Quando frequentei as aulas de Italiano em
Coimbra, paralelas às disciplinas obrigatórias, entre as quais um semestre de
literatura italiana, em que estudámos a “Vita
Nuova”, não integralmente, ´é certo, comprei, na “Coimbra Editora”, “LA
DIVINA COMMEDIA” em três volumes, livro que me acompanhou muitas vezes, nas
especificidades literárias ocasionais, mas que nunca cheguei a ler na
totalidade, apesar das muitas notas que acompanhavam a edição. Episódios e
frases como a da Francesca a Dante “Nessun
maggior dolore che ricordarsi del tempo felice nella miseria”, o começo do
Canto I "Nel mezzo del cammin di
nostra vita / Mi ritrovai per una selva oscura / Che la diritta via era
smarrita”, o dístico à porta do Inferno
“Lasciate ogni speranza voi ch’entrate” eram recurso ocasional, mais umas tentativas escrupulosas de
avançar na leitura, de que desisti sempre, outros valores mais altos se
levantando na vida de menos atenção pelos altos valores do conhecimento, quer eles
fossem a preguiça, quer outros trabalhos ou outras leituras mais actuais impedindo
a continuidade. Mas gostei a valer da referência a Dante, no breve estudo de Alexandra
Carita,
e aqueles estudiosos que cita que bem revelaram a projecção do extraordinário
poeta introdutor do Humanismo, precursor do Renascimento.
Dante Alighieri: da paixão exacerbada
aos 9 anos ao exílio perpétuo, a herança do homem que foi ao inferno e abriu
a porta ao Humanismo /premium
700 após a morte do autor de
"Divina Comédia", data que é assinalada com uma exposição na Fundação
Calouste Gulbenkian, um colóquio e novos livros, qual a herança que hoje lhe
reconhecemos? GETTY IMAGES
OBSERVADOR, 19 set
2021
Saber enciclopédico, poeta genial,
grande fundador da língua italiana, impulsionador da cultura para todos,
empenhado em levar a metafísica ao homem comum, defensor da divisão entre o
poder político e o poder espiritual, profundamente católico, observador exímio,
político activo, patrono da liberdade, filósofo, amante da astronomia e da
geografia, da teologia, da história e da mitologia, espírito fervoroso,
conhecedor da Antiguidade Clássica, humanista. É difícil descrever Dante Alighieri em poucas
palavras. O homem
que nos desenhou o inferno, o purgatório e o paraíso na Divina Comédia era um
ser humano agigantado pelo conhecimento, os interesses académicos e a intensa
reflexão sobre a condição terrena. 700
anos após a sua morte, ainda grita os caminhos da redenção e os dogmas da
punição num julgamento que será de cada homem em cada esquina do universo. O
pecado e a culpa, o bem e o mal, o certo e o errado, velhas questões para as
quais ainda procuramos respostas.
Portugal
prepara-se para celebrar a data, a morte d’il sommo poeta, com um conjunto de actividades com início dia 24 com
a exposição “Visões de Dante. O inferno
segundo Botticelli”, a inaugurar na Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Junta-se um colóquio internacional e vários
lançamentos de livros.
Mas
é lá, na Gulbenkian, que um rio de sangue a ferver engole pecadores e danados, seres
que sempre que tentam vir à tona são alvejados pelas setas dos centauros que
nas margens os obrigam ao afogamento. A imagem criada por Sandro
Botticelli para
ilustrar o canto XII da grande “Divina Comédia” dá corpo a uma galeria dos
horrores que se estende na obra de Dante a geografias mais profundas, onde os
vários tipos humanos, comportamentos e desvios são descritos com acutilância. Esta é uma imagem do “Inferno”, o primeiro ponto de
paragem da grande viagem ao mundo além-túmulo.
▲A primeira página da impressão
original de "A Divida Comédia", de 1472, 150 anos depois de ter sido
finalizada
Muitas
mais ditam a natureza humana que Dante fez atravessar a cultura ocidental ao
longo dos séculos. De resto, é essa condição do homem, que espelha actos e
consequências, que atrai a curiosidade dos leitores e dos críticos, leigos e
académicos, poetas e artistas. Dante é em si mesmo o protagonista do texto
que narra e que o fez chegar até hoje como o maior dos poetas italianos.
