É história antiga, bem ironizada por
Paulo Tunhas, essa do argueiro no olho alheio, que ofusca a trave do nosso. Mas
o nome – micrologia – diz bem do fenómeno actual que cada vez mais espicaça as
mentes da pequenez humana.
Introdução à micrologia /premium
O que pescam os micrólogos? Pescam
micro-agressões, que são o seu prato favorito. A sua característica principal,
como coisa distinta de uma agressão pura e simples, é o poder ser aquilo que
quisermos
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 16 set
2021
Por
estes dias, nada há que seja indiferente. Os comportamentos humanos, incluindo
os linguísticos (sobretudo os linguísticos), são analisados à lupa por
especialistas na detecção do erro e incorrigíveis apóstolos da perfeição. Chamemos-lhes
micrólogos, já que a
micrologia representa a atitude mental de tudo achar significativo, por mais
insignificante que a coisa pareça ao comum dos humanos.
O pulular de micrólogos por esse
mundo fora diz muito da perda de senso-comum que
afecta as nossas sociedades. Porque o
senso-comum, como lugar em que as diferenças de modos de ser e de pensar
parcialmente se atenuam, permitindo
assim um diálogo efectivo sobre o que, exactamente, nos é
comum, exige um largo espaço para a indiferença, que é uma
condição para o exercício da tolerância. Se esse espaço é reduzido, ou mesmo
anulado, o comum deixa de existir. Se tudo é investido de uma
importância extrema, se nada é indiferente, deixa de haver qualquer comunidade
de sentido. E a orientação dos indivíduos, obrigados a viverem num oceano de pequenas
diferenças, no qual pescam os micrólogos, torna-se impossível.
O
que é que pescam os micrólogos? Pescam
micro-agressões, que são o seu prato favorito. As grandes agressões, deixam-nas passar, porque
não convêm ao seu palato requintado. A característica principal de uma
micro-agressão, como coisa distinta de uma agressão pura e simples, é o ela
poder ser aquilo que quisermos. Cada um pode
encontrar, sem se esforçar muito, uma micro-agressão que particularmente o
magoe e insuportavelmente o entristeça. E fazer do combate a essa
micro-agressão uma bandeira que transporta para a vida e à qual, como nas
descobertas das ciências, pode associar o seu nome. Mas, atenção, uma
verdadeira micro-agressão não pode nunca ser demasiado óbvia, porque senão não
é descoberta nenhuma. Uma
micro-agressão demasiado óbvia é – obviamente – uma macro-agressão. As
macro-agressões não interessam. É preciso mais subtileza.
Tomemos
um caso particular. Eu, por exemplo, sou careca. Mas se eu disser que me sinto
agredido sempre que vejo magníficas exibições de vigor capilar em algum dos
meus concidadãos, sou simplesmente ridículo, ou, numa interpretação política (descabelada, é caso para
dizer), nutro por
Ferro Rodrigues o ódio intenso de um vulgar negacionista. Mas se eu não for vulgar e tiver verdadeiramente
capturado o espírito do tempo, tenho uma solução óptima. Basta-me assinalar
que a sociedade
assenta num capilarismo logocêntrico sistémico contra o qual urge lutar e que essa luta merece um
lugar de honra no quadro de uma verdadeira teoria interseccionalista da
sociedade. E, já agora,
que os laços entre o capilarismo e o
capitalismo merecem ser estudados por quem de direito, com generosos subsídios
europeus. Não fica
muito melhor – e nada vulgar? Obstar-se-á que assim ainda é mais ridículo.
De acordo. Mas as pessoas não reparam. E, se repararem, têm medo de o dizer,
não vão os outros pensar que não passam de capilaristas logocêntricos
sistémicos.
Apresso-me
a dizer que, pessoalmente, esta estratégia não me convém. A minha
escola é mais antiga – é a do profeta Eliseu.
Ia ele, vindo de Jericó, a caminho do Monte Carmelo, quando um bando de
crianças se pôs aos berros: “Anda, careca!”, ou qualquer coisa assim. O meu
mestre Eliseu, muito compreensivelmente, amaldiçoou-as. E logo apareceram,
vindas do nada, duas ferozes ursas que, sem saberem nada acerca do capilarismo
logocêntrico sistémico, mas agindo com o natural instinto justo dos animais,
mataram as 46 (acho que eram 46) criancinhas. O profeta Eliseu continuou, não
sei se ainda resmungando, mas certamente já habitado por uma grande paz
interior, o seu caminho em direcção ao Monte Carmelo. Eu sei que a história não
deve ser entendida literalmente. Mas, às vezes, a leitura literal aquece a
alma.
