Quatro, na realidade, foi livro de magia,
representante de mocidades alegres e sadias, uma juventude com os seus segredos
e defeitos, mas de coragem e dedicação, cujo amor pátrio os torna defensores da
causa do rei – e da rainha, naturalmente – contra a intriga gerida pelo cardeal
e afins, representantes do mal – um mal em torno de pessoas, e não, como hoje, envolvendo
grupos, classes, ou seus representantes, reais ou imaginários, que não se
coadunem com os dos defensores de um radicalismo de vingança ou sectarismo de
religiosidade aparente e muita ignorância, insensatez e maldade, de permeio. “Vinte anos depois”, um livro do mesmo Alexandre Dumas, trazendo já o peso das amarguras e das
frustrações, das diferenças de ideais, de que se compõem as vivências da maturidade,
como figuras desenhadas nas suas peculiaridades e desencontros ideológicos, o
livro não apresenta, é certo, a mesma estrutura moça e vibrátil do livro
primeiro, que nos mantinha interessados, mau grado os remates dolorosos, trazidos
pelas frustrações ou mortes, ou mesmo outros remates de tranquila realização de
ideais, já não pertencentes aos tempos juvenis da despreocupação ou dos
afectos.
Paulo
Tunhas põe esse título – “Vinte anos depois” – ao seu texto, tendo como ponto de referência o ano
de 2001 (11 de Setembro, o dia de amanhã) data fatídica na história dos Estados Unidos com o atentado às Torres Gémeas do World
Trade Center, impondo retaliações, invasões, aumento dos sectarismos
e do terrorismo, e finalmente o abandono trágico pelos mesmos Estados Unidos de
um Afeganistão de pesadelo, novamente ocupado pelos facínoras anteriores.
O texto de Paulo Tunhas é memorável, pela análise que nos dá do fenómeno “sentimento
de culpa” da matreirice ocidental relativamente a um histórico passado em que hoje
se faz finca-pé. Ele explica bem, já segundo uma tese que trabalhara tendo por orientador
o filósofo Fernando Gil. Alguns comentadores
o acompanham na clarificação do fenómeno. Quanto aos "Três Mosqueteiros", pertencem a um passado para sempre perdido. Ao menos para nós.
11 de Setembro. Vinte anos depois /premium
20 anos depois o perigo vivido pôde
ser controlado em parte, mas vai ressurgindo até porque temos as defesas
intelectualmente diminuídas pela alucinação da nossa imorredoira culpa dos
males do mundo
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 09 set
2021
Faz
depois de amanhã vinte anos que ocorreram os atentados do 11 de Setembro de
2001, onde morreram quase 3000 pessoas. O aniversário coincide praticamente com
dois outros acontecimentos: a catastrófica retirada das tropas americanas (que
arrastou consigo a saída das outras) do Afeganistão, e o resultante retorno ao
poder, vinte anos passados, dos talibãs; e a abertura do processo dos
atentados, por elementos do grupo Estado Islâmico, de 13 de Novembro de 2015,
no clube Bataclan e no Stade de France, em Paris (130 mortos).
É
um aniversário que me traz, como a toda a gente, memórias pessoais. Primeiro, é
claro, do horror dos próprios atentados. E, a seguir, do horror renovado face a
muitas reacções aos atentados, que se podem resumir na frase, muitas vezes
ouvida, que os americanos “estavam a pedi-las”, they had it coming. Poucas
épocas da minha vida foram tão pessoalmente dilacerantes. Felizmente, se é que
pode haver alguma felicidade nestas coisas, experimentei um entendimento
perfeito nesta matéria com Fernando
Gil, que dirigira
a minha tese de doutoramento, e escrevemos juntos um livro, Impasses,
sobre o mundo criado pelo 11 de Setembro, tal como o víamos. Muitas vezes me pergunto o que Fernando Gil, que
morreu em 2006, pensaria sobre o mundo de hoje. Mas sobre
o mundo de 2003 sei muito bem o que ele pensava.
