sexta-feira, 17 de setembro de 2021

As nugas da nossa efervescência


É história antiga, bem ironizada por Paulo Tunhas, essa do argueiro no olho alheio, que ofusca a trave do nosso. Mas o nome – micrologia – diz bem do fenómeno actual que cada vez mais espicaça as mentes da pequenez humana.

Introdução à micrologia /premium

O que pescam os micrólogos? Pescam micro-agressões, que são o seu prato favorito. A sua característica principal, como coisa distinta de uma agressão pura e simples, é o poder ser aquilo que quisermos

PAULO TUNHAS

OBSERVADOR, 16 set 2021

Por estes dias, nada há que seja indiferente. Os comportamentos humanos, incluindo os linguísticos (sobretudo os linguísticos), são analisados à lupa por especialistas na detecção do erro e incorrigíveis apóstolos da perfeição. Chamemos-lhes micrólogos, já que a micrologia representa a atitude mental de tudo achar significativo, por mais insignificante que a coisa pareça ao comum dos humanos.

O pulular de micrólogos por esse mundo fora diz muito da perda de senso-comum que afecta as nossas sociedades. Porque o senso-comum, como lugar em que as diferenças de modos de ser e de pensar parcialmente se atenuam, permitindo assim um diálogo efectivo sobre o que, exactamente, nos é comum, exige um largo espaço para a indiferença, que é uma condição para o exercício da tolerância. Se esse espaço é reduzido, ou mesmo anulado, o comum deixa de existir. Se tudo é investido de uma importância extrema, se nada é indiferente, deixa de haver qualquer comunidade de sentido. E a orientação dos indivíduos, obrigados a viverem num oceano de pequenas diferenças, no qual pescam os micrólogos, torna-se impossível.

O que é que pescam os micrólogos? Pescam micro-agressões, que são o seu prato favorito. As grandes agressões, deixam-nas passar, porque não convêm ao seu palato requintado. A característica principal de uma micro-agressão, como coisa distinta de uma agressão pura e simples, é o ela poder ser aquilo que quisermos. Cada um pode encontrar, sem se esforçar muito, uma micro-agressão que particularmente o magoe e insuportavelmente o entristeça. E fazer do combate a essa micro-agressão uma bandeira que transporta para a vida e à qual, como nas descobertas das ciências, pode associar o seu nome. Mas, atenção, uma verdadeira micro-agressão não pode nunca ser demasiado óbvia, porque senão não é descoberta nenhuma. Uma micro-agressão demasiado óbvia é – obviamente – uma macro-agressão. As macro-agressões não interessam. É preciso mais subtileza.

Tomemos um caso particular. Eu, por exemplo, sou careca. Mas se eu disser que me sinto agredido sempre que vejo magníficas exibições de vigor capilar em algum dos meus concidadãos, sou simplesmente ridículo, ou, numa interpretação política (descabelada, é caso para dizer), nutro por Ferro Rodrigues o ódio intenso de um vulgar negacionista. Mas se eu não for vulgar e tiver verdadeiramente capturado o espírito do tempo, tenho uma solução óptima. Basta-me assinalar que a sociedade assenta num capilarismo logocêntrico sistémico contra o qual urge lutar e que essa luta merece um lugar de honra no quadro de uma verdadeira teoria interseccionalista da sociedade. E, já agora, que os laços entre o capilarismo e o capitalismo merecem ser estudados por quem de direito, com generosos subsídios europeus. Não fica muito melhor – e nada vulgar? Obstar-se-á que assim ainda é mais ridículo. De acordo. Mas as pessoas não reparam. E, se repararem, têm medo de o dizer, não vão os outros pensar que não passam de capilaristas logocêntricos sistémicos.

Apresso-me a dizer que, pessoalmente, esta estratégia não me convém. A minha escola é mais antiga – é a do profeta Eliseu. Ia ele, vindo de Jericó, a caminho do Monte Carmelo, quando um bando de crianças se pôs aos berros: “Anda, careca!”, ou qualquer coisa assim. O meu mestre Eliseu, muito compreensivelmente, amaldiçoou-as. E logo apareceram, vindas do nada, duas ferozes ursas que, sem saberem nada acerca do capilarismo logocêntrico sistémico, mas agindo com o natural instinto justo dos animais, mataram as 46 (acho que eram 46) criancinhas. O profeta Eliseu continuou, não sei se ainda resmungando, mas certamente já habitado por uma grande paz interior, o seu caminho em direcção ao Monte Carmelo. Eu sei que a história não deve ser entendida literalmente. Mas, às vezes, a leitura literal aquece a alma.

