De Jaime
Nogueira Pinto – HEGEMONIA. O humanismo e a inteligência crítica, ao
que parece. Como sempre.
A China não é a União Soviética: a transformação
e o futuro de uma potência /premium
O Observador
faz a pré-publicação de um excerto de "Hegemonia", o novo livro de
Jaime Nogueira Pinto, sobre os conflitos que moldaram a atualidade e a escalada
da China enquanto país dominador.
26 set 2021
O
protagonismo de “Hegemonia”,
livro de Jaime Nogueira Pinto
que é publicado pela Crítica a 28 de setembro, vai para os conflitos que
construíram o mundo como o conhecemos hoje: a Guerra do
Peloponeso, as Guerras Púnicas, as Guerras de Carlos V, as Guerras
franco-britânicas, as Guerras da Alemanha e a Guerra Fria.
As causas e consequências de políticas
e medidas com a hegemonia de um povo ou de um país parecem repetir-se ao longo
dos tempos. A estratégia geopolítica parece estar continuamente assente numa
relação quase primária com sentimentos vividos pela humanidade desde sempre.
Do
passado para a actualidade, é o “frente-a-frente China – Estados
Unidos da América a que hoje assistimos e que promete dominar o futuro”, que acaba por concentrar atenções. E é sobre este
tema em particular o excerto de
“Hegemonia” que o Observador
publica. Onde está a China actualmente, qual a relação com o
passado recente do país que as autoridades chinesas continuam a cultivar e que
futuro podemos esperar.
▲"Hegemonia: 7 Duelos Pelo Poder Global", de Jaime Nogueira PInto
(Crítica)
A
falência da União Soviética
ficou a dever‐se a dois factores essenciais: um foi o fracasso
económico, em nada
surpreendente para quem não seja um profundo adepto do marxismo‐leninismo;
o outro foi o desaparecimento
do terror, o único
modo de manter a estabilidade numa sociedade em que fracassava o progresso
económico. E quando Gorbachev tentou compensar o fim do medo com melhorias
económicas, os americanos, em conluio com os sauditas, baixaram o
preço do petróleo, que era a grande fonte dos recursos financeiros da União
Soviética.
Ora,
a China de Xi Jinping tem
conseguido manter o equilíbrio entre um regime autoritário e policial, também
graças à monitorização da população em grande escala, que desencoraja e pune a
dissidência activa. Ao mesmo tempo, transformou materialmente a vida das
grandes massas nas últimas três gerações.
Não
se vê por isto que na República Popular da China possam ocorrer os grandes
movimentos desestabilizadores que pareciam implícitos na retórica do secretário de Estado de Trump, Mike Pompeo.
O movimento liberalizador atingiu
o seu ponto mais alto em 1988, no ano anterior a Tiananmen. Nesse ano foi possível exibir, na televisão
oficial, uma série documental, A Elegia do Rio, de Wang Luxiang,
que criticava a imagem tradicional da cultura confuciana e exibia a Muralha da
China como símbolo de «um espírito de isolacionismo e defesa perante o mundo»,
contrastando o «amarelo» do rio chinês com o «azul» do mar ocidental. Isto
traduzia uma certa aspiração de liberdade, crítica do imaginário tradicional e
do autoritarismo do Partido Comunista.
A série, difundida na CCTV (a
televisão central chinesa), provocou grandes debates entre os quadros do
Partido, que a avaliaram criticamente. Uma versão corrigida foi depois exibida. Mas com Tiananmen os debates e as polémicas
terminaram com parte da equipa que produziu a série detida ou exilada.
Sem
terem de recorrer ao grau de terror e à magnitude dos desastres humanos do
maoísmo, o Partido Comunista e o presidente conseguiram manter e aperfeiçoar o
aparelho de controlo interno, graças à evolução tecnológica, de que a China é
líder.
