprimido e dissuadido qualquer contestação ou reserva ao poder do Partido e à unidade do Estado leva a temer que, em situações de hegemonia exterior, venha a ser esse o regime de relações. E perante a extensão do domínio económico conseguido não será descabido pensar no aforismo de Lenine: «os capitalistas são tão estúpidos que nos hão‐de vender a corda com que os vamos enforcar».

Pequim tem insistido e praticado, nas relações internacionais, a retórica do diálogo e do multilateralismo, enquanto o «America First» da administração Trump chocava os «empresários de ilusões» europeus. Assim, a China acabou por receber a simpatia dos internacionalistas liberais, que se esqueceram – por conveniência ou ingenuidade – de que a China era um Estado «iliberal», como o comprovam o seu tratamento das minorias étnicas e religiosas e a sua actuação em Hong Kong.

Na luta pela hegemonia, é este o momento em que a China está, claramente, na posição de Estado em ascensão, de potência desafiante   ALEX PLAVEVSKI/EPA

Assim, culturalmente, a nova elite político‐intelectual chinesa, dominando bem as línguas e as culturas do Ocidente, pode optar por uma fundamentação segundo a vontade do príncipe, uma fundamentação que serve a legitimação do Partido, a liderança de Xi e os interesses da RPC.

Nos primeiros seis meses de 2021 deu‐se a grande mudança. Onde Trump desafiava os chineses sem cuidar muito da política dos aliados ocidentais, Biden retomava a clássica aplicação do multilateralismo liberal.

Na luta pela hegemonia, é este o momento em que a China está, claramente, na posição de Estado em ascensão, de potência desafiante.

E, ao que tudo indica, o novo líder dos Estados Unidos, do poder incumbente, apesar da profunda divisão ideológica e das mudanças na política interna, retoma a posição do seu antecessor, procurando, como mais‐valia, mobilizar os aliados, até agora marginalizados ou incomodados ideologicamente pela radical incorrecção de Donald Trump. E nem as profundas divisões internas americanas, com a administração Biden a ceder, por convicção ou por táctica, à agenda radical da esquerda do Partido Democrático, mais preocupada em subverter a América do que em conter a China, parecem retirar à contenção da ascensão da RPC o estatuto prioritário.

Será uma nova Guerra Fria? À partida poderá parecer que sim. Como ambos os contendores têm armas nucleares, químicas, bacteriológicas e até convencionais de alta destruição, o conflito armado directo, não sendo impossível, é pelo menos improvável. Além disso, talvez a área em que a China, o poder desafiante, está em maior desvantagem competitiva é precisamente a militar. Nas outras, na tecnológica e sobretudo na económica, em termos de paridade de poder de compra, já está em primeiro lugar. E em termos de rede de investimento e influência está muito avançada em continentes como a África e a América Latina, a sul do rio Grande.

Os Estados Unidos terão de tomar o cuidado de não se excederem no messianismo democrático para poderem erguer uma barreira eficaz a Pequim. O realismo das administrações Truman‐Eisenhower e Nixon‐Reagan, no princípio e no fim da Guerra Fria, pode ser uma boa fonte de inspiração. Na abertura a Pequim, Nixon e Kissinger designaram um inimigo principal, acolheram como aliados os Estados autoritários anticomunistas e aproveitaram as divisões e as brechas no então «campo socialista».

Não parece ser essa, para já, a política de Washington, que, com a hostilidade à Rússia de Putin, pode atirá‐la para uma aliança objectiva com a China.

O conflito Estados Unidos‐República Popular da China é essencialmente geopolítico e geoeconómico, não é ideológico. É claro que a ideologia conta, na medida em que o regime de Pequim, de tradição marxista‐leninista, é um regime de partido único que não admite qualquer espécie de contestação interna.