Além de me permitir, por causa das ursas, falar de um livro maravilhoso que acabei de ler e que recomendo com entusiasmo. É de um jornalista polaco cuja existência por inteiro desconhecia, na grande tradição de Ryszard Kapuscinski, que se chama Witold Szablowski. O título do livro, na tradução inglesa, é The Dancing Bears. True Stories of People Nostalgic for Life Under Tyranny. Divide-se em duas partes. A primeira narra o modo como vários ciganos búlgaros foram obrigados pela União Europeia a abdicar do seu ganha-pão, que consistia em exibir os ursos que ensinaram (à custa de alguma violência e muito álcool – é fácil, aparentemente, tornar um urso alcoólico) a “dançar” em aldeias e cidades ou frente a turistas em estâncias de veraneio. Instalados num parque natural, os ursos mantinham vários dos reflexos adquiridos na sua anterior existência – dançando, por exemplo, para os visitantes do parque. A segunda parte narra episódios da vida, depois da queda do comunismo, em vários países, maioritariamente da chamada “Europa de Leste”. A analogia entre as duas partes é complexa, mas Szablowski não força nunca as coisas e o livro é verdadeiramente polifónico. Ouve-se o ponto de vista, por exemplo, dos ciganos dos ursos dançarinos, que falam das relações afectivas que mantinham com os ursos (mais do que um diz que eles “faziam parte da família”), ou das mulheres que trabalham, ou trabalhavam (o original polaco data de 2014, a tradução inglesa é de 2018), no Museu Estaline, em Gori, na Geórgia, e que idolatram, ou idolatravam, Estaline, recusando-se a aceitarem qualquer vestígio de maldade naquele homem tão bom para a família.

Uma das coisas curiosas na história dos ursos é o facto de muitas das fêmeas se chamarem “Isaura”. E porquê? Porque a novela brasileira, que eu ainda me lembro de ver, “A Escrava Isaura”, passara na televisão búlgara. E que melhor nome para uma ursa dançarina do que o dessa heroína? E, por esta via, chegamos ao nosso mundo contemporâneo e aos problemas do tal “interseccionalismo” que, tudo mergulhando num oceano de diferenças onde pululam os pescadores micrólogos, torna impossível um sentido comum para a sociedade e uma orientação nela. Um dos responsáveis do parque no qual os ursos libertos foram instalados conta que nada os obrigava a pagar o que quer que fosse aos ciganos pelos ursos, mas que o faziam por sentido de justiça e com medo que as associações de defesa dos ciganos lhes colocassem problemas. Difícil intersecção aqui entre os direitos dos animais e os das minorias étnicas. Mas, indo além de Szablowski, não custa imaginar uma situação ainda pior, quer dizer: mais complexa. E se os descendentes dos escravos brasileiros, à pala da “Escrava Isaura”, exigissem um pedido público de desculpas aos ciganos búlgaros por “apropriação cultural”? Já vi exigências mais insanas no capítulo do que esta. E não digo mais, porque não quero estar a dar ideias a André Ventura.

De facto, o processo que preside a estas coisas obedece a regras que não são as do saudável conflito social. São as regras da destruição do senso-comum que é fundamental para que a sociedade, com todos os seus conflitos, subsista. A lógica do “interseccionalismo” – que é a lógica da micrologia – não é uma lógica do conflito, é uma lógica da perda do sentido do social. E é um processo que não conhece qualquer princípio de autolimitação. A micrologia não conhece limites, e por isso conduz directamente à intolerância e ao delírio.

E fico por aqui, que quero começar a ler outro livro do Szablowski que encomendei, How to Feed a Dictator, onde ele fala com os cozinheiros de Fidel Castro, Saddam Hussein, Enver Hoxha, Idi Amin e Pol Pot. Se for tão bom como este, a minha raiva contra o capilarismo logocêntrico sistémico vai amansar por uns dias. A banal curiosidade é inimiga da micrologia.