O livro lidava com as reacções ao 11
de Setembro, e, no prolongamento delas – porque há aqui continuidade, apesar da
lenda que nos diz o contrário –, às guerras do Afeganistão e do Iraque. A reacção às guerras podia já ler-se nas palavras, a
quente, de muita gente naquele dia entre todos inesperado. O que dizia
o livro? Que o integrismo islâmico representava uma ameaça a um modo de vida
que não nos custava nada designar por “ocidental”, um modo de vida pelo qual
valia a pena lutar. Que, mesmo
numa situação de incerteza quanto às guerras, a convicção das virtudes desse
modo de viver justificava amplamente que se denunciasse o ressentimento
anti-ocidental, movido pela má-fé e tendo por corolário o niilismo, que por
todo o lado era observável. Que esse niilismo era uma forma de ódio à
democracia, de que a detestação de Israel e dos Estados Unidos era um exemplo
maior. E
que o entusiasmo negativo na denúncia de uma espécie de culpa generalizada do
Ocidente prenunciava o pior.
Pela
minha parte, e tendo em conta o que se passou de então para cá, nada de
substancial mudaria no livro. É verdade que o terror do integrismo islâmico
perdeu, com algumas excepções, a sua dimensão mais espectacular, mas continua
vivíssimo, e vamos ver o que sucede com o Afeganistão entregue aos talibãs.
Em contrapartida, o ressentimento
anti-ocidental, e o seu concomitante niilismo, atingiu proporções inéditas,
desta vez geradas pela esquerda universitária dos próprios Estados Unidos, que
rapidamente alastraram pelo mundo. O movimento woke, na ânsia de denunciar a
perversa história do Ocidente, dá a mão ao “islamo-esquerdismo”,
particularmente virulento em França, com o seu necessário complemento
antissemita.
Wokeness e integrismo islâmico, com as
suas origens e histórias bem distintas, são as Cila e Caribdis entre as
quais navegamos perigosamente. No primeiro
caso, trata-se de uma exorbitação da tradição reflexiva e crítica que habita o
Ocidente desde a invenção da democracia pelos gregos, do seu acolhimento pela
tradição judaico-cristã e da visão global do Iluminismo. No segundo, de uma
recusa inteira e militante dessa tradição. Que
o hiper-criticismo e a hiper-reflexividade se encontrem finalmente em paz com a
recusa intransigente da crítica e da reflexividade não tem, bem vistas as
coisas, que nos surpreender grandemente. Se há lugar-comum que goza de
indisputável verosimilhança é aquele que nos diz que os extremos se tocam.
E tocam-se, como se sabe, num ponto
preciso, a partir do qual irradia o fanatismo: o da
alucinação de uma culpa única e inexpiável do Ocidente. O catálogo das culpas que o movimento woke elabora é
tendencialmente infinito e, pela sua própria natureza, não conhece princípio
algum de autolimitação. A lista das
conquistas de Don Giovanni que Leporello enumera a Dona Elvira na ópera de
Mozart – Ma in Ispagna son già mille e tre – é uma brincadeira de menino de
coro comparada com o rol das culpas ocidentais que o donjuanismo woke
conquista. O movimento woke
é declaradamente centrípeto, progride
por uma devastação progressiva e avassaladora das mínimas coisas do quotidiano,
numa caça absoluta e irreprimível. O número de “micro-agressões” que
militantemente detecta, num exercício de libertinagem puritana desenfreada, não
tem fim.
Por sua vez, o integrismo islâmico é
habitado por uma força centrífuga e expansiva. A culpa ocidental é única e maciça: a culpa da
impiedade. É a tradição
ocidental, construída na crítica e na reflexão, que tem que ser abolida como um
todo. Para continuar com Mozart – desta vez o Mozart do Rapto no serralho –, é
a nossa liberdade que lhe é incompreensível, como é incompreensível ao
intendente Osmin a liberdade de Blonde, que memoravelmente lhe responde: “As
mulheres não são mercadorias que se oferecem! Sou inglesa, nascida para a
liberdade, e desafio quem quer que seja a dominar-me” (antes, no segundo acto
de Zaide, na incontida fúria da magnífica ária “Tiger! wetze nur die Klauen”,
sentimentos afins eram já expressos – aconselho toda a gente a vê-la cantada
por Patricia Petitbon no YouTube). E, hoje em dia, nada menos imaginável no
integrismo islâmico do que a tolerância final do Pacha Selim, que o iluminista
Mozart podia ainda conceber.
Moral da história. Vinte anos depois, o perigo em que vivemos pôde
ser controlado em parte, mas a todo o momento vai ressurgindo, e é bem possível
que, num futuro próximo, ressurja com uma força inédita. Até porque as nossas
defesas se encontram intelectualmente diminuídas pela alucinação da nossa
imorredoira e muito exclusiva culpa dos males do mundo a partir de tempos
imemoriais.