Depois de Tiananmen, ainda
voltou, nos anos de Hu Jintao, um autoritarismo suave. Há quem diga, entretanto, que a crise de 2007‐2009
terá sido interpretada em Pequim como um sinal prenunciador da decadência e
próxima queda da Euro‐América capitalista. Tal foi proclamado pelo então
primeiro‐ministro Wen
Jiabao, que afirmou
que «o Ocidente tinha falhado como guardião do sistema económico mundial
e que a China tomaria um rumo diferente».
Na realidade, a resposta chinesa na época da crise foi uma política
keynesiana de
construção de infra‐estruturas – aeroportos, ferrovias, grandes arranha‐céus
urbanos. Não
muito diferente das soluções capitalistas. Mas
em 2012 deu‐se o escândalo de Bo Xilai e a chegada de Xi ao lugar de secretário
do Partido e à sua política de progressiva concentração do poder até à grande
consagração de 2018.
É
interessante observar que, além de uma confirmação do nacionalismo chinês como um
nacionalismo «defensivo», que reagiu ao século da humilhação, e da afirmação e centralização
do poder do Partido sobre o Estado e do presidente Xi no Partido, tenha
havido também, entre académicos e intelectuais chineses, a preocupação de
fundamentar e legitimar teoricamente, através de uma teoria «iliberal» do Estado, o «socialismo
com características chinesas». Um dos
teóricos a que recorrem é, nem mais nem menos, «o jurista da coroa» do
nacional‐socialismo, o jurista e filósofo político Carl Schmitt, que nas últimas duas décadas tem sido traduzido e
estudado nos círculos do poder cultural da RPC.
Os schmittianos
chineses são, além de Liu Xiaofeng, que o traduziu para mandarim, o especialista em
literaturas Zhang Xudong e os juristas
Gao Quanxi e Qi Zheng. Segundo Jack
T. Reinhardt, «todos eles utilizam o pensamento político de Schmitt
em diferentes projectos políticos para ajudar a consolidar a legitimidade da
China e do PCC».
A China não recorre hoje à criação e exportação de partidos «chineses»,
como os partidos maoístas dos anos 60 e 70 do século passado. Mas, graças aos
seus grandes investimentos em todos os continentes, incluindo na Europa e nos
Estados Unidos, e ao Projecto das Rotas da Seda, criou grandes dependências e
lealdades, precisamente entre as classes empresariais e políticas de todo o
mundo.
Ao
mesmo tempo, o modo
como tem reprimido e dissuadido qualquer contestação ou reserva ao poder do
Partido e à unidade do Estado leva a temer que, em situações de hegemonia
exterior, venha a ser esse o regime de relações. E perante a extensão do domínio económico conseguido
não será descabido pensar no aforismo de Lenine: «os
capitalistas são tão estúpidos que nos hão‐de vender a corda com que os vamos
enforcar».
Pequim tem insistido e praticado, nas
relações internacionais, a retórica do diálogo e do multilateralismo, enquanto
o «America First» da administração Trump chocava os «empresários de ilusões»
europeus. Assim, a China acabou por receber a simpatia dos internacionalistas
liberais, que se esqueceram – por conveniência ou ingenuidade – de que a China
era um Estado «iliberal», como o comprovam o seu tratamento das minorias
étnicas e religiosas e a sua actuação em Hong Kong.
▲Na luta pela
hegemonia, é este o momento em que a China está, claramente, na posição de
Estado em ascensão, de potência desafiante
ALEX PLAVEVSKI/EPA
Assim,
culturalmente, a nova elite político‐intelectual chinesa, dominando bem as
línguas e as culturas do Ocidente, pode optar por uma fundamentação segundo a
vontade do príncipe, uma fundamentação que serve a legitimação do Partido, a
liderança de Xi e os interesses da RPC.
Nos primeiros seis meses de 2021
deu‐se a grande mudança. Onde Trump desafiava os chineses sem cuidar muito da
política dos aliados ocidentais, Biden retomava a clássica aplicação do
multilateralismo liberal.
