Em evocação de actores cinematográficos de
talento, entre os quais Jean Paul
Belmondo e Alain Delon, ligados ao passado cultural de tantos
espíritos, como o de Jaime Nogueira Pinto,
a sua mulher Zezinha, e o amigo João Pinto Fernandes que os acasos da
vida fizeram unir e os da morte quebrar, em paralelo com os actores franceses evocados.
E o prazer das referências cinematográficas, desse passado enriquecido igualmente
por leituras cimentadoras de amizade
e de abertura reflexiva sobre o mundo e o homem. Uma bela lição - mais uma - de
JNP, cujo pensamento seguro, no âmbito variado
das suas competências, é como luz orientadora num tempo de muita rapidez e
vacuidade, necessariamente ensurdecedoras e limitativas.
O
fim de uma bela amizade: Jean-Paul Belmondo (1933-2021)/premium
Belmondo era assim. Como os grandes
intérpretes, desempenhava bem papéis muito diferentes: de marginal solitário,
em À Bout de Souffle, passava a sacerdote durante a Ocupação, em Léon Morin,
Prêtre.
JAIME
NOGUEIRA PINTO, Colunista do Observadorde um tempo presente
OBSERVADOR, 17 set 2021, 00:164
A morte de Belmondo, poucos dias depois da morte em Cape Town de um velho
e querido amigo, trouxe-me de volta o tempo em que Jean-Paul Belmondo era um
de nós. O tempo em que os livros, os filmes e quem por lá andava faziam
parte do grupo, se metiam nas nossas conversas, se misturavam com as nossas
vidas. Um tempo decisivo e glorioso, como é sempre o tempo em que nos
construímos, como num Bildungsroman – nós
à procura do mundo, e o mundo, e tudo o que ele traz de melhor e de pior, a
surpreender-nos.
Nessas surpresas vinha, cheio delas, o
cinema. Cinema à antiga, em salas monumentais
e com direito a sessão completa: Actualidades, Desenhos Animados, Trailers,
Anúncios, Primeiro e Segundo Intervalo, tudo. E aquele ritual das luzes que se
iam apagando, dos sons que se iam calando para que o mundo parasse e
recomeçasse.
O
primeiro filme protagonizado por Belmondo foi À Bout de Souffle, de Jean-Luc
Godard, rodado no
Verão de 1959 e estreado em 1960. Por cá, não sei se por causa da
censura se por qualquer outra razão alheia à “repressão fascista”, só estreou uma
década depois, ainda durante “a longa noite”, mas já na “Primavera marcelista”.
De qualquer forma, À Bout de Souffle (em português O Acossado) ia
tornar-se um filme de culto, um símbolo
de ruptura. Tanto
que, anos depois, François
Truffaut escreveria: “Il y a le
cinema avant Godard et aprés Godard”.
Godard tinha então 28 anos e, como Orson Welles
com Citizen
Kane, começava
bem.
Jean-Paul Belmondo também. Aos 27 anos já tinha desempenhado papéis secundários
em filmes de veteranos – Les Tricheurs, de Marcel Carné, À Double
Tour, de Claude Chabrol, e Sois Belle et Tais-toi, de Marc Allégret – e Godard quis
fazer dele o protagonista de À
Bout de Souffle. Seria o
arfante Michel
Piccard, um jovem
delinquente que matava um polícia, passava o filme todo a fugir das autoridades
e vivia com Jean Seberg (que queria ser jornalista mas que, entretanto, ia
vendendo jornais nos Champs Elysées) uma paixão tempestuosa e trepidante que
acabava mal. Piccard acabava pior, abatido pelos
perseguidores, nos últimos minutos da fita.
Esses anos 60 também foram, para muitos
da nossa geração, anos À Bout de Souffle; anos de aventura política – ser da
direita revolucionária em liceus e faculdades dominados pelo movimento
associativo era uma escola de vida –; anos de grandes descobertas e leituras,
de grandes conversas e amizades e de intermináveis tardes e noites de cinema.