POLITICAMENTE CORRETO  SOCIEDADE

COMENTÁRIOS:

Tiago Figueiredo: Vá lá que por cá andamos em micro-agressões, enquanto lá para o médio-oriente explodem-se pessoas. Por cá, o céu deve estar com falta de estoque de virgens. Só há vinho verde. Com os movimentos sociais, foram-se as virgens e vieram as Amazonas e o combate às agressões... e ainda a histeria das micro-agressões. No Canadá, as Santa e Laica Inquisições uniram-se em amor, queimando livros em simbólicos (e certamente muito pacíficos) rituais de purificação, reparação e prevenção de micro-agressões. No Mundo Livre, a memória humana vai resistindo ao assalto pelas muito mais cópias sobreviventes, hoje trancadas em cofres com o que sobra da herança familiar; o broche da Avó e as alianças dos pais (era um desperdício enterrá-las). Ontem, num micro-contra-ataque fulminante do Mundo Livre, Margarida Marques viu o seu testemunho à vitória para a igualdade de direitos entre géneros, num contexto legislativo de direito europeu que abrange a maioria senão a totalidade da população, reduzido à teoria de identidade de género, referente a minorias, partindo do uso da expressão "igualdade de género". Não falta trabalho para micrólogos.           Andrade QB: A forma de lidar com os micrólogos deve ser a mesma da de lidar com os que dizem que a terra é plana ou que não existe o COVID. Essa forma deveria ser a de serem tratados como chanfrados que são. Isso não é feito porque existe muito boa gente a aproveitar-se dos chanfrados para os seus obscuros interesses e, vai daí, em vez de não ligarem aos chanfrados dão-lhes o melhor palco que conseguem.          Claudia Mealha: Grande artigo! Fartei-me de rir com a do profeta Eliseu! O mundo está cheio de gente ansiosa por se fazer ouvir e ver - é a micro celebridade, virada para o umbigo, cheia da sua imaginada importância.             josé maria: Por mim, acho imensa piada àquele micrólogo paulista, que defende a superioridade ética das forças armadas de Israel, enquanto se entretém a procurar o desvelamento fenomenológico da "coisa em si" kantiana... Nada mais divertido do que assistir a uma lição introdutória de micrologia, levada a cabo pelo micrólogo-maior...           Mlle Pazagouche: Ora, nasci umas décadas adiantada! Fora hoje e não me chamariam caixa de óculos, impunemente, no liceu.         Luís Rodrigues: É de facto da morte do senso comum que se trata. E não vale a pena racionalizar: a facção que detém o poder, e o controlo da informação em larga escala, fica capacitada para decretar quais as microqueixas que são justas: são exactamente as que golpeiam a acção ou o prestígio dos adversários.           Mario Areias: Parabéns por este magnífico texto e pelo seu humor finíssimo. Tenho pena é que os micrólogos não se sintam ridicularizados pelo seu texto. Mas, claro, é que, se por acaso, se sentissem não seriam micrólogos e passariam a ser seres inteligentes. Mas como a inteligência não está à venda no mercado...            advoga diabo: As "malhas largas" que PT defende são as que, p.e., levam Paulo Rangel a afirmar que a homossexualidade é normal, apesar de o ter omitido durante anos e nada ter feito em benefício dessa "normalidade". É atirar para debaixo do tapete o elefante que está no meio da sala. Se ouvir PR foi constatar do enorme poder da sua mente e pequenez do seu coração, PT lembra Lucas, mais depressa um "micrólogo" passa no buraco da agulha que um insidioso é credível!            Paulo Neves > advoga diabo: Não é a gritaria que normaliza seja o que for . É quando a maioria fica em silêncio, porque finalmente deixou de ser assunto.           Gonçalo Pombeiro: Excelente artigo!               Carlos Quartel: Implacável análise à sociedade de pigmeus que se vai construindo. As grandes questões não têm interesse, perde-se tempo e energias falando de banalidades. Os ursos que continuam dançando, mesmo depois de postos em liberdade, são um sério aviso para as nossas fraquezas. A liberdade não é valorizada por todos e muitos não dispensam o braço protector do estado, do chefe, do soba, do poder, em resumo. Algo está acontecendo e bem receio que seja irreversível. É lento, como lento é o definhar ocidental, incapaz de repor os mortos e invadido por povos que de democrático nada têm. Nuvens negras no horizonte .............               