Além
de me permitir, por causa das ursas, falar de um livro maravilhoso que acabei
de ler e que recomendo com entusiasmo. É de um jornalista polaco
cuja existência por inteiro desconhecia, na grande tradição de Ryszard
Kapuscinski, que se chama Witold
Szablowski. O título do
livro, na tradução inglesa, é The
Dancing Bears. True Stories of People Nostalgic for Life Under
Tyranny. Divide-se em
duas partes. A primeira narra o modo como vários ciganos búlgaros foram
obrigados pela União Europeia a abdicar do seu ganha-pão, que consistia em
exibir os ursos que ensinaram (à custa de alguma violência e muito álcool –
é fácil, aparentemente, tornar um urso alcoólico) a “dançar” em aldeias e
cidades ou frente a turistas em estâncias de veraneio. Instalados num parque
natural, os ursos mantinham vários dos reflexos adquiridos na sua anterior
existência – dançando, por exemplo, para os visitantes do parque. A segunda parte
narra episódios da vida, depois da queda do comunismo, em vários países,
maioritariamente da chamada “Europa de Leste”. A analogia entre as duas
partes é complexa, mas Szablowski não força nunca as coisas e o livro é
verdadeiramente polifónico. Ouve-se o ponto de vista, por exemplo, dos
ciganos dos ursos dançarinos, que falam das relações afectivas que mantinham
com os ursos (mais do que um diz que eles “faziam parte da família”), ou das
mulheres que trabalham, ou trabalhavam (o original polaco data de 2014, a
tradução inglesa é de 2018), no Museu Estaline, em Gori, na Geórgia, e que
idolatram, ou idolatravam, Estaline, recusando-se a aceitarem qualquer vestígio
de maldade naquele homem tão bom para a família.
Uma
das coisas curiosas na história dos ursos é o facto de muitas das fêmeas se
chamarem “Isaura”. E porquê? Porque a novela brasileira, que eu ainda me
lembro de ver, “A Escrava Isaura”, passara na televisão búlgara. E que
melhor nome para uma ursa dançarina do que o dessa heroína? E, por esta via, chegamos ao nosso mundo contemporâneo
e aos problemas do tal “interseccionalismo” que, tudo mergulhando num oceano de
diferenças onde pululam os pescadores micrólogos, torna impossível um sentido
comum para a sociedade e uma orientação nela. Um dos
responsáveis do parque no qual os ursos libertos foram instalados conta que
nada os obrigava a pagar o que quer que fosse aos ciganos pelos ursos, mas que
o faziam por sentido de justiça e com medo que as associações de defesa dos
ciganos lhes colocassem problemas. Difícil
intersecção aqui entre os direitos dos animais e os das minorias étnicas. Mas,
indo além de Szablowski, não custa imaginar uma situação ainda pior, quer
dizer: mais complexa. E se os descendentes dos escravos brasileiros, à pala
da “Escrava Isaura”, exigissem um pedido público de desculpas aos ciganos
búlgaros por “apropriação cultural”? Já vi exigências mais insanas no capítulo
do que esta. E não digo mais, porque não quero estar a dar ideias a André
Ventura.
De
facto, o processo que preside a estas coisas obedece a regras que não são as do
saudável conflito social. São as regras da destruição do senso-comum que é
fundamental para que a sociedade, com todos os seus conflitos, subsista. A lógica do “interseccionalismo” – que é a lógica da
micrologia – não é uma lógica do conflito, é uma lógica da perda do sentido do
social. E é um processo que não conhece qualquer princípio de autolimitação. A
micrologia não conhece limites, e por isso conduz directamente à intolerância e
ao delírio.
E
fico por aqui, que quero começar a ler outro livro do Szablowski que
encomendei, How to Feed a Dictator, onde ele
fala com os cozinheiros de Fidel Castro, Saddam Hussein, Enver Hoxha, Idi Amin
e Pol Pot. Se for tão
bom como este, a minha raiva contra o capilarismo logocêntrico sistémico vai
amansar por uns dias. A banal curiosidade é inimiga da micrologia.