O mundo pagão na cultura clássica
Com
data de nascimento incerta, algures entre 21 de maio e 20 de junho de 1265,
em Florença, Dante é filho de uma família burguesa da cidade-estado mais
disputada politicamente. Uma formação assente na religião, nas ciências e na
palavra marca cedo o seu perfil. A paixão exacerbada por Beatriz Portinari aos
nove anos de idade define a sua literatura que desponta com Vita Nuova, um conjunto de poemas curtos dedicados à amada que no
fim da sua vida o salvará, facilitando-lhe a entrada no paraíso e a visão
de Deus em Divina Comédia.
É
um jovem politizado, desde logo por um pai empenhado no governo de Florença,
que se exalta nos conflitos militares e nas guerrilhas ideológicas. Defende
a ideia de uma divisão entre o poder político e o poder espiritual e ataca
sucessivamente um papado avesso a delimitações de influências. É Bonifácio
VIII que o retém em Roma quando chefia a
delegação do seu partido e o impede de voltar à cidade natal, em 1302. Considerado
corrupto no desempenho de um cargo político, é condenado ao exílio perpétuo e a
uma multa avultada, perdendo todos os recursos económicos.
A
fogueira como destino caso regresse a Florença dita uma verdadeira tragédia na
sua vida. Os seus
últimos 20 anos serão o reflexo de “uma profunda crise pessoal”, como afirma Jorge
Vaz de Carvalho”, tradutor
da Divina Comédia que a Imprensa Nacional lançará no início de outubro. “Ele vai andar de corte em corte com o papel, a tinta
e a pena debaixo do braço, longe da mulher e dos filhos”. A esmola dos
grandes senhores passa a ser o seu meio de subsistência a par da protecção dos
poderosos, o que lhe permite fazer alguns trabalhos diplomáticos. Sem segurança
nenhuma, a solidão será tudo o que lhe resta em cidades como Verona, Lucca ou
Ravena, onde morre a 14 de setembro de 1321, no mesmo ano em que termina o “Paraíso”, o terceiro livro da sua Comédia, que já circulava
pela península itálica e se tornava um verdadeiro sucesso com direito a
leituras públicas em Florença. A fama de grande poeta ainda lhe anima os
últimos dias, num reconhecimento sentido entre populares e intelectuais, apesar
da recusa da Igreja em aceitá-la.
“Considerado
o homem da Idade Média que opera a abertura para a Renascença”, diz a professora de Teologia Teresa Bartolomei, Dante
é aquele que vai buscar à cultura clássica o mundo pagão “como fonte de
humanismo imprescindível e que tem que ser reconhecido como tal”.
No
final de contas, a ideia que sempre defendeu ao longo da vida e que melhor
expôs em Convívio, outra das suas obras menores, vingava com estrondo: a
cultura deve ser para todos, “incluindo as mulheres”, diz à época, e só
a língua vernácula chega ao povo, explica em “De Vulgari Eloquentia”. Daí ter propositadamente escrito a sua obra-prima
em dialecto toscano, fundando as bases da língua italiana que hoje conhecemos.
Isso explica por que é que a Divina Comédia tenha sido
usada ao longo dos séculos, sobretudo no XIX, como um “monumento à união
italiana”. De resto,
esclarece Jorge Vaz de Carvalho, o texto da Comédia é a única obra medieval que ainda
hoje é linguisticamente viva. “Ele
transformou o simples falar numa língua, transformou uma fala regional numa
língua nacional. O poeta passa a ideia de que a identidade de um povo se
sustenta essencialmente na afirmação cultural, que começa por ser uma afirmação
linguística. Essa é a grande lição de Dante”, avança o também professor de Português na Universidade
Católica. Já Teresa Bartolomei, professora
de Teologia na mesma universidade,
frisa a capacidade que o autor tem em ultrapassar a divisão entre “o estilo
trágico e o estilo cómico”, quando o primeiro correspondia ao latim e o segundo
ao dialecto regional. “Uma mistura de registos assente também na utilização,
ao mesmo nível, do humilde e do sublime, permitindo que uma pessoa do povo
possa ser santa e um rei um danado execrável”,
revela ainda a professora. “Só assim se consegue dar corpo à complexidade inerente
ao homem”, continua. Lado
a lado, na obra de Dante, surgem figuras mitológicas e contemporâneos do autor,
homens do povo, políticos, eclesiásticos, personagens bíblicas, seres oriundos
de universos culturais muito diferentes.