Mas, neste momento, nem Washington parece preocupar‐se muito em converter Pequim à democracia, nem Pequim em subverter os Estados Unidos. A confrontação vai fazer‐se essencialmente com base na competição económica, diplomática e estratégico‐militar; e, como noutros conflitos, os factores do medo, da honra e do interesse serão, como na outra Guerra Fria, determinantes para a aquisição e mobilização dos aliados. E, nas grandes coligações, se os protagonistas centrais – ou os seus líderes – podem ser sensíveis à honra e à glória, os aliados menores ou satélites movem‐se preferencialmente por medo ou interesse.

Neste tipo de conflitos de Guerra Fria ou Paz Quente, a contagem dos aliados é crucial. E muitos irão alinhar com aquele que vêem como provável vencedor. Voltando ao paralelo com a Guerra Fria americano‐soviética, a URSS, através do alinhamento ideológico, contava, através dos partidos comunistas, com uma espécie de «sexta coluna» nos países da NATO, especialmente nos europeus.

A China de hoje não tem partidos ideologicamente «chineses», mas tem uma enorme influência económica e financeira em todos os continentes. E os seus poderosos investimentos e ligações no exterior, incluindo nos Estados Unidos, criam, automaticamente, uma importante constituency. Embora a esmagadora maioria dos quadros e pessoas envolvidas não problematize a sua hierarquia de lealdades, é um factor a ter em conta no que se perfila como uma paz quente ou como uma guerra fria, em que os contornos e fronteiras das identidades estão envoltos na neblina da ambiguidade e da incerteza.

Voltamos também a ter de considerar os factores de hostilidade e agressão cultural, que contaram na confrontação entre o Ocidente e a URSS. Um desses factores era precisamente o pluralismo e a fragmentação de ideias, opiniões e comportamentos das sociedades livres do Ocidente «contra» a unidade e uniformidade do Leste. Os chineses estão muito atentos às divisões profundas que hoje existem nas sociedades euro‐americanas, sobretudo na sociedade norte‐americana, que o processo eleitoral de Novembro de 2020 mostrou extremamente radicalizada, ao ponto de persistirem dúvidas sobre a legalidade da eleição e a legitimidade do presidente eleito. A propaganda chinesa não tem deixado de noticiar estas divisões e conta com elas. E, quando confrontados com problemas de exclusão ou de violência étnica, por exemplo em Xinjiang, os chineses invocam a «opressão» em que vivem na América os negros. Para tal, usam nas suas críticas as mensagens e análises de grupos como o Black Lives Matter. E têm também vindo a usar argumentos da esquerda radical americana para justificar as próprias políticas repressivas, adaptando a defesa à linguagem progressista da América. Assim, em princípios de 2021, a Embaixada chinesa nos Estados Unidos descreveu deste modo o processo de esterilização que as autoridades de Pequim estavam a impor às mulheres uigures de Xinjiang:

Há estudos que mostram que, no processo de erradicação do extremismo, as mentalidades das mulheres uigures foram emancipadas e a igualdade de género e a saúde reprodutiva promovidas, acabando com a sua condição de máquinas de fazer bebés. Estão agora mais confiantes e independentes.327

Numa diplomacia que, geralmente, é lúcida e subtil na percepção do outro, notam‐se, no entanto, algumas avaliações grosseiras da sociedade norte‐americana, semelhantes àquelas de que Moscovo e os seus especialistas se serviam para dar o imperialismo americano por moribundo; avaliações então baseadas nas «contradições internas» da América e do Ocidente dos anos 60, aquando da luta pelos direitos civis e das divisões quanto à Guerra do Vietname.

Na Guerra Fria, os Estados Unidos tinham sobre a União Soviética duas claras vantagens: uma economia funcional, ou seja, uma economia de mercado, que, entretanto, ao longo de todo o conflito, acompanhou também os objectivos político‐estratégicos das administrações americanas; e uma clara liderança científica e tecnológica, por exemplo, com a Iniciativa de Defesa Estratégica, que foi decisiva na fase final do duelo Reagan‐Gorbachev.