Na luta pela hegemonia, é este o
momento em que a China está, claramente, na posição de Estado em ascensão, de
potência desafiante.
E,
ao que tudo indica, o novo líder dos Estados Unidos, do poder incumbente,
apesar da profunda divisão ideológica e das mudanças na política interna,
retoma a posição do seu antecessor, procurando, como mais‐valia, mobilizar os
aliados, até agora marginalizados ou incomodados ideologicamente pela radical
incorrecção de Donald Trump. E nem as profundas divisões internas
americanas, com a administração Biden a ceder, por convicção ou por táctica, à
agenda radical da esquerda do Partido Democrático, mais preocupada em subverter
a América do que em conter a China, parecem retirar à contenção da ascensão da
RPC o estatuto prioritário.
Será uma nova Guerra Fria? À partida poderá parecer que sim. Como ambos os
contendores têm armas nucleares, químicas, bacteriológicas e até convencionais
de alta destruição, o conflito armado directo, não sendo impossível, é pelo
menos improvável. Além disso, talvez a área em que a China, o poder desafiante,
está em maior desvantagem competitiva é precisamente a militar. Nas outras, na
tecnológica e sobretudo na económica, em termos de paridade de poder de compra,
já está em primeiro lugar. E em termos de rede de investimento e influência
está muito avançada em continentes como a África e a América Latina, a sul do
rio Grande.
Os Estados Unidos terão de tomar o cuidado de não se excederem no
messianismo democrático para poderem erguer uma barreira eficaz a Pequim. O realismo das administrações Truman‐Eisenhower
e Nixon‐Reagan, no princípio e no fim da Guerra Fria, pode ser uma boa fonte de
inspiração. Na
abertura a Pequim, Nixon e Kissinger designaram um inimigo principal, acolheram
como aliados os Estados autoritários anticomunistas e aproveitaram as divisões
e as brechas no então «campo socialista».
Não parece ser essa, para já,
a política de Washington, que, com a hostilidade à Rússia de Putin, pode
atirá‐la para uma aliança objectiva com a China.
O conflito Estados Unidos‐República Popular da China é essencialmente
geopolítico e geoeconómico, não é ideológico. É
claro que a ideologia conta, na medida em que o regime de Pequim, de tradição
marxista‐leninista, é um regime de partido único que não admite qualquer
espécie de contestação interna.
Mas,
neste momento, nem Washington parece preocupar‐se muito em converter Pequim à
democracia, nem Pequim em subverter os Estados Unidos. A confrontação vai fazer‐se essencialmente com
base na competição económica, diplomática e estratégico‐militar; e, como noutros conflitos, os factores do medo, da
honra e do interesse serão, como na outra Guerra Fria, determinantes para a
aquisição e mobilização dos aliados. E, nas grandes coligações, se os
protagonistas centrais – ou os seus líderes – podem ser sensíveis à honra e à
glória, os aliados menores ou satélites movem‐se preferencialmente por medo ou
interesse.
Neste tipo de conflitos de Guerra
Fria ou Paz Quente, a contagem dos aliados é crucial. E muitos irão alinhar com aquele que vêem como
provável vencedor. Voltando ao paralelo com a Guerra Fria americano‐soviética,
a URSS, através do alinhamento ideológico, contava, através dos partidos
comunistas, com uma espécie de «sexta coluna» nos países da NATO, especialmente
nos europeus.
A
China de hoje não tem partidos ideologicamente «chineses», mas tem uma enorme
influência económica e financeira em todos os continentes. E os seus poderosos
investimentos e ligações no exterior, incluindo nos Estados Unidos, criam, automaticamente,
uma importante constituency. Embora a esmagadora maioria dos quadros e pessoas
envolvidas não problematize a sua hierarquia de lealdades, é um factor a ter em
conta no que se perfila como uma paz quente ou como uma guerra fria, em que os
contornos e fronteiras das identidades estão envoltos na neblina da ambiguidade
e da incerteza.
