sexta-feira, 10 de setembro de 2021

“OS TRÊS MOSQUETEIROS”


Quatro, na realidade, foi livro de magia, representante de mocidades alegres e sadias, uma juventude com os seus segredos e defeitos, mas de coragem e dedicação, cujo amor pátrio os torna defensores da causa do rei – e da rainha, naturalmente – contra a intriga gerida pelo cardeal e afins, representantes do mal – um mal em torno de pessoas, e não, como hoje, envolvendo grupos, classes, ou seus representantes, reais ou imaginários, que não se coadunem com os dos defensores de um radicalismo de vingança ou sectarismo de religiosidade aparente e muita ignorância, insensatez e maldade, de permeio. “Vinte anos depois”, um livro do mesmo Alexandre Dumas, trazendo já o peso das amarguras e das frustrações, das diferenças de ideais, de que se compõem as vivências da maturidade, como figuras desenhadas nas suas peculiaridades e desencontros ideológicos, o livro não apresenta, é certo, a mesma estrutura moça e vibrátil do livro primeiro, que nos mantinha interessados, mau grado os remates dolorosos, trazidos pelas frustrações ou mortes, ou mesmo outros remates de tranquila realização de ideais, já não pertencentes aos tempos juvenis da despreocupação ou dos afectos.

Paulo Tunhas põe esse título – “Vinte anos depois” – ao seu texto, tendo como ponto de referência o ano de 2001 (11 de Setembro, o dia de amanhã) data fatídica na história dos Estados Unidos com o atentado às Torres Gémeas do World Trade Center, impondo retaliações, invasões, aumento dos sectarismos e do terrorismo, e finalmente o abandono trágico pelos mesmos Estados Unidos de um Afeganistão de pesadelo, novamente ocupado pelos facínoras anteriores.

O texto de Paulo Tunhas é memorável, pela análise que nos dá do fenómeno “sentimento de culpa” da matreirice ocidental relativamente a um histórico passado em que hoje se faz finca-pé. Ele explica bem, já segundo uma tese que trabalhara tendo por orientador o filósofo Fernando Gil. Alguns comentadores o acompanham na clarificação do fenómeno. Quanto aos "Três Mosqueteiros", pertencem a um passado para sempre perdido. Ao menos para nós.

 

11 de Setembro. Vinte anos depois /premium

20 anos depois o perigo vivido pôde ser controlado em parte, mas vai ressurgindo até porque temos as defesas intelectualmente diminuídas pela alucinação da nossa imorredoira culpa dos males do mundo

PAULO TUNHAS

OBSERVADOR, 09 set 2021

Faz depois de amanhã vinte anos que ocorreram os atentados do 11 de Setembro de 2001, onde morreram quase 3000 pessoas. O aniversário coincide praticamente com dois outros acontecimentos: a catastrófica retirada das tropas americanas (que arrastou consigo a saída das outras) do Afeganistão, e o resultante retorno ao poder, vinte anos passados, dos talibãs; e a abertura do processo dos atentados, por elementos do grupo Estado Islâmico, de 13 de Novembro de 2015, no clube Bataclan e no Stade de France, em Paris (130 mortos).

É um aniversário que me traz, como a toda a gente, memórias pessoais. Primeiro, é claro, do horror dos próprios atentados. E, a seguir, do horror renovado face a muitas reacções aos atentados, que se podem resumir na frase, muitas vezes ouvida, que os americanos “estavam a pedi-las”, they had it coming. Poucas épocas da minha vida foram tão pessoalmente dilacerantes. Felizmente, se é que pode haver alguma felicidade nestas coisas, experimentei um entendimento perfeito nesta matéria com Fernando Gil, que dirigira a minha tese de doutoramento, e escrevemos juntos um livro, Impasses, sobre o mundo criado pelo 11 de Setembro, tal como o víamos. Muitas vezes me pergunto o que Fernando Gil, que morreu em 2006, pensaria sobre o mundo de hoje. Mas sobre o mundo de 2003 sei muito bem o que ele pensava.