O modelo político institucional interno – o pluralismo e a liberdade do Ocidente e o monopartidarismo fechado da URSS – acabava por se equilibrar nos choques de vantagens e desvantagens. Numa sociedade pluralista, com sociedade civil e livre expressão, sem as reservas do medo, a capacidade de decisão e de decisão informada pode ser maior, bem como a capacidade de adaptação a novas situações. Em contrapartida, os interesses nacionais estão sujeitos a flutuações de opinião e é necessária uma permanente acção de informação e contra‐informação para esclarecer a opinião pública quanto a esses interesses. O sistema parece funcionar e já ultrapassou grandes crises da República americana, como a do Vietname e a do Watergate, mas podia não ter funcionado e não as ter ultrapassado.

A China de Xi Jinping não é a União Soviética: tem uma economia que funciona, um vector científico‐tecnológico que não só funciona como pode equiparar‐se e até, nalguns domínios, adiantar‐se ao norte‐americano e criou uma rede de alianças expressas e tácitas, coincidindo com interesses económico‐financeiros de grupos e Estados, bem superior à rede soviética.

A China de Xi pretende ter, no plano geopolítico, um lugar adequado à sua importância histórica e económico‐social e, para o conseguir, tem mostrado imaginação e determinação. Veja‐se, por exemplo, a construção de ilhas artificiais no mar do Sul da China, ou o modo agressivo como tratou, nos Himalaias, a Índia de Modi, ou a supressão progressiva das liberdades e do regime de transição em Hong Kong. Sem falar dos avanços na área da inteligência artificial e do rápido desenvolvimento das Forças Armadas, da marinha de guerra e da indústria espacial.

A China de Xi Jinping não é a União Soviética: tem uma economia que funciona, um vector científico‐tecnológico que pode equiparar‐se e até, nalguns domínios, adiantar‐se ao americanos ROMAN PILIPEY/EPA

Um dos problemas dos Estados Unidos é o optimismo irrealista do pós‐Guerra Fria, que trouxe as visões exclusivamente economicistas da política, o peso de uma comunidade académica e mediática, refém das agendas radicais, e a reconversão, em termos de microcausas, do método analítico marxista‐leninista, tornando o país, sobretudo as suas elites, indolente e alheado do grande jogo da hegemonia.

A sombra do medo espalhado pela COVID‐19 (que custou a presidência a Donald Trump pelo modo inicialmente leviano como encarou, verbalmente, a pandemia) e as especulações à volta da origem do vírus contribuíram, a nível popular, para virar a opinião da maioria dos americanos contra a China. Num inquérito de 4 de Março de 2021, o Pew Research Center indicava que nove em cada dez americanos consideravam a China mais como um concorrente ou um inimigo do que como um parceiro. A guerra comercial e de tarifas foi acompanhada de uma imposição cruzada de sanções pessoais (como as que atingiram 28 altos funcionários da administração Trump, acusados de «preconceito e ódio contra a China», incluindo o secretário de Estado Mike Pompeo).

Mas Pequim não terá saído a ganhar com a eleição de Biden. Porque se o novo presidente moderou a linguagem e reverteu algumas das medidas sancionatórias e preventivas do seu antecessor, quanto a empresas e actividades chinesas nos EUA, alargou a cerca a Pequim aos aliados europeus, mais renitentes em alinhar com o presidente republicano, que quase os ignorava.

O último imperador

A Praça de Tiananmen, Praça da Porta da Paz Celeste, fica no centro de Pequim. É o santo dos santos da nova China comunista, fundada e proclamada ali por Mao Tsé‐Tung, em 1 de Outubro de 1949, depois da vitória sobre o Kuomintang de Chang Kai‐Chek.

Tiananmen estende‐se por mais de 50 hectares. O nome vem da Porta da Paz Celeste, que fica mais a norte e dá acesso à Cidade Proibida e que foi construída no tempo da construção do Palácio Imperial, erigido pelos Ming nos princípios do século XV.

A cidade imperial é um complexo de quase mil edifícios, 9000 quartos e salas, em 180 hectares. Daqui foi governado, ao longo de cinco séculos, o Império do Meio.

