O de Carlos Maria Bobone, sobre a influência de Simone de Beauvoir na evolução do pensamento
contemporâneo.
Habituada ao descritivo
das figuras femininas romanescas dos romances ou novelas tradicionais, quer as da
doçura quer as de urdidura maquiavélica, segundo os parâmetros de uma sociedade
onde o homem imperava, a leitura de Simone de Beauvoir, nos meus anos trinta, foi, para mim, explosiva, pela sinceridade que
impunha na desmontagem dos actos das suas personagens femininas e masculinas da
sua obra romanesca, de um ponto de vista naturalmente oposto a esses
convencionalismos machistas e burgueses, nela admirando também a justeza de um
discurso claro e recto, para definir o mundo em que a narradora estava
integrada, mundo que ela ajudaria a transformar, numa obra de estranha dimensão
intelectual e de grande repercussão social.
Por isso, a
leitura da crónica de Carlos Maria Bobone veio acordar ecos de prazeres
vividos, pela dimensão que nela aponta, certamente, e que ele tão bem traduz.
Mas, sem pensamento filosófico bastante, eu recordo antes, da escritora, a
justeza e sinceridade de um discurso corajoso no retratar das suas intrigas e
personagens, sem preconceito inibitório e de extrema acuidade na desmontagem
dos afectos descritos.
Simone de Beauvoir, a dona da discussão /premium
Uma nova edição da escritora e pensadora francesa - de
um inédito em Portugal, "As Inseparáveis" - traz de volta a questão:
como pensávamos e argumentávamos o mundo antes de Beauvoir e o que mudou.
OBSERVADOR, 18 set 2021
▲Simone de
Beauvoir entrou com um peso inigualável no debate contemporâneo SYGMA VIA GETTY
IMAGES
É difícil explicar, num mundo cada vez mais encostado
aos lados mais distantes por causa da pressão das guerras culturais, a importância de Simone de Beauvoir (1908-1986). É provavelmente das escritoras mais ideológicas
do século XX, mais ciente dos seus compromissos do que qualquer Sartre e mais
objectiva na ligação entre a sua obra e as suas causas do que qualquer Foucault ou
Derrida, pelo que o seu estatuto está em muito dependente do grau de apoio às
suas causas. Heroína
do feminismo, mesmo do feminismo que vai buscar inspiração e se sustenta em
teses tão opostas às de Beauvoir, conseguiu atravessar as margens do Sena,
revoltadas pelo Maio de 68, sem sofrer grandes ataques dos seus compagnons de route. Enquanto o estruturalismo reage fortemente contra
Sartre e acaba por torná-lo, de certa forma, datado, Simone, apesar da sua
ontologia de clara inspiração sartriana, não tem o mesmo destino.
Isto deve-se, em parte, à menorização da sua obra e à
prevalência das suas atitudes sobre os seus escritos, o que também leva à
natural colagem do seu estatuto à política, mais do que ao seu pensamento. Pouco importa que a esquerda de Beauvoir poucas ligações tenha, nos
propósitos e nos métodos, aos movimentos esquerdistas do fim do século; pouco
importa que o feminismo das últimas vagas se construa sobre uma consciência
colectiva que é antagónica do pensamento de Beauvoir; mesmo os movimentos de
libertação sexual que erigem Simone de Beauvoir como ícone devem-lhe mais
enquanto figura da cultura intelectual capaz de empunhar as suas bandeiras
garridas do que propriamente como pensadora – e, em tudo isto, porque a obra de
Simone de Beauvoir está muito subordinada à sua imagem.
▲ A capa da primeira edição portuguesa de "As
Inseparáveis", ficção baseada na amizade entre Beauvoir e Élisabeth Lacoin
A obra central de Beauvoir é, obviamente, O Segundo Sexo. Não apenas por ser a mais conhecida, a mais
trabalhada, ou a mais influente, mas porque de facto é a chave que permite
perceber todo o projecto intelectual, incluindo nele todo o projecto romanesco.