E nesses anos, além do cinema
americano e de um grande cinema italiano, havia sobretudo o cinema francês. Belmondo,
que tinha sido boxeur e futebolista, entrou, nessa década de 60, talvez nuns 30
filmes. Filmes com
a maior parte dos realizadores europeus do tempo, com Mauro Bolognini, em La Viaccia, e com Vittorio de
Sica, em La Ciociara, contracenando com Sophia
Loren. Em 15 anos, entre À Double Tour, de Chabrol (1959), e Stavisky,
de Alain Resnais (1974),
entrou em quase 40 fitas. Algumas delas marcantes, inesquecíveis, como Une Femme est une Femme, de Godard, Un Singe en
Hiver (a partir do romance de Antoine
Blondin), de Henri Verneuil, L’Homme
de Rio, de Philippe
de Broca, Pierrot le
Fou, também de Godard, e Borsalino, de
Jacques Deray.
Borsalino, com Belmondo e o seu grande amigo Alain Delon, era uma
comédia de acção passada na Marselha dos anos trinta. Borsalino era o famoso chapéu criado em meados do
século XIX por Giuseppe Borsalino, em Alexandria (Piemonte); um chapéu de
feltro, de abas largas, que depois passou a produzir-se aos milhões. O feltro
dos Borsalino era especial, feito de pele de coelho ou de lebre. Um símbolo de
distinção.
Claude
Déray fez o guião do filme a partir do livro de Eugène Saccomano, Bandits à
Marseille. A história
anda à volta de dois jovens gângsteres marselheses – Roch
Sifredi (Alain Delon) e François Capella (Jean-Paul Belmondo) – que, depois de um choque inicial por causa de uma
mulher que partilham, se tornam amigos, sócios e cúmplices e partem à conquista
da cidade, ou melhor, da economia paralela da cidade, afastando
(definitivamente) os poderosos dos seus lugares de poder. Borsalino
saía claramente da tradição austera do “film noir”, à Jean-Pierre Melville (com
quem Belmondo também trabalhou), ou das epopeias alegóricas do poder, como os Padrinhos, de F.F. Coppola, para se estabelecer como um híbrido
de comédia e drama no sub-mundo do crime.
Em
Borsalino, Delon e Belmondo usam os clássicos chapéus como paradigma do
“marginal chique”. O
burlesco e a alegria da cavalgada ou da cruzada daquela parelha de amigos, que
partia ao assalto das fortalezas e monopólios dos caïds tradicionais,
derrubando-os em guerras violentas e implacáveis, incendiando os bares dos
rivais e metralhando-os com a famosa Thomson Camembert 1921, faziam-nos querer
ter qualquer coisa daquele “viver perigosamente” e, sobretudo, daquela amizade
indestrutível de parelha, bando ou seita.
Tinha
24 anos quando vi Borsalino pela primeira vez com o João Pinto Fernandes, que agora
morreu em Cape Town, dias antes de Jean Paul Belmondo, e a quem me uniu uma
amizade que começou por causa da política. Lembro-me
que o que mais me empolgou no filme foi a amizade e a camaradagem entre
Belmondo e Delon, naquela epopeia lúdica a que o décor dos anos trinta – os
carros, os fatos, os chapéus – dava uma nota de nostalgia gatsbiana.
A amizade de Belmondo e Delon não era
nem foi só no cinema. Os dois
tinham já filmado Sois Belle et
Tais-toi, de Marc
Allégret, ainda na obscuridade dos papéis secundários. Em Borsalino
já eram ricos e famosos e continuavam amigos, com Delon a chegar um dia às
filmagens num helicóptero com as suas iniciais gravadas – para que, no dia
seguinte, Belmondo lhe imitasse a proeza e a pose de estrela, chegando também
de helicóptero (ainda que sem iniciais). E quando, depois, Belmondo apareceu de
Ferrari, Delon pôde também apressar-se a fazer o mesmo.
