Eram o chapéu e o
bigode do homem português e o buço da mulher portuguesa os distintivos dos
costumes portugueses, nas telenovelas brasileiras, imagens do passado não esquecido,
que nos causavam rancor, por uma maldade que ninguém se permite explorar nos
filmes, pois não parece muito ético, sendo esse ridículo, para mais, uma
generalização de ficção pouco educada. O desenvolvimento tecnológico trouxe uma
mais rápida divulgação do que por aqui se passa hoje, mais sobre a actuação económica, e
a crítica incide sobre comportamentos, mas os telhados de vidro são um
genérico, hoje em dia, de que todos os povos enfermam, até mesmo o brasileiro.
Condenados à esperança /premium
Ele queria saber qual era o nosso motor
económico. Engasguei-me. Ignorância minha, provavelmente, mas eu nem sabia que
Portugal tinha um motor económico.
NUNO GONÇALO POÇAS, Colunista do Observador. Advogado, autor de
"Presos Por Um Fio – Portugal e as FP-25 de Abril"
OBSERVADOR, 31 ago 2021
Há
quase cinco anos estive em Salvador, na Bahía, onde fui companheiro durante um
par de horas de um taxista que depressa decidiu, apenas para passar o tempo e
porque eu, enfim, era português, que tinha à sua frente a pessoa certa para lhe
contar coisas sobre Portugal, o «País original», como me disse. Tinha visto há
pouco tempo um documentário numa televisão brasileira sobre nós e apanhou-me
ali a jeito, mesmo ao lado dele, de calções, t-shirt e chinelos, para tirar
umas coisas a limpo, enquanto me levava até à zona do Pelourinho. Queria saber,
porque não tinha percebido no tal documentário, qual era o nosso motor
económico. Engasguei-me. Ignorância minha, provavelmente, mas eu nem sabia
que Portugal tinha um motor económico. Tentei mudar o rumo da conversa, depois
de me ter ocorrido dizer-lhe, para acabar com o assunto, que Portugal se
limitava a viver de empréstimos e impostos, mas decidi fazer com que o ponto da
vergonha fosse o Brasil corrupto de que na altura muito se falava e não o
Portugal para o qual sempre me falta um adjectivo. O taxista baiano não se
deixou intimidar. Queixou-se do PT daquela época, das trapalhadas de Lula e
Dilma, da desilusão que Aécio tinha sido para ele, do golpe, da corrupção por
todo o lado. Assumiu a sua vergonha, deixou-me sem recursos e voltou à carga.
Como vive a economia portuguesa?,
insistia. A pergunta era honesta. Enchi-me de coragem e disse-lhe que o
turismo naquela altura estava em expansão. Que as exportações tinham
dado um salto. Que os têxteis isto, o horto-frutícola aquilo, o calçado, a
cortiça e o vinho. Depois apercebi-me do quão ridículo estava a ser e fui
directo. Sabe o que é Portugal, senhor? É igual ao Brasil, mas mais pequeno
e com menos crime. Rimos. «Eles falam que somos irmãos, mas o portuga é que
é o pai, viu? O filho não podia dar certo», finalizou ele. Depois perguntou-me
se somos mesmo dez milhões como andava a ouvir há muitos anos. Disse-lhe que
sim, mais coisa menos coisa. E o baiano riu alto porque se a população era
sempre a mesma então era porque não tínhamos filhos. E ele tinha sete: «Todo o
Europeu fala que ter filho sai caro, mas todos na Europa tinham mais filhos
quando eram mais pobres.»
Saímos
do Pelourinho. Na via rápida para o aeroporto apanhámos fila. O taxista, que,
apesar de tudo, parecia estar convencido de uma suposta superioridade
civilizacional portuguesa, afirmou, cheio de certezas, que nós não tínhamos
trânsito. Ele, que nunca tinha vindo a Portugal, achava que nas estradas
lusitanas era sempre a andar. E eu respondi-lhe como quem anuncia na rádio:
trânsito demorado no Eixo Norte-Sul, no IC19, na A5, no túnel do Marquês, na
saída para as Amoreiras, na curva do Palácio, no IC20, na A2, na Ponte Vasco da
Gama, no Nó de Francos, na Ponte da Arrábida, na A4, na Via de Cintura Interna,
na saída para Bessa Leite. Ria-se. Achava, ainda assim, que nós tínhamos uma
certa qualidade de vida nas cidades que eles no Brasil não tinham. E, para
desanuviar e sem me deixar ripostar, lembrou-se de um bolinho que tinha visto
no tal documentário. Uma coisa assim redondinha, meio amarela, meio queimada.
Um pastel de nata. É isso, pastel de nata. Ninguém diria que aquilo é um
pastel. Tem nata? Tem nata. Dizem que é uma especialidade. É, é. Há quem coma
com canela, mas eu prefiro sem. E a massa é folhada, tem que estar bem
crocante, estaladiça, sabe? E o recheio não pode estar demasiado duro, não pode
ser muito cozido, tem de escorrer para os dedos. O baiano, rindo, quis explicar
definitivamente por que razão os Portugueses, segundo ele, vivem melhor que os
Brasileiros: quando há trânsito, os Portugueses não se zangam porque chegam a
casa, comem um desses docinhos redondinhos, meio amarelos, e tudo passa.
Trocámos uns olhares: eu querendo explicar-lhe que ninguém em Portugal come
pastéis de nata todos os dias; ele a adivinhar o que me ia na cabeça sem querer
acreditar. Optei por não desiludir e confirmei, através do silêncio, a tese do
pastel de nata diário após o trânsito da IC19.
Estou
a terminar pouco mais de duas semanas e meia de férias, boa parte delas
passadas num lugar com pouca cobertura de rede de telemóvel, sem wi-fi e sem
televisão por cabo. No regresso ouvi umas coisas sobre o congresso do Partido
Socialista, em Portimão, e lembrei-me deste episódio de há cinco anos, em
Salvador, na Bahía. Presumo, depois do pouco que ouvi, que aquela frase célebre
de Millôr Fernandes se aplica não só ao Brasil mas também a nós: Portugal está
condenado à esperança. É a única coisa que nos resta.
ECONOMIA POLÍTICA BRASIL MUNDO
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