É esta coisa da Educação, daí que poucos comentários tenha obtido a corajosa crónica sobre o tema - Bullying e boa educação – pelo P. GONÇALO PORTOCARRERO DE ALMADA – sendo que cabe aos filhos hoje em dia estabelecer as regras de orientação dos pais e dos professores, já que a brandura educativa parece estar regulamentada e os piparotes sujeitos a reclamação superior. De resto, por vezes a má educação das crianças, atribuída hoje a “hiperactividade” é atalhada com drogas específicas calmantes, responsáveis pela concentração exigível a uma boa educação – em casa como na escola.
Bullying e boa educação /premium
Um ensino violento não favorece a
formação de uma personalidade equilibrada, mas também não é benéfica uma
educação excessivamente permissiva.
P. GONÇALO PORTOCARRERO DE ALMADA
OBSERVADOR, 25 set
2021
O
Papa Francisco, no Twitter, publicou no passado dia 8 uma inspiradora mensagem,
a propósito do começo de mais um ano lectivo: “A
educação é um dos caminhos mais eficazes para humanizar o mundo e a história. A
educação é sobretudo uma questão de amor e de responsabilidade, que se
transmite no tempo, de geração em geração.”
Nos
meus tempos de menino e moço havia alguma violência por parte dos professores –
as famosas reguadas, a palmatória dos cinco olhos, etc. – bem como esporádicas
brigas entre estudantes que, como as tempestades de verão, tão depressa
rebentavam como desapareciam, sem deixar rastos na nossa despreocupada e feliz
camaradagem estudantil. Muitos anos volvidos sobre o meu tempo de estudante no
dominicano Colégio Clenardo e no Liceu Pedro Nunes, de que também fui aluno, só
guardo boas recordações. Não me lembro de nenhum episódio de bullying, mas não
devem ter faltado.
A
verdade é que sempre houve crianças e jovens que foram vítimas da agressividade
dos colegas, mas nesse tempo ainda não se falava de bullying. Talvez alguns
miúdos sejam, por temperamento ou deficiente educação, mais irascíveis e
agressivos, ou mais tímidos e sofredores, mas todos éramos, mais ou menos,
sujeitos activos e passivos de bullying. Esses episódios não transcendiam,
porque um colega que fizesse queixinhas de outro aos professores, ou aos pais,
era imediatamente rotulado de cobarde e, como tal, sofria o ostracismo a que
eram condenados os “traidores”.
Alguns
pais, para que melhor se defendessem os filhos dos colegas mais violentos,
complementavam a sua educação com algumas aulas de artes marciais, o que nem
sempre resultava. Queixava-se, com graça, um pai: “Como batiam no meu filho na
escola, pu-lo no judo. Agora leva pancada na escola e… no judo!”
Todos os pedagogos estão de acordo
sobre a necessidade de recorrer, por razões de disciplina ou de aprendizagem, a
acções mais enérgicas. A questão é saber como se deve actuar nessas ocasiões.
Uma educação, em casa ou na escola, que seja violenta, não favorece a formação
de uma personalidade equilibrada, mas também não é benéfica uma atitude
excessivamente permissiva.
É
provável que, em tempos passados, a educação dada pela família e pela escola
fosse mais enérgica mas, felizmente agora, não só em casa, como também nos
estabelecimentos de ensino, recorre-se, em geral, a métodos mais pacíficos.
A
historiadora Elaine Sanceau,
num curioso artigo sugestivamente intitulado “Educação e pancada”, coligiu alguns interessantes testemunhos sobre a educação
portuguesa na Idade Média e não só.
Apesar da lenda negra, que ensombra a maldita ‘noite de mil anos’, “os
filhos de D. João I não foram educados à pancada. No ‘Leal Conselheiro’, D.
Duarte confessa que, desde que se lembravam, ‘do dito Senhor Rei [D. João I]
nunca em sanha houvemos ferida nem recebemos uma má palavra’.” A brandura do método a que foi submetida a ínclita
geração parece ter dado muito bons resultados porque, segundo Fernão Lopes,
nunca se soube de rei que tivesse filhos tão excelentes como os de D. João I. A este propósito, pergunta Sanceau: “Causa ou
efeito? O belo resultado deve-se antes às qualidades dos educadores, ou à dos
educandos? Tanto a umas como a outras, nos quer parecer. É evidente que D. João
I e a rainha D. Filipa, sua mulher, foram educadores exímios, mas também o
material que tinham entre mãos, para a obra educativa, era muito acima do
vulgar.”
D. João II, embora bisneto do Mestre de Aviz, era partidário de uma educação mais musculada,
segundo relatos daquele tempo. Numa ocasião em que dois pajens da corte, já
crescidos, se envolveram numa rixa, o rei mandou que ambos fossem açoitados.
Como os pais de um deles protestassem, por entenderem que o filho era grande de
mais para levar açoites, o monarca decidiu então degredá-lo, dez anos, para
Ceuta! Protestando de novo os pais, pediram ao soberano que antes castigasse o
filho com açoites e foi o que, de facto, o rei se encarregou de fazer,
pessoalmente. Também em relação ao seu filho, D. Jorge, Duque de Coimbra, D.
João II deu instruções ao seu mestre, Cataldo Siculo, para que lhe batesse sempre que entendesse
necessário. Já adulto, o pupilo confessou, curiosamente, que o método lhe tinha
sido “muito proveitoso”.