Mas
pode ser que, de facto algo mude. Em Vinte anos depois, de Alexandre Dumas, os personagens desse grande livro
sobre a amizade que é Os três mosqueteiros (que, como se sabe, eram quatro)
voltam a encontrar-se. Por causa da Fronda, encontram-se divididos: Athos e
Aramis, de um lado; D’Artagnan e Porthos, do outro. Mas, no decurso do livro, a velha amizade ressurge. Neste
momento de confronto a propósito da saída das tropas americanas do Afeganistão,
em que “realistas” e “idealistas” se opõem, pode ser que a amizade, também
aqui, ressurja. Com uma pequena ajuda. Não, infelizmente, dos nossos amigos,
mas dos talibãs e do integrismo islâmico. Se disser que receio o pior, contra o
que os “especialistas”, na sua vasta sapiência, nos garantem, não minto.
TERRORISMO MUNDO OCIDENTE ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA ISLÃO RELIGIÃO SOCIEDADE
COMENTÁRIOS
Jorge Carvalho: Obrigado, Paulo Tunhas, pelo excelente artigo. António Sennfelt: Ao invés do que à primeira
vista se possa supor, o mais mortal inimigo da cultura e civilização ocidental não é o brutal arcaísmo da Jihad islâmica, mas sim o venenoso neo-marxismo
militante, também conhecido pelos seus pseudónimos de "pensamento
politicamente correcto" ou de "filosofia" woke! Dito por outras palavras, o mais perigoso inimigo do
Ocidente não se encontra no Cila do fundamentalismo islâmico, mas sim no
Caribdis do ateísmo pseudo-científico que hoje em dia é militantemente
preconizado pelo mundo académico ocidental! Preconizado aliás com tanta maior
agressividade quanto mais evidente se torna a vacuidade dos seus pretensos fundamentos
científicos! Ar: Gen Wesley Clark Reveals US Plan To Invade Iraq, Syria, Lebanon, Lybia,
Somalia, Sudan, And Iran (youtube) José
Maria Tartufo: 20 anos depois os cidadãos americanos ainda não sabem que foram vítimas do
seu próprio governo para satisfazerem pretensões imperialistas e construírem o
projecto de sonho dos sionistas. Um grande Israel, do Tigre ao Eufrates e sem
inimigos muçulmanos em volta. Os EUA, depois de demolidas as torres, ainda
mandaram os filhos deles para morrerem por Israel. Que triste. Um dia
saber-se-á o que a mossad fez. João Alves > Paulo Tunhas: O movimento ‘woke’, o projecto democracia radical e de
justiça social são, ainda, sequelas do nazismo, que levou os membros da Escola
de Frankfurt e defensores da Teoria Crítica a emigrar para os EUE, onde foram
infectar o meio universitário americano com o vírus neo-marxista do
pós-modernismo. Harry Dean
Stanton: Também sempre me
pareceu que o movimento woke é que acendeu o rastilho do fundamentalismo
islâmico. O movimento woke e alguns idiotas como os que juravam a pés juntos
sobre as armas de destruição maciça no Iraque. Manuel Martins: É para mim óbvio que os EUA e
Israel não são países com os padrões europeus de democracia, independência dos
poderes, respeito pelos direitos humanos. Para os padrões europeus, seria
impossível mandar matar alguém, tortura de terroristas, ataques que envolvem
morte de civis, guantanamo, etc. Mas conseguem os métodos europeus lidar com
países, ditaduras, regimes como o talibans, o daesh? Duvido.. Silvino iraqunita Teixeira: Ataque brilhante ao coração do
país que provoca todos os males do mundo! Seguíssemos todos a Coreia do Norte e
éramos super felizes!
jose maria: Mais um dia ganho, vou já ao largo das ratazanas buscar o cheque.
Temos as defesas
intelectualmente diminuídas pela alucinação da nossa imorredoira culpa dos
males do mundo O 11/9 foi um acto monstruoso e ignóbil, como monstruosos e ignóbeis foram
os bombardeamentos sistemáticos da Coligação Internacional, liderada pelos EUA
de Trump, sobre as populações civis das cidades sírias de Aleppo e Mossul. Mas,
como para Paulo Tunhas, parece haver terrorismo selectivo, nem uma única vez
aqui suscitou qualquer palavra de indignação contra o terrorismo americano.