“Ele
não aceita compartimentos fechados. É como se hoje em dia pusesse o Ronaldo a
falar com Aquiles. Ou um rapper a cantar o texto. Dante é, de
facto, um grande criador de geografias mentais e espirituais.”
Este
homem, “que tinha
a ambição de dizer que a cultura tinha de dar uma resposta global, um
intelectual que não se afastava da realidade e da vida pública e acreditava
tanto na partilha do saber, como na cultura como protagonista do crescimento da
sociedade”, como explica Teresa Bartolomei, ganhou o
calo do mundo entre homens e mulheres, pobres e ricos, aristocratas e plebeus,
cidadãos e camponeses, na guerra e na actividade política, nos livros e nos
discursos (recorde-se
os do radical Savonarola, como chama a atenção o curador da exposição da
Gulbenkian, João Carvalho Dias), em privado e em público, entre artistas e poetas. Uma
experiência de vida em que pegou para “falar como poucos da natureza humana”, diz João Figueiredo, professor de literatura na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa.
▲ Uma
das ilustrações para "A Divina Comédia" assinadas por Sandro
Botticelli, obra que também vai estar em destaque no ciclo da Gulbenkian HERITAGE IMAGES/GETTY IMAGES
“Condensar
esse saber na sua obra poética” foi o desafio que agarrou a partir do seu
“envolvimento político e ético” na sociedade florentina. E, de facto, a poesia que escreve não deixa de fora as
grandes questões éticas e espirituais analisadas à luz da política e enquanto
pensador. Veja-se o
mal e o bem, ou a vida e a morte. No fundo, o “retomar da
tradição clássica da tragédia grega, que fala a todos sobre as questões vitais
da sociedade”, continua Teresa
Bartolomei. Para
trás ficava a sua ideia de que, ao comungar do poder político e espiritual a um
só tempo, o Papa “prostitui” a Igreja e torna-se ele próprio corrupto. “Era preciso que a autoridade papal usurpadora
voltasse a ter uma iminência espiritual que merecesse a confiança religiosa. Enquanto a autoridade política devia residir na figura
do imperador de forma a terminar com as disputas entre nobres e cidades rivais”, explica Jorge Vaz de Carvalho. De Monarchia, o tratado político de Dante, destaca precisamente essa ideia. Não admira
que seja considerado um livro herético e que seja queimado na fogueira, tendo
estado na lista dos livros proibidos durante muitos séculos.
“Considerado
o homem da Idade Média que opera a abertura para a Renascença”, diz a professora de Teologia, Dante é aquele que vai buscar à cultura clássica o
mundo pagão “como fonte de humanismo imprescindível e que tem que ser
reconhecido como tal”. Essa
“escolha revolucionária” do poeta materializa-se aos olhos do mundo na figura
do seu guia
no “Inferno” e no “Purgatório”, Virgílio, o grande autor da Eneida e o poeta que Dante mais admirava. “Ele
escolhe um pagão que na cultura clássica tem um poder cognitivo completamente
autónomo do registo eclesiástico” e inova ao deixar para trás os tradicionais
guias ao mundo dos mortos feitos anjos, espíritos, cristãos e entidades
superiores.
Manifesto da redenção, tratado do
juízo final
A viagem ao além-túmulo enceta-se na
noite de quinta-feira santa da Páscoa de 1300 e termina na quarta-feira
seguinte e é levada a cabo por um homem desesperado e desiludido que procura a
salvação por via do amor. Percorre
os três estádios possíveis depois da morte, Inferno, Purgatório e Paraíso, como
já vimos, e depois de avistar danados e pecadores de toda a espécie e o próprio
Lucifer, olhar as almas dignas em purificação e a caminho da redenção, entra no
reino do inefável já pela mão da criatura amada que lhe facilita a visão de
Deus e a união com Ele, consubstanciando-se o “amor como virtude da salvação”, diz Vaz de Carvalho.
“A escritura da ‘Comédia’ tem um
valor apostólico na medida em que tem um valor de Manifesto da redenção,
tratado do juízo final, “cânone escatológico para a figura humana”, como escreveu Vasco Graça Moura, a obra maior de Dante não perde a actualidade apesar
de poder ser escrita por um homem “profunda e excessivamente católico”, como
afirma Teresa Bartolomei: “Dante
tem um tribunal interior que é a sua fé”.