O livro lidava com as reacções ao 11 de Setembro, e, no prolongamento delas – porque há aqui continuidade, apesar da lenda que nos diz o contrário –, às guerras do Afeganistão e do Iraque. A reacção às guerras podia já ler-se nas palavras, a quente, de muita gente naquele dia entre todos inesperado. O que dizia o livro? Que o integrismo islâmico representava uma ameaça a um modo de vida que não nos custava nada designar por “ocidental”, um modo de vida pelo qual valia a pena lutar. Que, mesmo numa situação de incerteza quanto às guerras, a convicção das virtudes desse modo de viver justificava amplamente que se denunciasse o ressentimento anti-ocidental, movido pela má-fé e tendo por corolário o niilismo, que por todo o lado era observável. Que esse niilismo era uma forma de ódio à democracia, de que a detestação de Israel e dos Estados Unidos era um exemplo maior. E que o entusiasmo negativo na denúncia de uma espécie de culpa generalizada do Ocidente prenunciava o pior.

Pela minha parte, e tendo em conta o que se passou de então para cá, nada de substancial mudaria no livro. É verdade que o terror do integrismo islâmico perdeu, com algumas excepções, a sua dimensão mais espectacular, mas continua vivíssimo, e vamos ver o que sucede com o Afeganistão entregue aos talibãs. Em contrapartida, o ressentimento anti-ocidental, e o seu concomitante niilismo, atingiu proporções inéditas, desta vez geradas pela esquerda universitária dos próprios Estados Unidos, que rapidamente alastraram pelo mundo. O movimento woke, na ânsia de denunciar a perversa história do Ocidente, dá a mão ao “islamo-esquerdismo”, particularmente virulento em França, com o seu necessário complemento antissemita.

Wokeness e integrismo islâmico, com as suas origens e histórias bem distintas, são as Cila e Caribdis entre as quais navegamos perigosamente. No primeiro caso, trata-se de uma exorbitação da tradição reflexiva e crítica que habita o Ocidente desde a invenção da democracia pelos gregos, do seu acolhimento pela tradição judaico-cristã e da visão global do Iluminismo. No segundo, de uma recusa inteira e militante dessa tradição. Que o hiper-criticismo e a hiper-reflexividade se encontrem finalmente em paz com a recusa intransigente da crítica e da reflexividade não tem, bem vistas as coisas, que nos surpreender grandemente. Se há lugar-comum que goza de indisputável verosimilhança é aquele que nos diz que os extremos se tocam.

E tocam-se, como se sabe, num ponto preciso, a partir do qual irradia o fanatismo: o da alucinação de uma culpa única e inexpiável do Ocidente. O catálogo das culpas que o movimento woke elabora é tendencialmente infinito e, pela sua própria natureza, não conhece princípio algum de autolimitação. A lista das conquistas de Don Giovanni que Leporello enumera a Dona Elvira na ópera de Mozart – Ma in Ispagna son già mille e tre – é uma brincadeira de menino de coro comparada com o rol das culpas ocidentais que o donjuanismo woke conquista. O movimento woke é declaradamente centrípeto, progride por uma devastação progressiva e avassaladora das mínimas coisas do quotidiano, numa caça absoluta e irreprimível. O número de “micro-agressões” que militantemente detecta, num exercício de libertinagem puritana desenfreada, não tem fim.

Por sua vez, o integrismo islâmico é habitado por uma força centrífuga e expansiva. A culpa ocidental é única e maciça: a culpa da impiedade. É a tradição ocidental, construída na crítica e na reflexão, que tem que ser abolida como um todo. Para continuar com Mozart – desta vez o Mozart do Rapto no serralho –, é a nossa liberdade que lhe é incompreensível, como é incompreensível ao intendente Osmin a liberdade de Blonde, que memoravelmente lhe responde: “As mulheres não são mercadorias que se oferecem! Sou inglesa, nascida para a liberdade, e desafio quem quer que seja a dominar-me” (antes, no segundo acto de Zaide, na incontida fúria da magnífica ária “Tiger! wetze nur die Klauen”, sentimentos afins eram já expressos – aconselho toda a gente a vê-la cantada por Patricia Petitbon no YouTube). E, hoje em dia, nada menos imaginável no integrismo islâmico do que a tolerância final do Pacha Selim, que o iluminista Mozart podia ainda conceber.

Moral da história. Vinte anos depois, o perigo em que vivemos pôde ser controlado em parte, mas a todo o momento vai ressurgindo, e é bem possível que, num futuro próximo, ressurja com uma força inédita. Até porque as nossas defesas se encontram intelectualmente diminuídas pela alucinação da nossa imorredoira e muito exclusiva culpa dos males do mundo a partir de tempos imemoriais.

