segunda-feira, 20 de setembro de 2021

São assustadores


Textos como este do Dr. Salles, debruçado sobre a espécie de “conflito de gerações” na sociedade de hoje - tal como, de resto, existiu sempre através dos tempos, num ziguezaguear proveniente da evolução do pensamento, sim, mas também da leviandade com que cada nova etapa de génese mais ou menos altruística - (por vezes literária, apenas) - é retomada, geralmente por uma juventude exibicionista e não confrontada ainda com as batalhas da vida adulta, levando – ou não - a uma ponderação de maior serenidade e perspicácia para a retoma do equilíbrio q.b. que o bom senso exigirá.

Mas a imagem dos “alcatruzes da nora” a dar a dar, ora no cimo ora no fundo do poço, levaram-me a Fernando Pessoa e a Amália Rodrigues, que escutei com o êxtase de sempre. Vale a pena ler o primeiro e reflectir na sua ironia, e escutar a segunda na harmonia da sua voz “divina” e no sentido trágico do destino de cada um. Será mais uma achega ao sentido irónico da mensagem do Dr. Salles:

 

TEXTOS EXTRAÍDOS DA INTERNET:

Fernando Pessoa:

Os alcatruzes da nora

Os alcatruzes da nora

Andam sempre a dar e dar.

É para dentro e p’ra fora

E não sabem acabar. OBRA ÉDITA

 

Amália Rodrigues:

OS ALCATRUZES

Lá porque ando em baixo agora
Não me neguem vossa estima
Que os alcatruzes da nora, quando chora
Não andam sempre por cima

Rir da gente ninguém pode
Se o azar nos amofina
Pois se Deus não nos acode
Não há roda que mais rode
Do que a roda da má sina

Sabe-se lá, quando a sorte é boa ou má
Sabe-se lá, amanhã o que virá
Breve desfaz-se uma vida honrada e boa
Ninguém sabe, quando nasce, p'ró que nasce uma pessoa

O preciso é ser-se forte
Ser-se forte e não ter medo
Eis porque às vezes a sorte,

Como a morte
Chega sempre, tarde ou cedo

Ninguém foge ao seu destino
Nem para o que está guardado
Pois, por um condão divino
Há quem nasça pequenino
Pr'a cumprir um grande fado

Composição: Amália Rodrigues.

 

Por tradição, o povo é a maior fonte cultural.

HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO, 19.09.21

A cultura popular, sobretudo sensitiva, primária, com a tradição oral a anteceder a escrita das «lendas e narrativas», a música e as danças folclóricas a antecederem formas mais elaboradas de acordes e «ballets», a pintura rupestre a anteceder Rembrandt e Picasso…

Ou seja, o primitivismo sensitivo a assumir cada vez mais formas elaboradas, espiritualizadas num processo evolutivo das mais baixas classes sociais, as do trabalho braçal, para as mais elevadas, as da aristocracia intelectual.

Assim se estabelece o domínio cultural, político, económico e social das elites pois a intelectualidade é a génese do elitismo. O «chico espertismo» é uma corruptela deste processo.

Mas, a partir de certo momento, a estabilidade social permite que a juventude popular desperte intelectualmente (universitários oriundos do analfabetismo familiar) e assuma funções que os instalados e adormecidos filhos de «boas famílias» deixaram de conseguir assumir.

Já Platão se queixava (ou era Aristóteles?) de que a juventude não respeitava os valores dos anciãos.

Eis o que se está a passar actualmente no âmbito de um processo pacífico mas outros processos foram menos sossegados. Refiro-me, por exemplo, à Revolução Francesa e à russa de 1917 mas outras houve que engrossaram rios de sangue.

E, então, é assim: pacífica ou revolucionariamente, as bases cansam-se das elites e derrubam-nas. Eis ao que assistimos nos telejornais.

Contudo, os que sobem hoje serão derrubados dentro de cinquenta anos (ou menos) com a repetição das lamúrias platónicas (ou aristotélicas?).

Jovens, estudem mais e brinquem menos se não quiserem ser obrigados a cumprir a sina dos alcatruzes quando ficam debaixo de água.

Tags: sociologia

COMENTÁRIOS:

Anónimo 19.09.2021: Mais um excelente comentário, curto, mas de enorme alcançar.