A História é decisiva quando tratamos da nação mais antiga do mundo. E Pequim, a capital do Império do Meio, da Paz Celestial, da Concórdia Eterna, foi depois invadida por expedições europeias e ocidentais, ou repetidamente «violada», na expressão de Bernard Brizay.

Em 1860, os anglo‐franceses saquearam o Palácio de Verão e, em 1900, invadiram mesmo a Cidade Proibida. Pierre Loti, oficial da Marinha e escritor romântico, viajante e aventureiro, a bordo do couraçado Le Redoutable, participou na Guerra dos Boxers. Sobre o sucedido naquele Agosto de 1900, escreveu, em Les Derniers Jours de Pékin:

Pequim acabou, o seu prestígio caiu, o seu mistério foi devassado à luz do dia […]. E esta cidade imperial era um dos últimos refúgios do desconhecido e do maravilhoso do mundo, uma das últimas alamedas das humanidades mais antigas, incompreensíveis para nós, quase fabuloso.

Eram «os últimos dias de Pequim» e os vencedores da hora, depois de derrotarem os boxers e libertarem as legações estrangeiras, para punir o ambíguo governo da imperatriz regente, Tse‐Hi, decidiram desferir uma suprema humilhação no orgulho chinês: às sete horas da manhã do dia 26 de Agosto de 1900, concentraram‐se os diplomatas estrangeiros, representantes das oito potências triunfantes, na Porta Sul da Cidade Proibida. E as tropas penetraram naquele santuário, no Gugong, como os chineses chamavam ao velho palácio, que assim, 40 anos depois, sofria a sorte do Palácio de Verão.

Todos os povos têm memórias do saque dos seus palácios de Verão e de Inverno, ou até das suas choupanas miseráveis, por conquistadores. Só que na China o saque veio depois da grandeza, veio nos séculos XIX e XX, graças à vantagem tecnoindustrial e militar dos bárbaros do Ocidente. E, no caso das Guerras do Ópio, sem justa causa: por pura cobiça e agressividade dos comerciantes ingleses da droga, que não queriam largar o mercado chinês.

Lembrá‐lo ajudará a perceber o que se passou no dia 1 de Julho de 2021, quando nessa mesma Praça de Tiananmen o presidente Xi Jinping fez a síntese do passado, do presente e do futuro da China, num quadro carregado de simbolismo, pompa e circunstância.

Ajudará também lembrar os textos fundamentais do velho Império do Meio, descodificados num clássico de Jean Levi, autor de Les Fonctionnaires Divins. Politique, Despotisme et Mystique en Chine Ancienne. A partir dos velhos textos da teoria chinesa do poder, geralmente pequenos contos de reinos paralelos e rivais, Levi procurou identificar as grandes linhas e princípios de ruptura e continuidade dos seus governantes.

Os «funcionários do céu» que povoam as narrativas – príncipes, reis, imperadores ou seus ministros e conselheiros – contam uma história do poder que, em muita coisa, é familiar ao Ocidente: de como as leis do conflito passaram do cerimonial e do respeito pelas regras do Céu à regra maquiavélica do lucro e do ganho sem olhar a meios; ou, na versão cristã, de praticar o mal menor para alcançar o bem maior. O progresso da economia e a passagem da pequena dimensão territorial, do microestado lendário, ao império levaram a China a valorizar a intendência e a topografia, bem como o comércio – e as suas regras de agarrar a oportunidade. «O momento» (shi), o tempo, é determinante «para vender ou para matar», as duas grandes actividades da época (designadas por uma mesma palavra, shi), e converte‐se num conceito‐chave das teorias políticas. Um conceito que abre a porta de todos os sucessos. Nos passos consagrados à guerra, o Guanzi, um grande tratado político‐filosófico do século vii a. C. atribuído a Guang Zhong, sublinha a importância do momento, mais decisivo ainda que a astúcia: «Na estratégia, o factor determinante é o momento; o factor acessório são os planos.»