Mas pode ser que, de facto algo mude. Em Vinte anos depois, de Alexandre Dumas, os personagens desse grande livro sobre a amizade que é Os três mosqueteiros (que, como se sabe, eram quatro) voltam a encontrar-se. Por causa da Fronda, encontram-se divididos: Athos e Aramis, de um lado; D’Artagnan e Porthos, do outro. Mas, no decurso do livro, a velha amizade ressurge. Neste momento de confronto a propósito da saída das tropas americanas do Afeganistão, em que “realistas” e “idealistas” se opõem, pode ser que a amizade, também aqui, ressurja. Com uma pequena ajuda. Não, infelizmente, dos nossos amigos, mas dos talibãs e do integrismo islâmico. Se disser que receio o pior, contra o que os “especialistas”, na sua vasta sapiência, nos garantem, não minto.

TERRORISMO  MUNDO  OCIDENTE  ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA  AMÉRICA  ISLÃO  RELIGIÃO  SOCIEDADE

COMENTÁRIOS

Jorge Carvalho: Obrigado, Paulo Tunhas, pelo excelente artigo.              António Sennfelt: Ao invés do que à primeira vista se possa supor, o mais mortal inimigo da cultura e civilização ocidental não é o brutal arcaísmo da Jihad islâmica, mas sim o venenoso neo-marxismo militante, também conhecido pelos seus pseudónimos de "pensamento politicamente correcto" ou de "filosofia" woke! Dito por outras palavras, o mais perigoso inimigo do Ocidente não se encontra no Cila do fundamentalismo islâmico, mas sim no Caribdis do ateísmo pseudo-científico que hoje em dia é militantemente preconizado pelo mundo académico ocidental! Preconizado aliás com tanta maior agressividade quanto mais evidente se torna a vacuidade dos seus pretensos fundamentos científicos!              Ar: Gen Wesley Clark Reveals US Plan To Invade Iraq, Syria, Lebanon, Lybia, Somalia, Sudan, And Iran (youtube)             José Maria Tartufo: 20 anos depois os cidadãos americanos ainda não sabem que foram vítimas do seu próprio governo para satisfazerem pretensões imperialistas e construírem o projecto de sonho dos sionistas. Um grande Israel, do Tigre ao Eufrates e sem inimigos muçulmanos em volta. Os EUA, depois de demolidas as torres, ainda mandaram os filhos deles para morrerem por Israel. Que triste. Um dia saber-se-á o que a mossad fez.             João Alves > Paulo Tunhas: O movimento ‘woke’, o projecto democracia radical e de justiça social são, ainda, sequelas do nazismo, que levou os membros da Escola de Frankfurt e defensores da Teoria Crítica a emigrar para os EUE, onde foram infectar o meio universitário americano com o vírus neo-marxista do pós-modernismo.           Harry Dean Stanton: Também sempre me pareceu que o movimento woke é que acendeu o rastilho do fundamentalismo islâmico. O movimento woke e alguns idiotas como os que juravam a pés juntos sobre as armas de destruição maciça no Iraque.              Manuel Martins: É para mim óbvio que os EUA e Israel não são países com os padrões europeus de democracia, independência dos poderes, respeito pelos direitos humanos. Para os padrões europeus, seria impossível mandar matar alguém, tortura de terroristas, ataques que envolvem morte de civis, guantanamo, etc. Mas conseguem os métodos europeus lidar com países, ditaduras, regimes como o talibans, o daesh? Duvido..              Silvino iraqunita Teixeira: Ataque brilhante ao coração do país que provoca todos os males do mundo! Seguíssemos todos a Coreia do Norte e éramos super felizes!            jose maria: Mais um dia ganho, vou já ao largo das ratazanas buscar o cheque. Temos as defesas intelectualmente diminuídas pela alucinação da nossa imorredoira culpa dos males do mundo O 11/9 foi um acto monstruoso e ignóbil, como monstruosos e ignóbeis foram os bombardeamentos sistemáticos da Coligação Internacional, liderada pelos EUA de Trump, sobre as populações civis das cidades sírias de Aleppo e Mossul. Mas, como para Paulo Tunhas, parece haver terrorismo selectivo, nem uma única vez aqui suscitou qualquer palavra de indignação contra o terrorismo americano. Quanto ao terrorismo israelita sobre os civis palestinianos do gueto de Gaza, também não é nada que alguma vez tenha retirado o sono ao colunista, intelectualmente diminuído pela sua imorredoura culpa nos males do mundo. Aproveite para ir dar um passeio até ao bugio, que é o que você merece, PT.           