Voltamos
também a ter de considerar os factores
de hostilidade e agressão cultural, que
contaram na confrontação entre o Ocidente e a URSS. Um desses factores era precisamente o
pluralismo e a fragmentação de ideias, opiniões e comportamentos das sociedades
livres do Ocidente «contra» a unidade e uniformidade do Leste. Os chineses estão muito atentos às divisões
profundas que hoje existem nas sociedades euro‐americanas, sobretudo na
sociedade norte‐americana, que o processo eleitoral de Novembro de 2020 mostrou
extremamente radicalizada, ao ponto de persistirem dúvidas sobre a legalidade
da eleição e a legitimidade do presidente eleito. A
propaganda chinesa não tem deixado de noticiar estas divisões e conta com elas.
E, quando confrontados com problemas de exclusão ou de violência étnica, por
exemplo em Xinjiang, os chineses invocam a «opressão» em que vivem na América
os negros. Para tal, usam
nas suas críticas as mensagens e análises de grupos como o Black
Lives Matter. E têm também vindo a usar argumentos da esquerda
radical americana para justificar as próprias políticas repressivas, adaptando
a defesa à linguagem progressista da América. Assim, em princípios de 2021, a
Embaixada chinesa nos Estados Unidos descreveu deste modo o processo de
esterilização que as autoridades de Pequim estavam a impor às mulheres uigures
de Xinjiang:
Há
estudos que mostram que, no processo de erradicação do extremismo, as
mentalidades das mulheres uigures foram emancipadas e a igualdade de género e a
saúde reprodutiva promovidas, acabando com a sua condição de máquinas de fazer
bebés. Estão agora mais confiantes e independentes.327
Numa
diplomacia que, geralmente, é lúcida e subtil na percepção do outro, notam‐se, no entanto, algumas avaliações grosseiras da
sociedade norte‐americana, semelhantes àquelas de que Moscovo e os seus
especialistas se serviam para dar o imperialismo americano por moribundo;
avaliações então baseadas nas «contradições internas» da América e do Ocidente
dos anos 60, aquando da luta pelos direitos civis e das divisões quanto à
Guerra do Vietname.
Na
Guerra Fria, os Estados
Unidos tinham sobre a União Soviética duas claras vantagens: uma
economia funcional, ou seja, uma economia de mercado, que, entretanto, ao longo de todo o conflito,
acompanhou também os objectivos político‐estratégicos das administrações
americanas; e uma clara liderança científica e tecnológica, por exemplo, com a Iniciativa de Defesa Estratégica,
que foi decisiva na fase final do duelo Reagan‐Gorbachev.
O
modelo político institucional interno – o pluralismo e a liberdade do
Ocidente e o monopartidarismo fechado da URSS –
acabava por se equilibrar nos choques de vantagens e desvantagens. Numa
sociedade pluralista, com sociedade civil e livre expressão, sem as reservas do
medo, a capacidade de decisão e de decisão informada pode ser maior, bem como a
capacidade de adaptação a novas situações. Em contrapartida, os interesses
nacionais estão sujeitos a flutuações de opinião e é necessária uma permanente
acção de informação e contra‐informação para esclarecer a opinião pública
quanto a esses interesses. O sistema parece funcionar e já ultrapassou grandes
crises da República americana, como a do Vietname e a do Watergate, mas podia
não ter funcionado e não as ter ultrapassado.
A China de Xi Jinping não é a
União Soviética: tem uma
economia que funciona, um vector científico‐tecnológico que não só funciona
como pode equiparar‐se e até, nalguns domínios, adiantar‐se ao norte‐americano
e criou uma rede de alianças expressas e tácitas, coincidindo com interesses
económico‐financeiros de grupos e Estados, bem superior à rede soviética.