POLITICAMENTE
CORRETO SOCIEDADE
COMENTÁRIOS:
Tiago Figueiredo: Vá lá que por cá andamos em micro-agressões, enquanto lá para o
médio-oriente explodem-se pessoas. Por cá, o céu deve estar com falta de
estoque de virgens. Só há vinho verde. Com os movimentos sociais, foram-se as virgens e
vieram as Amazonas e o combate às agressões... e ainda a histeria das
micro-agressões. No Canadá, as Santa e Laica Inquisições uniram-se em amor, queimando livros
em simbólicos (e certamente muito pacíficos) rituais de purificação, reparação
e prevenção de micro-agressões. No Mundo Livre, a memória humana vai resistindo ao assalto pelas muito mais
cópias sobreviventes, hoje trancadas em cofres com o que sobra da herança
familiar; o broche da Avó e as alianças dos pais (era um desperdício
enterrá-las). Ontem, num micro-contra-ataque fulminante do Mundo Livre, Margarida
Marques viu o seu testemunho à vitória para a igualdade de direitos entre géneros, num contexto legislativo de
direito europeu que abrange a maioria senão a totalidade da população, reduzido
à teoria de identidade de género, referente
a minorias, partindo do uso da expressão "igualdade
de género". Não falta trabalho para micrólogos. Andrade QB: A forma de lidar com os
micrólogos deve ser a mesma da de lidar com os que dizem que a terra é plana ou
que não existe o COVID. Essa forma deveria ser a de serem tratados como
chanfrados que são. Isso não é feito porque existe muito boa gente a
aproveitar-se dos chanfrados para os seus obscuros interesses e, vai daí, em
vez de não ligarem aos chanfrados dão-lhes o melhor palco que conseguem. Claudia Mealha: Grande artigo! Fartei-me de rir
com a do profeta Eliseu! O mundo está cheio de gente ansiosa por se fazer ouvir
e ver - é a micro celebridade, virada para o umbigo, cheia da sua imaginada
importância. josé
maria: Por mim, acho
imensa piada àquele micrólogo paulista, que defende a superioridade ética das
forças armadas de Israel, enquanto se entretém a procurar o desvelamento
fenomenológico da "coisa em si" kantiana... Nada mais divertido do que
assistir a uma lição introdutória de micrologia, levada a cabo pelo
micrólogo-maior... Mlle
Pazagouche: Ora, nasci umas
décadas adiantada! Fora hoje e não me chamariam caixa de óculos, impunemente,
no liceu. Luís Rodrigues: É de facto da morte do senso comum que se trata. E não
vale a pena racionalizar: a facção que detém o poder, e o controlo da
informação em larga escala, fica capacitada para decretar quais as microqueixas
que são justas: são exactamente as que golpeiam a acção ou o prestígio dos
adversários. Mario
Areias: Parabéns por este
magnífico texto e pelo seu humor finíssimo. Tenho pena é que os micrólogos não
se sintam ridicularizados pelo seu texto. Mas, claro, é que, se por acaso, se
sentissem não seriam micrólogos e passariam a ser seres inteligentes. Mas como
a inteligência não está à venda no mercado... advoga diabo: As "malhas largas"
que PT defende são as que, p.e., levam Paulo Rangel a afirmar que a
homossexualidade é normal, apesar de o ter omitido durante anos e nada ter
feito em benefício dessa "normalidade". É atirar para debaixo do
tapete o elefante que está no meio da sala. Se ouvir PR foi constatar do enorme
poder da sua mente e pequenez do seu coração, PT lembra Lucas, mais depressa um
"micrólogo" passa no buraco da agulha que um insidioso é credível! Paulo Neves > advoga diabo: Não é a gritaria que normaliza seja o que for . É
quando a maioria fica em silêncio, porque finalmente deixou de ser assunto. Gonçalo Pombeiro: Excelente artigo! Carlos Quartel: Implacável análise à sociedade
de pigmeus que se vai construindo. As grandes questões não têm interesse,
perde-se tempo e energias falando de banalidades. Os
ursos que continuam dançando, mesmo depois de postos em liberdade, são um sério
aviso para as nossas fraquezas. A liberdade
não é valorizada por todos e muitos não dispensam o braço protector do estado,
do chefe, do soba, do poder, em resumo. Algo
está acontecendo e bem receio que seja irreversível. É lento, como lento é o
definhar ocidental, incapaz de repor os mortos e invadido por povos que de
democrático nada têm. Nuvens negras no
horizonte .............