Quanto ao terrorismo israelita sobre os civis palestinianos do gueto de Gaza,
também não é nada que alguma vez tenha retirado o sono ao colunista,
intelectualmente diminuído pela sua imorredoura culpa nos males do mundo.
Aproveite para ir dar um passeio até ao bugio, que é o que você merece, PT. Alberto Rei > josé maria: Gente que leva aviões com gente lá dentro e espetá-los
em edifícios, que gente é essa. Só pode ser gente chinfrada da cabeça. Estás
lá. A tua vida deve ser uma solidão, é o que deixas transparecer por aqui. Até
podes ter família, mas és mesmo só. advoga diabo: O 11 de Setembro foi
consequência da política global negativa, ultra conservadora, protagonizada por
Reagan e Thatcher em resposta à "abertura do mundo" iniciada em 68
até à queda do Muro. A reacção de Bush abriu a porta a todos os abusos,
sociais, políticos, económicos e financeiros, consubstanciados pelo crescimento
exponencial do terrorismo, agravamento dos problemas ambientais, pela crise do
sub prime, emergência de personagens como Trump e vários sucedâneos mundo fora.
Hoje a luta é ir em busca do Humanismo perdido! klaus muller > advoga diabo: Fico sem perceber se bebeste ou se essa cabecinha está
completamente queimada...
maldekstre estas kaptilo > klaus muller: A cabecinha está completamente queimada pela bebida. Alberto Rei > maldekstre estas kaptilo: Pela bebida? Hipo Tanso: Excelentíssimo artigo.
Imensamente lúcido e muito oportuno, ou talvez tardio... São estes artigos de
opinião que vão retardando a assimilação do Observador à mediocridade da
imprensa portuguesa. Carlos
Quartel: Reflexões
fundamentais sobre o nosso mundo e a nossa condição. A democracia, a
tolerância, a normal troca de opiniões divergentes, a paz, a justiça, as leis,
todo o pacote de vivências e obediências que constituem o nosso modo de vida
precisam de ser defendidas e praticadas quotidianamente. Culpamos radicalismos
e fundamentalismos mas talvez a culpa esteja na nossa desistência de todos os
dias, proclamar a nossa convicção de que não há valor que supere a liberdade,
as liberdades individuais e colectivas e que estamos dispostos a morrer em sua
defesa. O nosso fracasso não está nas ideias que proclamamos, o nosso fracasso
está na incapacidade de lutar contra a imbecilidade que enche as ruas de Veneza
ou do Bairro Alto, ou que leva milhões a comprar camisolas do Ronaldo. Esse
fracasso pode ser a porta de entrada para os mais disparatados fenómenos,
chamem-se taliban ou bispos Macedo ......
João Alves > Carlos Quartel: … ou Sousa de Belém. José Carvalho: Artigo de excelência, bastante
denso. O último parágrafo começa por anunciar uma esperança de mudança, para
terminar receando o pior. Nós os ocidentais precisamos de um inimigo que nos
una. Vai ser duro, mas venha esse inimigo! Vou ali e já volto > José Carvalho: Este inimigo já cá está: somos nós próprios, cada vez
que revelamos “a nossa desistência de proclamar a convicção de que não há valor
que supere a liberdade” (Carlos Quartel dixit [e dixit muito bem!]).
Para além
disso, opinião minha, há as prédicas católico-comunistas do “talibã” josé maria
convenientemente destiladas em Moscovo, o paraíso da Liberdade! Nazdarovie! Anarquista Coroado
> Vou ali e já volto: De Moscovo antes da queda do
Comunismo. Vou ali e já volto > Anarquista Coroado: Certo. Mas também é certo que,
após a queda do comunismo, a vodka não ficou com sabor muito diferente. De
qualquer forma, nem tudo é mau, os gulags parecem-se com guantánamos, e até os
talibans já levam com #metoo, parabéns a elas pela audácia em lutar por liberdade.
Meio Vazio: Clarividente, como seria de esperar. Só um reparo: o que aconteceu em 11 de
Setembro de 2001 em Nova Iorque não foi um "atentado" (oxalá tivesse
sido apenas isso - D. José foi alvo de um atentado, D. Carlos, nem por isso);
foi mesmo um "ataque" efectivo e trágico.
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