Anónimo 20.09.2021: Já tinha de manhã lido o texto sobre a nossa muito estimada Agustina e gostei muito. 👍 Hoje já não esperava mais texto no Blog. Os Alcatruzes aborda agora um tema de sempre, que se repete infinitamente, mas sempre renovando-se com novos intervenientes. Por vezes, quando somos nós, passamos momentos difíceis e duros. Compete aos mais velhos, pela experiência já vivida, ultrapassar a dificuldade ou s dureza. Parabéns por nos fazer reflectir o nosso dia-a-dia que por vezes nem lhe damos a importância de alguns momentos vividos. Obrigado. 👏👏 Rui Bravo Martins

Anónimo, 20.09.2021: Parabéns, Dr Henrique Salles da Fonseca. Mais um ensaio, breve mas pesado no conteúdo. Um novo risco que aflora, sobretudo em certas sociedades afluentes, é o orgulho da ignorância. Para os indivíduos e para a sociedade, pode vir a ser fatal. A leitura do seu blog continua a ser estimulante. Obrigado. António Fonseca

Adriano Miranda Lima21.09.2021: Percebe-se que a evolução e as transformações humanas são operadas ou pela ordem natural da mobilidade social ou por via revolucionária. Através da primeira, espera-se que o homem e as sociedades sejam os agentes naturais de um processo pacífico e conducente à realização do progresso humano: respeito pela vida e pela condição humana, igualdade de direitos, justiça social, etc. Através da segunda via, doutrina-se e teoriza-se sobre a transformação violenta da sociedade, pela força e pela imposição coerciva exercidas por um determinado sector da sociedade, minoritário mas incumbindo-se de uma missão de vanguarda. É o caso do marxismo-leninismo. A história da humanidade tem consistido praticamente no confronto entre essas duas vias, a violenta e a pacífica. A violenta não conduziu a outro resultado senão o espezinhamento brutal da condição humana e a falência das soluções para promover o progresso social e económico. As vertentes cultural e educacional digamos que são as únicas que pontificaram, como o demonstram os ex-países socialistas, mais aptos a aproveitar o investimento capitalista do que os países onde a educação se manteve em níveis baixos ou sofríveis. Por exclusão das soluções marxistas-leninistas, ficam as soluções ditas pacíficas entregues a si mesmas e norteando-se pela crença e esperança de que a liberdade do homem é condição imprescindível para o seu progresso. Acredito piamente que sim. Mas essa liberdade é também susceptível de gerar o caos e a confusão se não for controlada por normas da sociedade. O contrário seria o retorno ao “estado de natureza”, há milénios ultrapassado pela evolução civilizacional. No entanto, por mais que os estados regulem os parâmetros da vida comunitária, o progresso humano, o verdadeiro, será tão lento como diferenciado geograficamente. Temos tendência a reflectir sobre a humanidade olhando primacialmente pelo que se passa no nosso mundo, o ocidental, mas a verdade é que a civilização só atingirá níveis superiores de progresso e autêntica dignificação da condição humana quando o nosso pensamento e as nossas teorizações olharem para o planeta como um todo. Neste momento, a Europa está praticamente vacinada contra a Covid 19 enquanto há centenas de milhões de seres humanos a aguardar pela vacinação. Neste momento, acabei de almoçar uma refeição nutritiva e suficiente, ao passo que milhões de seres humanos não têm acesso a uma refeição diária decente e equilibrada. Portanto, a meu ver, Dr. Salles da Fonseca, o problema não se resume a um confronto entre as bases e as elite; e só é geracional enquanto formos incapazes de sensibilizar e habilitar os jovens a olhar para o mundo de uma forma mais comprometida. A educação escolar é necessária mas tem de ser complementada com uma atitude cultural de empenhamento e responsabilização. Muito obrigado, Dr. Salles da Fonseca por este momento de partilha que proporcionou com o seu belo texto.

Henrique Salles da Fonseca 21.09.2021: Muito obrigado, Senhor Coronel Miranda Lima por comentário tão enriquecedor deste blog - como, aliás, vem sucedendo há anos para nosso benefício, os seus leitores. A minha escrita é grosseira, só me atenho aos «traços largos», tendo a perder-me nas nuances.. Mas é bom que nos complementemos uns aos outros. Continuemos...

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