Xi Jinping escolheu o espaço e o momento. Tem um imperativo estratégico que ultrapassa a mera competição económica daquelas três décadas discretas entre o fim do maoísmo, o arranque para a prosperidade, com o equilíbrio entre o centralismo do poder do Partido no Estado, e as liberdades mercantilistas para o país se desenvolver.

Agora o momento é outro: e ali, na praça sagrada, memória das humilhações e das grandezas, Xi deixa o fato de businessman e aparece com um fato à Mao, no meio dos outros altos dignitários que estão vestidos «à ocidental», como grandes empresários ou quadros políticos de uma qualquer democracia estabilizada.

Para o descendente dos funcionários divinos, o traje, os símbolos e o protocolo contam. Xi está agora em fato de combate. E na enorme praça há uma multidão multicolor, onde domina o vermelho do Partido.

É graças ao Partido que se realizaram todos os progressos económicos da velha China, lembra Xi. Mas não enjeita, nem nunca enjeitou, a herança do Grande Timoneiro, apesar de ele e a família terem sido vítimas da Revolução Cultural. E avisa os estrangeiros de que não se atrevam a incomodar ou a agredir a China: «quem tentar, vai esbarrar numa grande muralha de aço, forjada por mais de 1,4 mil milhões de chineses».

Não esquece Taiwan:

Resolver a questão de Taiwan e conseguir a reunificação completa da China é uma missão histórica e um compromisso inabalável do PCC. Devemos tomar medidas resolutas para derrotar completamente qualquer tentativa de independência de Taiwan e trabalhar em conjunto para criar um futuro brilhante para o rejuvenescimento nacional.

A 1 de Julho de 2021, na Praça de Tiananmen, o presidente Xi Jinping fez a síntese do passado, do presente e do futuro da China GETTY IMAGES

«E para tal», acrescenta o presidente, sempre disciplinada e entusiasticamente aclamado pelas 70 mil pessoas que enchem a Praça da Paz Celestial, «a China vai dotar as suas Forças Armadas de uma maior capacidade e de meios mais fiáveis… para acelerar a modernização da defesa nacional. Um país deve ter um exército forte.»

A linguagem não era nova. Xi repetia, em temas e estilo, o seu discurso de 1 de Outubro de 2019, nos 70 anos da tomada de poder por Mao Tsé‐Tung: «Não há força que possa abalar as fundações desta grande nação… Não há força que possa parar a marcha em frente da nação e do povo chinês», dissera então, terminando com uma evocação ao Partido e ao povo da China, com uma parada militar de 15 mil homens, 160 aviões e os novos mísseis Dongfeng-41, «capazes de atingir a América em 30 minutos».

No 1.º de Julho de 2021 foi ainda mais agressivo:

O povo chinês não vai, de modo algum, permitir que qualquer força estrangeira nos intimide, nos oprima, nos escravize… e se alguém tentar fazê‐lo vai ter de contar com cabeças partidas e sangue derramado perante a Grande Muralha de 1,4 mil milhões de chineses.

A mensagem ficou clara. Mas em que ponto estamos neste último duelo?

Uma semana depois do discurso de Xi, a 8 de Julho, a Oxford University Press publicava The Long Game – China’s Grand Strategy to Displace American Order. O título é elucidativo e o autor, Rush Doshi, professor em Harvard e um dos iniciadores da Brookings China Strategy Initiative, passou a fazer parte do National Security Council de Biden para a área do Indo‐Pacífico.

Doshi não partilha a tese do factor Xi, isto é, de que Xi Jinping quebra com a tradição mais moderada de Deng‐Jiang‐Hu. Defende antes que há uma grande estratégia chinesa para depor a ordem internacional americana dos últimos trinta anos, iniciada no fim da Guerra Fria. A crise de Tiananmen de 1989, a Primeira Guerra do Golfo e a queda da União Soviética, em 1991, levaram Pequim a uma estratégia cautelosa – iniciada pelo «esconder de capacidades e ganhar tempo» de Deng. A crise de 2007‐2009 foi para os chineses importante, como sinal revelador das fraquezas da América e do Ocidente. Para Doshi, o objectivo do grande «rejuvenescimento internacional» vem já de Hu Jintao e, mais do que à personalidade de Xi, este momento de afirmação e consolidação de «potência desafiante» deve‐se a um longo consenso no Partido.