Mas
se essa “resistência a pensarmos numa moral cristã, que cria balizas muito
rígidas ao nosso comportamento”, existe, ela é “mais do que uma moral
religiosa, e sim uma inspiração cristã que é no fundo a transmissão de valores
universais. Dante é a coisa mais contemporânea que existe”, considera Jorge Vaz de Carvalho. Permanece
sempre a ideia “de uma política orientada para o bem comum”, e prevalecem os
conceitos de generosidade, decência, dignidade, honestidade. “Transcende-se
qualquer catecismo e apresenta-se os valores que devem nortear a vida do
cidadão comum”, continua o
professor. De resto, para Jorge Vaz de Carvalho, os três volumes da Divina Comédia podem resumir-se
numa simples proposição:
Existe
uma vida efémera e existe uma eternidade. O que Dante faz é relembrar a toda a
gente muito empenhada nos múltiplos vícios, que não vale a pena tanta sede de
poder, tanta cupidez, porque tudo pára no momento da morte e tudo vai para a
eternidade”.
“A escritura da ‘Comédia’ tem um valor
apostólico na medida em que tem um valor de mensagem. Uma grande mensagem não
apenas cristã e religiosa, mas também cívico-política. Ela é um novo apocalipse
no sentido da revelação. Vai recuperar a velha tradição da poesia que é a ideia
de que o poeta é também mestre espiritual e a poesia tem uma função pedagógica
e moral”, refere ainda o professor da Universidade Católica. “Dante
joga com a realidade e com a imaginação, apresenta factos concretos da história
de Florença e faz-se valer de uma dimensão imaginária de um pintor como Bosch,
utilizando ainda as dimensões de memória e de profecia. Assim, toca todos os
tempos e lugares com uma poesia universal e intemporal”, esclarece Jorge Vaz de Carvalho.
▲Dante Alighieri
assume-se como a voz desse Humanismo que entra e irrompe pelo século XIV
adentro como a definitiva forma da consciência humana GETTY IMAGES
Esse
acertar de contas no momento da morte revela “uma escolha moral profunda”, diz Teresa
Bartolomei, tendo o homem nessa escolha a sua
liberdade maior. Toda a
obra de Dante premeia um “agir humano que tem subjacente um misto de liberdade
e responsabilidade”, adianta Jorge
Vaz de Carvalho. “Há a
consciência de que cada indivíduo tem uma dignidade que deve ser respeitada
mesmo na queda, mesmo do maior culpado”,
remata a professora de Teologia.
Do Renascimento a Portugal
Refutado pelo artista do Renascimento
que já se reconhece absolutamente autónomo em relação à religião, Dante
atravessa os séculos até à sua grande recuperação pelos românticos no século XIX. A sua
compreensão da ideia nacionalista será determinante para esse regresso à tona,
“ele que também lutou por uma Itália unida, que só viria a ser realidade com
Garibaldi”, avisa Jorge
Vaz de Carvalho. Já no
século XX, torna-se poeta de referência para muitos autores, sobretudo no mundo
anglo-saxónico. “T.S. Eliot e Ezra Pound são dois dos grandes que recuperam
Dante como figura imprescindível para a identidade cultural e consciência
poética do Ocidente”, diz Teresa
Bartolomei, que cita o alemão Erich Auerbach, o
autor de Mimesis, para definir Dante:
“O poeta que quer conhecer a
realidade do Homem e que descobre essa realidade na sua dimensão ultraterrena”.
Em
Portugal, a ressonância dantesca nas letras não se conhece antes do século XIX. Há versões parciais da Divina Comédia, mas a
primeira tradução integral do texto data de 1887/88, à qual se juntam no século XX mais três traduções
completas, sendo a de Vasco Graça Moura, em 1995, a de maior peso. O século XXI tem já assegurada
mais uma versão, a de Jorge Vaz de Carvalho.
Todas
reúnem o que de mais rico e complexo existe no nosso universo interpretativo em
relação à nossa própria condição e à nossa relação com os outros. Todas nos
aproximam da transcendência, aquela auto-superação humana que nos faz falta nos
momentos decisivos e nos concede a serenidade final como o maior dos bens. Acima
delas, Dante Alighieri assume-se como a voz desse Humanismo que entra e irrompe
pelo século XIV adentro como a definitiva forma da consciência humana. Até
hoje.
LIVROS LITERATURA CULTURA HISTÓRIA
COMENTÁRIOS:
António Antunes:
Muito bem! Um excelente artigo sobre Dante logo pela
manhã!
bento guerra: A essência florentina ,o homem e o amor
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