Hipo Tanso: Grande, enorme e excelentíssimo artigo. Obrigado, PT. Afonso D'Orey: Como agora a maior parte dos
jovens não vai à tropa, nunca se chegam a fazer "Homens"; por isso a
maioria fica infantilizada, umas "florzinhas de estufa" que amuam e
fazem biras por tudo e por nada.. Andam na rua de calõezinhos até aos 50 anos.
Não são capazes de espetar um par punhadas naqueles que ultrapassam algum
limite. É por isso que a China já tomou algumas medidas para precaver o futuro.
Por cá os sinais da decadência dos cidadãos são cada vez mais evidentes e assim
seguiremos até à substituição total dos nativos por outros mais corajosos e
mais empreendedores que virão da Ásia, do Norte de África ou da Europa de
Leste. Não há mal nisso, mas quem tem a sorte de ter descendentes não pode
deixar de encarar o futuro de Portugal com algum cepticismo. Maria Teresa Dias: Excelente artigo!!! Américo Silva: Muitos se têm suicidado e
muitos têm sido assassinados por causa de micro agressões mil vezes repetidas.
Só que muitas vezes se aproveita para colocar o dedo fora da ferida, onde mais
convém e não onde mais dói. O baixinho careca não pode esperar o mesmo sucesso
do cidadão alto e espadaúdo, desde logo porque o segundo é assimilado aos godos
vencedores filhos de algo. Nas turmas das
escolas secundárias o problema inicia-se pelos dezasseis anos, onde começa um
favorecimento subliminar, primeiro das meninas mais altas consideradas mais
responsáveis, depois dos rapazes mais altos. Nas universidades tudo se
complica, a altura conta, o apelido conta, agravado por uma perda de confiança
produzida pelas relações intersexuais que penalizam os homens mais baixos e as
mulheres mais feias. Quando vais à procura de emprego, o impacto visual está
primeiro, a quem agrada tudo se desculpa, a quem não agrada tudo se aponta. As
louras e os homens altos têm ordenados maiores pela mesma tarefa. Se o macho
apresenta níveis baixos de testosterona tudo acaba na depressão da meia idade e
ficamos por aqui, se os níveis são altos há agressões e suicídios, ou as duas
coisas como no caso de Andreas Lubitz que despenhou intencionalmente um avião
contra os Alpes num incidente que matou todas as 150 pessoas que viajavam de
Barcelona para Duesseldorf. As pessoas que gritavam na queda eram iguais às que
continuamente o agrediram durante anos. Diz o povo: nem o grande é sempre
valente, nem o pequeno paciente. Paulo Neves > Américo Silva: E qual a solução? Cortar as pernas aos homens mais
altos e desfigurar as mulheres bonitas, dar choques eléctricos aos mais
inteligentes, para que tudo fique milimetricamente equalizado, como no conto de
Kurt Vonnegut? Carlos
Reis > Paulo Neves: À conta do seu comentário, descobri um autor que me
parece interessante, pela pesquisa que entretanto fiz. Já agora pode dizer qual
o nome do conto? Américo Silva > Paulo Neves: Cumprimentos. No caso deAndreas de 27 anos, que desde
os 14 anos sonhava ser piloto de longo curso e aos 20 anos era feliz, depois do
ocorrido cada um dos intervenientes fez o máximo por cinicamente sacudir a água
do capote, e se possível obter algum ganho. Os seus colegas chamavam-lhe o
André Tomate por ter sido auxiliar de cabina, e era frequentemente destratado
por colegas e auxiliares. Apesar de não ser homossexual era vítima de homofobia
e gozado sempre que entrava no avião. Pouco atraente, perdia a confiança dos
passageiros e o seu relacionamento com as mulheres também era prejudicado. O
acosso continuava nos eventos não profissionais. Não é preciso cortar as pernas
a ninguém, mas a falta de respeito mata. Como aquele condutor que descompõe e
bate todos os outros. Um dia leva um tiro. Não conhece nenhum caso? Eu conheço.
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