Ao contrário do que seria de supor, os
castigos corporais, que em pleno século vinte eram ainda muito frequentes nos
colégios ingleses, nem sempre provocavam nos jovens um expectável sentimento de
revolta.
Um
episódio pode ilustrar como, antigamente, uma justa punição era apreciada. Nos
colégios dos jesuítas, que têm merecida fama de excelentes pedagogos, os
castigos físicos só eram permitidos até aos 16 anos. Em Pernambuco, em
1574, um aluno do colégio da Companhia de Jesus acusou um colega que, por este
motivo, foi castigado. Em vez de ficar desagradado com a delação de que foi
vítima, o jovem açoitado ficou tão agradecido ao colega que o denunciou que fez
questão de o levar a sua casa e apresentá-lo à mãe, como seu benfeitor! E esta,
para retribuir o bem que tinha proporcionado ao filho, ofereceu-lhe uns calções
e um gibão de seda!
Esta
história, que pareceu inverosímil a Elaine Sanceau, talvez sirva de exemplo
para aqueles extremosos progenitores que, de tanto protegerem os seus rebentos,
na realidade os prejudicam ou, como se costuma dizer, ‘estragam com mimos’. Assim o disse o Padre Mestre Gaspar Barzeu, missionário flamengo, amigo e companheiro de São
Francisco Xavier: “Nunca
deixeis de castigar os meninos, porque toda a misericórdia com eles é crueldade.”
Era, aliás, desta escola o nosso Rei D. Manuel I, que dizia:
“No castigar, tereis sempre este modo: mostrar-vos-ei sempre muito severo,
trabalhando sempre mais que vos temam do que vos amem, porque o amor de
meninos traz dissolução, e isto por falta de razão.” Como é óbvio, este “amor
de meninos”, a que se refere o Venturoso, era aquela condescendência
que, ao tudo desculpar aos filhos ou
alunos, favorece a sua irresponsabilidade.
Não
se pense, contudo, que D. Manuel I era excessivamente severo porque, numa carta
de 1509, ou 1510, a Afonso de Albuquerque, ordena brandura no ensino dos jovens
indianos, por vezes vítimas da excessiva severidade dos seus mestres: “Nos é dito
que os clérigos e pessoas que ensinam os moços cristãos novos o fazem com
grande rigor, açoitando-os e apressando-os nisso mais do que a terra e costume
dela o sofre e que recebem disto grande escândalo”. Recomenda o monarca que se tenha com eles “outra
temperança”, e que os mestres “os não apressem nem castiguem em seu ensino com
rigor, mas que mansamente os levem, porque assim se fará mais fruto, e
recomendamos que assim o façais fazer”.
A
Igreja católica tem uma honrosa tradição académica, que arranca dos seus
primórdios: não em vão o seu fundador é o Mestre, e são discípulos os seus
seguidores. Na sua bimilenária história, muitos santos educadores se
destacaram, como São João Bosco, fundador dos salesianos, e São
Marcelino Champagnat, que o foi dos maristas. À sua intercessão recorramos para que, no começo de um
novo ano académico, todos os estudantes não padeçam uma injusta violência, nem
uma prejudicial benevolência, e, como o jovem Jesus de Nazaré, cresçam “em
sabedoria, estatura e graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2, 52).
EDUCAÇÃO IGREJA
CATÓLICA RELIGIÃO SOCIEDADE HISTÓRIA CULTURA
COMENTÁRIOS:
bento guerra: A virtude está no meio termo, ou
seja, depende da posição de um dos extremos
Américo Silva: O mundo mudou,
não essencialmente, mas na sua complexidade. Uma das principais funções da
linguagem, ainda pouco estudada, é potenciar a capacidade de mentir. A mulher
sexualmente matura, nua ou perto disso, exibe as nádegas e o sexo ao macho,
naturalmente a fazer um convite sexual, mas pela linguagem pode negar e acusar
o homem de comportamento inapropriado ou violação, apenas um exemplo que mostra
que a interacção humana é cada vez mais elaborada e difícil de aprender. Não
admira que na aprendizagem surjam vias anómalas, umas acabam abortadas, outras
reforçadas e persistentes. Um dos principais mecanismos de socialização,
aprendizagem e desenvolvimento eram os grupos formados espontaneamente em
cidades e aldeias, depois só nas aldeias, que englobavam todas as crianças
desde que andavam sem limitações, até uma idade de sete ou oito anos, a partir
da qual acompanhavam os adultos. Nestes grupos pouco vigiados, os mais velhos e
atinados cuidavam de que aos mais novos não sucedesse mal algum, e todos
criavam uma dinâmica lúdica de aprendizagem, e desde logo iam definindo
personalidades e caracteres. Hoje tal é absolutamente impossível, os pais
adquirem facilmente complexos de culpa, e a interacção excessivamente
manipulada leva a comportamentos desviantes e aberrantes. É a vida, e a solução
não será fácil.
Manuel Ferreira21: Eu percebo-o
muito bem, mas esperemos trovoada e da forte. Parabéns e uma boa reflexão.
Coronavirus corona: A riqueza
argumentativa das posições, das ideias do cronista, é algo assinalável. O recurso
à historicidade, sem os habituais clichés, lugares-comuns, mas com factos
documentados (e que matam muitas dessas frases-feitas), é maravilhoso.
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