A China de Xi pretende ter, no
plano geopolítico, um lugar adequado à sua importância histórica e
económico‐social e, para o conseguir, tem mostrado imaginação e determinação.
Veja‐se, por exemplo, a construção de ilhas artificiais no mar do Sul da
China, ou o modo agressivo como tratou, nos Himalaias, a Índia de Modi, ou a
supressão progressiva das liberdades e do regime de transição em Hong Kong.
Sem falar dos avanços na área da inteligência artificial e do rápido
desenvolvimento das Forças Armadas, da marinha de guerra e da indústria
espacial.
▲A China de Xi
Jinping não é a União Soviética: tem uma economia que funciona, um vector
científico‐tecnológico que pode equiparar‐se e até, nalguns domínios,
adiantar‐se ao americanos ROMAN PILIPEY/EPA
Um
dos problemas dos Estados Unidos é o optimismo irrealista do pós‐Guerra Fria,
que trouxe as visões exclusivamente economicistas da política, o peso de uma
comunidade académica e mediática, refém das agendas radicais, e a reconversão,
em termos de microcausas, do método analítico marxista‐leninista, tornando o
país, sobretudo as suas elites, indolente e alheado do grande jogo da
hegemonia.
A
sombra do medo espalhado pela COVID‐19 (que custou a presidência a Donald Trump
pelo modo inicialmente leviano como encarou, verbalmente, a pandemia) e as
especulações à volta da origem do vírus contribuíram, a nível popular, para
virar a opinião da maioria dos americanos contra a China. Num inquérito de 4 de
Março de 2021, o Pew Research Center indicava que nove em cada dez americanos
consideravam a China mais como um concorrente ou um inimigo do que como um
parceiro. A guerra comercial e de tarifas foi acompanhada de uma imposição
cruzada de sanções pessoais (como as que atingiram 28 altos funcionários da
administração Trump, acusados de «preconceito e ódio contra a China», incluindo
o secretário de Estado Mike Pompeo).
Mas Pequim não terá saído a ganhar com a
eleição de Biden. Porque se o novo presidente moderou a linguagem e reverteu
algumas das medidas sancionatórias e preventivas do seu antecessor, quanto a
empresas e actividades chinesas nos EUA, alargou a cerca a Pequim aos aliados
europeus, mais renitentes em alinhar com o presidente republicano, que quase os
ignorava.
O último imperador
A Praça de Tiananmen, Praça da Porta
da Paz Celeste, fica no centro de Pequim. É o santo dos santos da nova China
comunista, fundada e proclamada ali por Mao Tsé‐Tung, em 1 de Outubro de 1949,
depois da vitória sobre o Kuomintang de Chang Kai‐Chek.
Tiananmen
estende‐se por mais de 50 hectares. O nome vem da Porta da Paz Celeste, que fica mais a norte e dá acesso à Cidade Proibida e
que foi construída no tempo da construção do Palácio Imperial, erigido pelos Ming
nos princípios do século XV.
A cidade imperial é um complexo de
quase mil edifícios, 9000 quartos e salas, em 180 hectares. Daqui foi
governado, ao longo de cinco séculos, o Império do Meio.
A
História é decisiva quando tratamos da nação mais antiga do mundo. E Pequim,
a capital do Império do Meio, da Paz Celestial, da Concórdia Eterna, foi depois invadida por expedições europeias e
ocidentais, ou repetidamente «violada», na expressão de Bernard Brizay.
Em
1860, os anglo‐franceses saquearam o
Palácio de Verão e, em 1900, invadiram mesmo a Cidade Proibida. Pierre
Loti, oficial
da Marinha e escritor romântico, viajante e aventureiro, a bordo do couraçado
Le Redoutable, participou na Guerra dos Boxers. Sobre o sucedido naquele Agosto
de 1900, escreveu, em Les Derniers Jours de Pékin:
Pequim
acabou, o seu prestígio caiu, o seu mistério foi devassado à luz do dia […]. E
esta cidade imperial era um dos últimos refúgios do desconhecido e do
maravilhoso do mundo, uma das últimas alamedas das humanidades mais antigas,
incompreensíveis para nós, quase fabuloso.