Apesar
de Belmondo
ter processado Delon, cujo nome
aparecia duas vezes no cartaz de Borsalino, contra o estabelecido no contrato,
as co-estrelas reconciliaram-se depressa e não falaram mais nisso.
Também não
falavam de política. Delon foi
sempre um homem de direita, apoiante dos Le Pen, e nunca o escondeu. Belmondo abstinha-se, por princípio, de expor as suas
convicções ideológicas. Só abriu uma
excepção nas eleições de 2017, no duelo Marine Le Pen / Macron, quando declarou
que votava
Macron porque “era contra os extremismos”.
Belmondo era assim. Como os grandes intérpretes, desempenhava bem papéis
muito diferentes: de marginal solitário, em À Bout de Souffle, passava, um ano depois, a sacerdote durante a Ocupação, em Léon
Morin, Prêtre, de Jean-Pierre Melville; um filme
em que, de modo sóbrio, profundo e subtil, se punham muitas das questões que hoje se apresentam de modo frívolo, gritante e
agressivo, para intimidar e silenciar as maiorias discordantes. Em Léon Morin, Prêtre, a
história entre o Padre Morin
(Belmondo) e a viúva
Barny (Emmanuelle Riva) tem o encanto das grandes paixões e das grandes
renúncias, lembrando o Breve
Encontro, de David Lean.
Em 1965, com Godard, Belmondo encarnou o Ferdinand de Pierrot
le Fou, a
história de um pai de família que foge com a baby-sitter dos filhos (Anna
Karina) e se entrega, perante a câmara, a intermináveis e eruditos monólogos.
Em 1975, sob a direcção de Henry
Verneuil, em Peur sur la Ville, fez
de comissário Letellier, um polícia que persegue um serial killer que
aterroriza Paris. No filme, há algumas cenas de grande risco, que Belmondo
quis fazer pessoalmente, sem recorrer a duplos. Era um operacional.
Consolidara-se como “cascadeur” em L’Homme
de Rio, num dos
papéis que mais o celebrizou em França, e seria nesse estilo que se iria fixar.
Delon seguiria outro caminho, um caminho de sedutor
tranquilo, com papéis dramáticos,
como em Rocco e os
seus Irmãos e n’O Leopardo, de
Visconti. Belmondo deixaria a pele do marginal trágico de
À Bout de Souffle, do atormentado Padre Morin e do libertário
Ferdinand de Pierrot le
Fou, para se meter na pele do aventureiro
generoso, do polícia investigador, do profissional anti-crime ou do
semi-criminoso.
O
que não o impediria de, depois dos 50 anos, fazer teatro – no Teatro
Marigny, onde representou o Cyrano, de
Rostand – ou de
voltar ao cinema em 1995, como Jean Valjean, nos Miseráveis, de Hugo.
Em
Agosto de 2001, teve um AVC que o debilitou, mas fez ainda um último
filme, Un Homme et
son Chien, em 2008.
Em
França e na Europa, Jean-Paul
Belmondo simbolizou
esses anos 60 de conflitos políticos, de radicalidade ideológica, de revolução
dos costumes, mas, apesar de tudo, anos livres de cancelamentos, de proibições,
de assassinatos culturais e morais – e por isso anos de grandes amizades e de
amizades improváveis, como a sua e de Delon, que preferiam não falar do que os
separava para se centrarem no que os unia.
Quando
vim para Lisboa nos anos 60, para a Faculdade de Direito, o João Pinto Fernandes estava nas Letras, em Germânicas, e era
vice-presidente da FEN – Frente dos Estudantes Nacionalistas. Como o Belmondo,
que tantas vezes vimos juntos, era extraordinariamente alegre, inabalável de
humor perante as dificuldades. Licenciou-se em Letras, com uma tese sobre o Philip Roth,
fez a tropa em Moçambique e ficou por lá. Em 1974,
depois do 7 de Setembro, saiu para a África do Sul, onde nos voltámos a
encontrar, quando a Zezinha e eu, vindos de Angola, também lá fomos
parar. Éramos todos exilados: eu tinha um emprego e um salário de subsistência,
como tradutor, e o João era vendedor numa companhia do grupo Rembrandt. Quando
o João nos aparecia com pacotes de cigarros Gunston era a alegria dos pobres,
noite de cinema.