Hipo Tanso: Grande, enorme e excelentíssimo artigo. Obrigado, PT.                Afonso D'Orey: Como agora a maior parte dos jovens não vai à tropa, nunca se chegam a fazer "Homens"; por isso a maioria fica infantilizada, umas "florzinhas de estufa" que amuam e fazem biras por tudo e por nada.. Andam na rua de calõezinhos até aos 50 anos. Não são capazes de espetar um par punhadas naqueles que ultrapassam algum limite. É por isso que a China já tomou algumas medidas para precaver o futuro. Por cá os sinais da decadência dos cidadãos são cada vez mais evidentes e assim seguiremos até à substituição total dos nativos por outros mais corajosos e mais empreendedores que virão da Ásia, do Norte de África ou da Europa de Leste. Não há mal nisso, mas quem tem a sorte de ter descendentes não pode deixar de encarar o futuro de Portugal com algum cepticismo.           Maria Teresa Dias: Excelente artigo!!!           Américo Silva: Muitos se têm suicidado e muitos têm sido assassinados por causa de micro agressões mil vezes repetidas. Só que muitas vezes se aproveita para colocar o dedo fora da ferida, onde mais convém e não onde mais dói. O baixinho careca não pode esperar o mesmo sucesso do cidadão alto e espadaúdo, desde logo porque o segundo é assimilado aos godos vencedores filhos de algo. Nas turmas das escolas secundárias o problema inicia-se pelos dezasseis anos, onde começa um favorecimento subliminar, primeiro das meninas mais altas consideradas mais responsáveis, depois dos rapazes mais altos. Nas universidades tudo se complica, a altura conta, o apelido conta, agravado por uma perda de confiança produzida pelas relações intersexuais que penalizam os homens mais baixos e as mulheres mais feias. Quando vais à procura de emprego, o impacto visual está primeiro, a quem agrada tudo se desculpa, a quem não agrada tudo se aponta. As louras e os homens altos têm ordenados maiores pela mesma tarefa. Se o macho apresenta níveis baixos de testosterona tudo acaba na depressão da meia idade e ficamos por aqui, se os níveis são altos há agressões e suicídios, ou as duas coisas como no caso de Andreas Lubitz que despenhou intencionalmente um avião contra os Alpes num incidente que matou todas as 150 pessoas que viajavam de Barcelona para Duesseldorf. As pessoas que gritavam na queda eram iguais às que continuamente o agrediram durante anos. Diz o povo: nem o grande é sempre valente, nem o pequeno paciente.            Paulo Neves > Américo Silva: E qual a solução? Cortar as pernas aos homens mais altos e desfigurar as mulheres bonitas, dar choques eléctricos aos mais inteligentes, para que tudo fique milimetricamente equalizado, como no conto de Kurt Vonnegut?          Carlos Reis > Paulo Neves: À conta do seu comentário, descobri um autor que me parece interessante, pela pesquisa que entretanto fiz. Já agora pode dizer qual o nome do conto? Américo Silva > Paulo Neves: Cumprimentos. No caso deAndreas de 27 anos, que desde os 14 anos sonhava ser piloto de longo curso e aos 20 anos era feliz, depois do ocorrido cada um dos intervenientes fez o máximo por cinicamente sacudir a água do capote, e se possível obter algum ganho. Os seus colegas chamavam-lhe o André Tomate por ter sido auxiliar de cabina, e era frequentemente destratado por colegas e auxiliares. Apesar de não ser homossexual era vítima de homofobia e gozado sempre que entrava no avião. Pouco atraente, perdia a confiança dos passageiros e o seu relacionamento com as mulheres também era prejudicado. O acosso continuava nos eventos não profissionais. Não é preciso cortar as pernas a ninguém, mas a falta de respeito mata. Como aquele condutor que descompõe e bate todos os outros. Um dia leva um tiro. Não conhece nenhum caso? Eu conheço.

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