Eram
«os últimos dias de Pequim» e os vencedores da hora, depois de derrotarem os
boxers e libertarem as legações estrangeiras, para punir o ambíguo governo da
imperatriz regente, Tse‐Hi, decidiram desferir uma suprema humilhação no
orgulho chinês: às sete horas da manhã do dia 26 de Agosto de 1900,
concentraram‐se os diplomatas estrangeiros, representantes das oito potências
triunfantes, na Porta Sul da Cidade Proibida. E as tropas penetraram naquele
santuário, no Gugong, como os chineses chamavam ao velho palácio, que assim, 40
anos depois, sofria a sorte do Palácio de Verão.
Todos
os povos têm memórias do saque dos seus palácios de Verão e de Inverno, ou até
das suas choupanas miseráveis, por conquistadores. Só que na China o saque veio
depois da grandeza, veio nos séculos XIX e XX, graças à vantagem
tecnoindustrial e militar dos bárbaros do Ocidente. E, no caso das
Guerras do Ópio, sem justa causa: por pura cobiça e agressividade dos
comerciantes ingleses da droga, que não queriam largar o mercado chinês.
Lembrá‐lo ajudará a perceber o que se
passou no dia 1 de Julho de 2021, quando nessa mesma Praça de Tiananmen o
presidente Xi Jinping fez a síntese do passado, do presente e do futuro da
China, num quadro carregado de simbolismo, pompa e circunstância.
Ajudará também lembrar os textos
fundamentais do velho Império do Meio, descodificados num clássico de Jean
Levi, autor de Les Fonctionnaires Divins. Politique, Despotisme et Mystique en
Chine Ancienne. A partir dos velhos textos da teoria chinesa do poder,
geralmente pequenos contos de reinos paralelos e rivais, Levi procurou identificar as grandes linhas e
princípios de ruptura e continuidade dos seus governantes.
Os «funcionários
do céu» que povoam as narrativas – príncipes,
reis, imperadores ou seus ministros e conselheiros – contam uma história do
poder que, em muita coisa, é familiar ao Ocidente: de como as leis do conflito passaram do cerimonial e do respeito pelas
regras do Céu à regra maquiavélica do lucro e do ganho sem olhar a meios; ou,
na versão cristã, de praticar o mal menor para alcançar o bem maior. O progresso da economia e a passagem da pequena
dimensão territorial, do microestado lendário, ao império levaram a China a
valorizar a intendência e a topografia, bem como o comércio – e as suas regras
de agarrar a oportunidade. «O momento» (shi), o tempo, é determinante «para
vender ou para matar», as duas grandes actividades da época (designadas por uma
mesma palavra, shi),
e converte‐se num conceito‐chave das teorias políticas. Um conceito que abre a
porta de todos os sucessos. Nos
passos consagrados à guerra, o Guanzi, um grande tratado político‐filosófico do século vii a.
C. atribuído a Guang Zhong,
sublinha a importância do momento, mais decisivo ainda que a astúcia: «Na
estratégia, o factor determinante é o momento; o factor acessório são os
planos.»
Xi Jinping escolheu o espaço e o
momento. Tem um imperativo estratégico que ultrapassa a mera competição
económica daquelas três décadas discretas entre o fim do maoísmo, o arranque
para a prosperidade, com o equilíbrio entre o centralismo do poder do Partido
no Estado, e as liberdades mercantilistas para o país se desenvolver.
Agora o momento é outro: e ali, na praça sagrada, memória das
humilhações e das grandezas, Xi deixa o fato de businessman e aparece com um
fato à Mao, no meio dos outros altos dignitários que estão vestidos «à
ocidental», como grandes empresários ou quadros políticos de uma qualquer
democracia estabilizada.