Alberto Rei > josé maria: Gente que leva aviões com gente lá dentro e espetá-los em edifícios, que gente é essa. Só pode ser gente chinfrada da cabeça. Estás lá. A tua vida deve ser uma solidão, é o que deixas transparecer por aqui. Até podes ter família, mas és mesmo só.     advoga diabo: O 11 de Setembro foi consequência da política global negativa, ultra conservadora, protagonizada por Reagan e Thatcher em resposta à "abertura do mundo" iniciada em 68 até à queda do Muro. A reacção de Bush abriu a porta a todos os abusos, sociais, políticos, económicos e financeiros, consubstanciados pelo crescimento exponencial do terrorismo, agravamento dos problemas ambientais, pela crise do sub prime, emergência de personagens como Trump e vários sucedâneos mundo fora. Hoje a luta é ir em busca do Humanismo perdido!             klaus muller > advoga diabo: Fico sem perceber se bebeste ou se essa cabecinha está completamente queimada...           maldekstre estas kaptilo > klaus muller: A cabecinha está completamente queimada pela bebida.           Alberto Rei > maldekstre estas kaptilo: Pela bebida?          Hipo Tanso: Excelentíssimo artigo. Imensamente lúcido e muito oportuno, ou talvez tardio... São estes artigos de opinião que vão retardando a assimilação do Observador à mediocridade da imprensa portuguesa.          Carlos Quartel: Reflexões fundamentais sobre o nosso mundo e a nossa condição. A democracia, a tolerância, a normal troca de opiniões divergentes, a paz, a justiça, as leis, todo o pacote de vivências e obediências que constituem o nosso modo de vida precisam de ser defendidas e praticadas quotidianamente. Culpamos radicalismos e fundamentalismos mas talvez a culpa esteja na nossa desistência de todos os dias, proclamar a nossa convicção de que não há valor que supere a liberdade, as liberdades individuais e colectivas e que estamos dispostos a morrer em sua defesa. O nosso fracasso não está nas ideias que proclamamos, o nosso fracasso está na incapacidade de lutar contra a imbecilidade que enche as ruas de Veneza ou do Bairro Alto, ou que leva milhões a comprar camisolas do Ronaldo. Esse fracasso pode ser a porta de entrada para os mais disparatados fenómenos, chamem-se taliban ou bispos Macedo ......           João Alves > Carlos Quartel: … ou Sousa de Belém.         José Carvalho: Artigo de excelência, bastante denso. O último parágrafo começa por anunciar uma esperança de mudança, para terminar receando o pior. Nós os ocidentais precisamos de um inimigo que nos una. Vai ser duro, mas venha esse inimigo!           Vou ali e já volto > José Carvalho: Este inimigo já cá está: somos nós próprios, cada vez que revelamos “a nossa desistência de proclamar a convicção de que não há valor que supere a liberdade” (Carlos Quartel dixit [e dixit muito bem!]). Para além disso, opinião minha, há as prédicas católico-comunistas do “talibã” josé maria convenientemente destiladas em Moscovo, o paraíso da Liberdade! Nazdarovie!           Anarquista Coroado > Vou ali e já volto: De Moscovo antes da queda do Comunismo. Vou ali e já volto > Anarquista Coroado: Certo. Mas também é certo que, após a queda do comunismo, a vodka não ficou com sabor muito diferente. De qualquer forma, nem tudo é mau, os gulags parecem-se com guantánamos, e até os talibans já levam com #metoo, parabéns a elas pela audácia em lutar por liberdade. Meio Vazio: Clarividente, como seria de esperar. Só um reparo: o que aconteceu em 11 de Setembro de 2001 em Nova Iorque não foi um "atentado" (oxalá tivesse sido apenas isso - D. José foi alvo de um atentado, D. Carlos, nem por isso); foi mesmo um "ataque" efectivo e trágico. 

 

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