Aquela espécie de memórias espartilhadas só podem ser percebidas enquanto
exemplos (como, aliás, é feito através da análise à literatura burguesa na
segunda parte de O Segundo Sexo)
dos processos de retraimento da individualidade das mulheres, bem como dos
conflitos em que essa individualidade se procura manifestar. As memórias de uma rapariga bem comportada, logo pela
ironia do título, mostram o processo de educação burguesa e a forma como toda a
sociedade está montada para construir, desde a meninice, uma imagem da mulher.
Note-se, aliás, que o mais importante nesta construção não é a sua essência,
isto é, as qualidades propriamente ditas que formam a mulher, mas precisamente
a ideia de que elas vêm de fora e de que a mulher é educada para não decidir o
seu próprio destino, seja ele qual for.
Também As Inseparáveis, livro agora editado pela Quetzal (e que estava inédito em Portugal), volta à ideia da rebeldia e da dificuldade que uma rapariga sensível e
inteligente passa caso queira manifestar a sua individualidade. Isto porque a subjectividade é o ponto fundamental – e daí
que a sua ontologia seja tão sartriana e o seu propósito tão contrário ao de
muitos movimentos feministas que querem precisamente abraçar a cultura e a
consciência de género – do ponto de vista de Beauvoir. A ideia é o
apagamento da categoria “feminino”, para a libertação completa do sujeito.
Os romances e as memórias de Beauvoir são
demonstrações da sua tese; o seu desenvolvimento sistemático, porém, é dado
pelo Segundo Sexo, que é um dos mais
importantes, e por razões diferentes das habitualmente descritas, para perceber
o pensamento contemporâneo mais generalizado.
A quase equivalência entre razão ou verdade e contestação, que
parte de Simone de Beauvoir, é um dos seus contributos mais importantes para o
modelo de discussão contemporâneo.
É
mundialmente famosa a ideia de que não se nasce mulher, torna-se mulher; esta
ideia foi elevada a síntese mais acabada de que o “feminino” é uma
construção social. A forma como Simone de Beauvoir o demonstra é
extraordinariamente perspicaz. Começa, em primeiro lugar, por assumir a sua
conclusão, para com isso dificultar a refutação das suas premissas. Isto é,
estatui que há um regime opressor das mulheres, de tal modo que é do interesse
dos homens mantê-lo, pelo que a sua defesa desse regime deve ser percebida como
uma defesa interesseira, mas que é também de tal maneira eficaz que pode
subjugar as próprias mulheres, a ponto de elas não reconhecerem o seu próprio
interesse. Daí que mulheres que contestem esta opressão estão também
contaminadas pela tese dominante que se procura manter à tona.
Ora, esta definição do campo a
partir, não das ideias, mas das motivações de quem as defende é uma das mais
disseminadas formas de pensar do mundo contemporâneo. A consciência, válida e cada vez mais premente em
meados do século XX, de que a razão por si só não chega para convencer e é
incompleta no processo de aferição da verdade deu com Beauvoir um passo
importantíssimo: a partir de Beauvoir, está encontrada a causa para esta
insuficiência da razão. A discussão nunca pode ser feita de boa fé e num plano
estritamente argumentativo. Há sempre um interesse que inclina a discussão,
pelo que a única maneira de procurar a “razão” passa pela voz de quem não é
favorecido pelo estado das coisas. Esta quase equivalência entre razão ou verdade e contestação, que parte
de Beauvoir, é um dos seus contributos mais importantes para o modelo de
discussão contemporâneo.
▲A sua forma de analisar os pequenos
acontecimentos como formas encapotadas de um acontecimento maior, permitiram
transformar a ideia de estrutura CORBIS
Há, no entanto, outros aspectos que são muito
importantes em Simone de Beauvoir. A sua demonstração de que mesmo as
ciências de vanguarda – o
marxismo e a psicanálise, a que ela acrescenta a biologia – contribuem para a manutenção do estatuto da mulher como unicamente parte
de um colectivo é não só interessante como, de certa forma, ficou inscrita na
consciência colectiva. A ideia de que o ciclo menstrual prende a mulher, a “lembra” do seu corpo
e a prende a ele, ou de que a gravidez leva à sujeição da subjectividade aos
imperativos biológicos é, hoje, quase um lugar comum.