Para o descendente dos funcionários
divinos, o traje, os símbolos e o protocolo contam. Xi está agora em fato de
combate. E na enorme praça há uma multidão multicolor, onde domina o vermelho
do Partido.
É graças ao Partido que se
realizaram todos os progressos económicos da velha China, lembra Xi. Mas não
enjeita, nem nunca enjeitou, a herança do Grande Timoneiro, apesar de ele e a
família terem sido vítimas da Revolução Cultural. E avisa os estrangeiros de
que não se atrevam a incomodar ou a agredir a China: «quem tentar, vai esbarrar
numa grande muralha de aço, forjada por mais de 1,4 mil milhões de chineses».
Não esquece Taiwan:
Resolver a questão de Taiwan e conseguir
a reunificação completa da China é uma missão histórica e um compromisso
inabalável do PCC. Devemos tomar medidas resolutas para derrotar completamente
qualquer tentativa de independência de Taiwan e trabalhar em conjunto para
criar um futuro brilhante para o rejuvenescimento nacional.
▲A 1 de Julho de
2021, na Praça de Tiananmen, o presidente Xi Jinping fez a síntese do passado,
do presente e do futuro da China GETTY IMAGES
«E
para tal», acrescenta o presidente, sempre disciplinada e entusiasticamente
aclamado pelas 70 mil pessoas que enchem a Praça da Paz Celestial, «a China vai
dotar as suas Forças Armadas de uma maior capacidade e de meios mais fiáveis…
para acelerar a modernização da defesa nacional. Um país deve ter um exército
forte.»
A
linguagem não era nova. Xi repetia, em temas e estilo, o seu discurso de 1 de
Outubro de 2019, nos 70 anos da tomada de poder por Mao Tsé‐Tung: «Não há
força que possa abalar as fundações desta grande nação… Não há força que possa
parar a marcha em frente da nação e do povo chinês», dissera então, terminando
com uma evocação ao Partido e ao povo da China, com uma parada militar de 15
mil homens, 160 aviões e os novos mísseis Dongfeng-41, «capazes de atingir a
América em 30 minutos».
No 1.º de Julho de 2021 foi ainda
mais agressivo:
O
povo chinês não vai, de modo algum, permitir que qualquer força estrangeira nos
intimide, nos oprima, nos escravize… e se alguém tentar fazê‐lo vai ter de
contar com cabeças partidas e sangue derramado perante a Grande Muralha de 1,4
mil milhões de chineses.
A mensagem ficou clara. Mas em
que ponto estamos neste último duelo?
Uma
semana depois do discurso de Xi, a 8 de Julho, a Oxford University Press
publicava The Long Game – China’s Grand Strategy to Displace American
Order. O título é elucidativo e o autor, Rush
Doshi, professor em Harvard e um dos
iniciadores da Brookings China Strategy Initiative, passou a fazer parte do
National Security Council de Biden para a área do Indo‐Pacífico.
Doshi
não partilha a tese do factor Xi, isto é, de que Xi Jinping quebra com a
tradição mais moderada de Deng‐Jiang‐Hu. Defende antes que há uma grande
estratégia chinesa para depor a ordem internacional americana dos últimos
trinta anos, iniciada no fim da Guerra Fria. A crise de Tiananmen de 1989, a Primeira Guerra do
Golfo e a queda da União Soviética, em 1991, levaram Pequim a uma estratégia
cautelosa – iniciada pelo «esconder de capacidades e ganhar tempo» de Deng. A
crise de 2007‐2009 foi para os chineses importante, como sinal revelador das
fraquezas da América e do Ocidente. Para Doshi, o objectivo do grande
«rejuvenescimento internacional» vem já de Hu Jintao e, mais do que à
personalidade de Xi, este momento de afirmação e consolidação de «potência
desafiante» deve‐se a um longo consenso no Partido.