Para Doshi, a grande política chinesa é uma só e é antiga; acontece é que, com a evolução da situação regional e internacional (o «momento» dos funcionários divinos), tem vindo a ganhar novas formas. E vai‐se adaptando ao hegemon, com quem ensaia os passos do duelo.

Há quem contra‐argumente que a intenção de Pequim ao desafiar a hegemonia americana não será a de substituir os Estados Unidos como potência dominante e menos ainda a de trocar a «ordem americana» por uma qualquer «ordem chinesa», em que a ideologia e as instituições estatais sejam decalcadas do actual regime de Pequim. É até possível que os chineses – de Deng a Xi – pretendam apenas, como dizia o sábio líder de Singapura Lee Kuan Yew, «partilhar este século em igualdade com os Estados Unidos» e ser mais do que «um membro honorário do Ocidente»; nem superior, nem subordinado: apenas igual.

No fim destes «sete duelos», não sei se devamos esperar que dois poderes «iguais» coexistam muito tempo, num mundo cada vez mais pequeno.

Na noite do dia 1 de Julho, em que, em Pequim, Xi e o Partido celebraram o centésimo aniversário da fundação do Partido Comunista da China, as tropas norte‐americanas abandonavam a base de Bagram. Faziam‐no pela calada da noite, sem avisarem os seus aliados afegãos. Tinham também libertado 5000 talibãs de uma prisão anexa de Bagram – que, entretanto, desapareceram. Joe Biden não quis falar da retirada e do que se seguiria: era o 4 de Julho e preferia falar de «coisas felizes».

As tropas americanas desligaram a energia e saíram. A sua retirada brusca do Afeganistão pode desencadear um processo semelhante ao do Vietname, em 1975, com sinais de pânico entre a população de Cabul e tentativas de sair do país, antes que cheguem os talibãs.

É difícil resistir, neste final, à comparação entre a ordem, a afirmação, a disciplina e a coesão na Praça de Tiananmen e a descoordenada saída das tropas americanas de Bagram, cosidas com a noite, como um bando de caçadores furtivos, abandonando viaturas, material, munições, aliados, deixando cair Cabul num cenário de debandada, confusão e caos.

Mas por mais tentador que seja comparar a força da nova China, reunida na Praça de Tiananmen, com a fraqueza de uma América que abandona o Afeganistão, a História mostra‐nos que a aparência de ordem e força ou a de desordem e fraqueza podem ser enganosas.

É difícil imaginar maior convergência de ordem, de força e de entusiasmo popular e melhor coreografia de povo e bandeiras, de águias e de marchas do que na chegada de Hitler a Nuremberga, em 1936, com o Mercedes do Führer passando entre a multidão.

Nessa mesma altura, os Estados Unidos sofriam ainda as consequências da Depressão, que estava na terceira vaga: em 1938 o PNB contraíra 10%, o desemprego subira para 20% e os desempregados – os homens‐sanduíche – passeavam‐se pela Broadway com letreiros «I Voted for Ham and Eggs» ou «I Believe in the Banks». Era grande a divisão ideológica das elites, entre os isolacionistas do «America First» e o próprio F. D. Roosevelt, que proclamava, no desfecho da crise de Praga, que os Estados Unidos não se juntariam a um bloco Stop Hitler. Dorothea Lange fixou as imagens desta América deprimida e depressiva; a América da sopa dos pobres de Chicago, financiada por Al Capone, da violência da polícia de Hoover contra os veteranos, das famílias migrantes e errantes, caminhando só Deus sabe para onde.

Mas foi esta sociedade lacerada e dividida, esta sociedade com extremos de riqueza e miséria, que, quando chegou a hora da guerra, venceu a que desfilava unida, disciplinada, ordeira, forte.

Talvez a liberdade tenha feito a diferença. Talvez ainda faça.

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