Estas ideias, porém, não seriam suficientes para fazer
Simone de Beauvoir atravessar incólume as várias vagas intelectuais. A ideia de
que a identidade se cria contra o que vem de fora pode ser interessante, mas
não resolve o problema filosófico de saber de onde é que vem o que é
apresentado como “individualidade”. Ou esta ideia nos leva a um misticismo ou a
uma metafísica com claras semelhanças com a metafísica cristã, ou é impossível
mantermos um saudável materialismo pós-moderno sem considerar tudo aquilo que
nos constitui como, também isso, um “fora” de nós, embora em camadas diferentes
(seria também possível entrar nas intrincadas formas de tentar provar o “nada”
como faz Sartre, mas Beauvoir permanece prudentemente fora dessa discussão). Daí que os movimentos de libertação sexual vejam a
libertação não como uma escolha daquilo que queremos ser, à maneira de Simone
de Beauvoir, mas como o assumir daquilo que é nosso mas que é culturalmente
refreado.
É fácil perceber, assim, que o lado mais sartriano de
Simone de Beauvoir não seria suficiente para a fazer ganhar adeptos em culturas
intelectuais antagónicas. Daí que quer a segunda parte de O Segundo Sexo, quer os seus
romances, tenham importância. No fundo, aquilo que Simone de Beauvoir está a
descrever na sua análise de Balzac ou na análise da relação entre Zaza e
Sylvie é a noção de estrutura, e o género como parte dessa mesma estrutura.
Isto é, algo que escapa ao discurso e que tem um poder coercivo superior à
linguagem e à consciência, de tal modo que foge mesmo ao debate.
Os romances
de Simone de Beauvoir são importantes também porque dão uma solidez que falta a muitas das
tentativas de elevar os problemas de género, bem como os problemas de raça ou de opções
sexuais, a questões estruturais. Isto é, o
pensamento contemporâneo habituou-se, precisamente pela ideia estruturalista de
que a estrutura é algo anterior ao discurso e mais
forte do que as leis, a procurar nos episódios quotidianos e nas chamadas
micro-agressões as provas do chamado “sexismo estrutural”; ora, é importante, contudo, não esquecer um aspecto marxista da noção de
estrutura. É que a estrutura pode revelar-se em comportamentos marginais, mas
estes são insuficientes para garantir o estatuto de “estrutura” a alguma coisa.
▲ Enquanto o estruturalismo
reage fortemente contra Sartre e acaba por torná-lo, de certa forma, datado,
Simone, apesar da sua ontologia de clara inspiração sartriana, não tem o mesmo
destino AFP/GETTY IMAGES
A
ideia de estrutura implica que o comportamento descrito é fundamental para que
a sociedade se mantenha como tal e é, portanto, o elemento mais poderoso da
sociedade. A menos que, numa brincadeira analítica, consideremos
que tudo é essencial para que a sociedade se mantenha como é, bastando uma mudança num indivíduo para
que a sociedade já seja diferente, aquilo que está implicado na noção de
estrutura, tal como a entende Levi-Strauss, por exemplo, é a ideia de que o
acontecimento em causa constitui o ponto mais importante da sociedade, aquilo
que a define, de tal forma que nem sequer é percebido como uma hipótese entre
outras – é uma regra.
Os exemplos de Simone de
Beauvoir, a sua forma de analisar os pequenos acontecimentos como formas
encapotadas de um acontecimento maior, permitiram transformar a ideia de
estrutura de tal modo que o acessório basta para ganhar o estatuto de
“estrutura”, sem ser necessário provar que é esse o princípio activo da
sociedade. E nisto,
mais do que nas questões ideológicas, Simone de Beauvoir entrou com um peso
inigualável no debate contemporâneo.
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