Continuei
a vê-lo em Lisboa, em Angola, em Moçambique e na África do Sul, na África
Austral onde desenvolvia um trabalho de liderança social e cultural junto das
comunidades portuguesas.
Morreu
em 27 de Agosto, a passear na praia de Cape Town, na margem do Atlântico Sul.
Morreu uns dias antes do Belmondo que era um de nós, do Belmondo com quem, à
semelhança de Delon, nunca tínhamos querido falar de política – até porque não
queríamos pôr fim à nossa bela amizade.
A SEXTA
COLUNA CRÓNICA OBSERVADOR CINEMA CULTURA OBITUÁRIO SOCIEDADE
COMENTÁRIOS:
Miguel Benis: Que grandes prazeres me dão estes teus artigos tão verdadeiros e
comoventes! Abraço Elvis
Wayne: Muito bom!
Grandes momentos de nostalgia que senti ao ler esta excelente crónica. klaus muller: A minha mãe (65 anos) diz que
ainda se lembra de ir ao Monumental, S. Jorge, Tivoli salas enormes com vários
andares (balcões) e ter 2 intervalos, desenhos animados, actualidades, etc..
Nos intervalos ia beber-se um café, falar com os amigos que também por lá
estivessem e fumar um cigarro(!). A minha avó (95 anos) adorou este artigo,
aparentemente só por causa do 2º parágrafo. Disse-me, também, que chegava a ir
ao cabeleireiro antes de ir ao cinema. E então se era uma "ante
estreia", meu Deus, no outro dia fazia um figurão entre as amigas.
Pediu-me para passar a mostrar-lhe sempre os artigos de J. N. P.. Eu ainda quis
avisar "Avozinha, olhe que isto não faz bem o género dele, calhou
hoje". Mas ela insistiu. Já estou arrependido de ter escolhido o dia de hoje
para gozar o dia de férias que tinha do ano passado. Eu (36 anos) já só apanhei a
figura dos arrumadores, que nos levavam aos lugares (mesmo que a sala estivesse
bem iluminada) e a quem dávamos uma gorjeta. Os velhos tempos podem
parecer-nos pirosos hoje em dia, mas não nos devemos esquecer que daqui a 50
anos também vão pensar o mesmo de nós. Duarte Correia > klaus muller:
Quando soava o gong e as luzes
se iam apagando suavemente. Tivoli, Tivoli... Éramos como MM. Bovary fascinados
pelo brilhos dos lustres no "foyer". Simplesmente Maria: Em tempos deploráveis e sem
esperança, que bom que é revisitar o passado de ontem feito de sonho e de vida.
Obrigada pela
amizade. joao
lemos: que diferença
entre as fortes amizades de ontem , que a tolerância permitia, e a falta de
tolerância de hoje , que liquida estas amizades de outrora! Manuel Lorena: Professor Jaime Nogueira Pinto
mais um artigo brilhante, desta feita a lembrar o saudoso Jean Paul Belmondo.
Numa das matinées no cinema nacional na cidade da Beira, Moçambique, nos anos
de1965 vi o filme Cartouche, onde JPB contracenava com a belíssima Claudia
Cardinale! Grande filme e grandes interpretações! José Miranda: Jaime Nogueira Pinto consegue
transmitir tantas vivências, com tanta clareza e brilhantismo que é único no
panorama nacional! António
Antunes: Grande artigo!
Parabéns! Maria
Nunes: Obrigada JNP, por
me fazer recordar esses grandes filmes com grandes actores. Tivemos a sorte de
viver na nossa juventude tempos interessantes.
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