Para
Doshi, a grande política chinesa é uma só e é antiga; acontece é que, com a
evolução da situação regional e internacional (o «momento» dos funcionários
divinos), tem vindo a ganhar novas formas. E vai‐se adaptando ao hegemon, com
quem ensaia os passos do duelo.
Há
quem contra‐argumente que a intenção de Pequim ao desafiar a hegemonia
americana não será a de substituir os Estados Unidos como potência dominante e
menos ainda a de trocar a «ordem americana» por uma qualquer «ordem chinesa»,
em que a ideologia e as instituições estatais sejam decalcadas do actual regime
de Pequim. É até possível que os chineses – de Deng a Xi – pretendam apenas,
como dizia o sábio líder de Singapura Lee Kuan Yew, «partilhar este século em
igualdade com os Estados Unidos» e ser mais do que «um membro honorário do
Ocidente»; nem superior, nem subordinado: apenas igual.
No fim destes «sete duelos», não
sei se devamos esperar que dois poderes «iguais» coexistam muito tempo, num
mundo cada vez mais pequeno.
Na
noite do dia 1 de Julho, em que, em Pequim, Xi e o Partido celebraram o
centésimo aniversário da fundação do Partido Comunista da China, as tropas
norte‐americanas abandonavam a base de Bagram. Faziam‐no pela calada da noite,
sem avisarem os seus aliados afegãos. Tinham também libertado 5000 talibãs de
uma prisão anexa de Bagram – que, entretanto, desapareceram. Joe Biden não quis
falar da retirada e do que se seguiria: era o 4 de Julho e preferia falar de
«coisas felizes».
As tropas americanas desligaram a
energia e saíram. A sua retirada brusca do Afeganistão pode
desencadear um processo semelhante ao do Vietname, em 1975, com sinais de
pânico entre a população de Cabul e tentativas de sair do país, antes que
cheguem os talibãs.
É
difícil resistir, neste final, à comparação entre a ordem, a afirmação, a
disciplina e a coesão na Praça de Tiananmen e a descoordenada saída das tropas
americanas de Bagram, cosidas com a noite, como um bando de caçadores furtivos,
abandonando viaturas, material, munições, aliados, deixando cair Cabul num
cenário de debandada, confusão e caos.
Mas
por mais tentador que seja comparar a força da nova China, reunida na Praça de
Tiananmen, com a fraqueza de uma América que abandona o Afeganistão, a História
mostra‐nos que a aparência de ordem e força ou a de desordem e fraqueza podem
ser enganosas.
É
difícil imaginar maior convergência de ordem, de força e de entusiasmo popular
e melhor coreografia de povo e bandeiras, de águias e de marchas do que na
chegada de Hitler a Nuremberga, em 1936, com o Mercedes do Führer passando
entre a multidão.
Nessa
mesma altura, os Estados Unidos sofriam ainda as consequências da Depressão,
que estava na terceira vaga: em 1938 o PNB contraíra 10%, o desemprego subira
para 20% e os desempregados – os homens‐sanduíche – passeavam‐se pela Broadway
com letreiros «I Voted for Ham and Eggs» ou «I Believe in the Banks». Era
grande a divisão ideológica das elites, entre os isolacionistas do «America
First» e o próprio F. D. Roosevelt, que proclamava, no desfecho da crise de
Praga, que os Estados Unidos não se juntariam a um bloco Stop Hitler. Dorothea
Lange fixou as imagens desta América deprimida e depressiva; a América da sopa
dos pobres de Chicago, financiada por Al Capone, da violência da polícia de
Hoover contra os veteranos, das famílias migrantes e errantes, caminhando só
Deus sabe para onde.
Mas foi esta sociedade lacerada e
dividida, esta sociedade com extremos de riqueza e miséria, que, quando chegou
a hora da guerra, venceu a que desfilava unida, disciplinada, ordeira, forte.
Talvez a liberdade tenha feito a diferença. Talvez ainda faça.
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