Como personagem central de uma intriga
mistificatória, que mais nos parece destinada a fazer realçar a personalidade
literária do escritor Saramago, no seu poderoso universo humanístico e
vivencial, de veia sarcástica e profundamente observadora e abrangente, a que um
estilo habitual de dialogação subversora da conexão sintáctica segundo os
modelos tradicionais da gramática clássica, acrescenta, na sua sequência
discursiva, um sentido paralelo com o veloz deslizar do tempo.
Uma personagem, pois, não da invenção do
autor, mas amplo e eficaz pretexto para uma decomposição social que parte
essencialmente da argúcia do seu narrador, numa geometria dispersa dos seus
quadros humanos funcionando como agentes motores da sua experiência e da sua
seriedade ou sarcasmo segundo um modelo de oposição salazarista, irmanado o
narrador com a sua personagem, confundida, nesse ponto, com o seu criador Fernando
Pessoa.
Eis o ponto de partida dos dados
biográficos de Ricardo Reis, segundo a
carta sobre a génese dos seus heterónimos (que transponho da Internet), carta de
Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, datada de 1935, ano da morte de
Pessoa e, como consequência, de Ricardo Reis, seu heterónimo, imaterial figura
de ficção, pois:
«Ricardo
Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no
Porto, é médico e está presentemente no Brasil…..Reis de um vago moreno mate;
…. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive
no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É
um latinista por educação alheia, e um semi helenista por educação própria….
Reis (escreve) melhor
do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é
escrever a prosa de Reis — ainda inédita — ou de Campos. A simulação é mais
fácil, até porque é mais espontânea, em verso). Lisboa, 13 de Janeiro de 1935.»
É, aparentemente, uma história banal,
esta de um homem – o médico Ricardo Reis, quarentão regressado do Brasil, após
a sua chegada no barco, provisoriamente instalado, por indicação do taxista, no
hotel Bragança, no princípio da Rua do Alecrim, onde se iniciarão amores com as
protagonistas - Lídia mulher amada, na primeira Ode de RR, segundo a expressão
epicurista e simultaneamente estóica, de comedimento sensual, no absurdo da
tragédia humana, transformada, no romance, em sensual, embora delicada, criada
de hotel e futura companheira em apartamento de vizinhança indiscreta;
Mercenda, jovem doente buscando o apoio do médico, e acabando numa relação amorosa
efémera, que não ultrapassa os beijos sensuais, no mesmo apartamento para onde se
mudará Ricardo Reis, perto da estátua de Camões, e sempre sob o coruscante
espreitar do mulherio palreiro do prédio. De permeio, como personagem
acompanhante dos problemas vivenciais de Ricardo Reis, o espectro de Fernando
Pessoa, que o acompanhará na decifração da problemática aventureira ou de
companheirismo dialogante, ao longo desse enredo naturalmente banal, (embora
largamente explorado, nos seus díspares valores amorosos), e onde figurarão
comparsas vários da comédia humana, pretexto para a expressão realista de tipos
sociais, a maioria das quais traduzindo a visão satírica da larga experiência
humana do narrador.
Uma deambulação contínua, a da
personagem central, tantas vezes sob a chuva lavando os espaços, pormenores da
agitação popular em dias festivos, e gente que preenche as ligações com as
personagens centrais, como meio para a portentosa e mordaz análise psicológica,
para além da expressão de uma variadíssima riqueza cultural do escritor, a que
não escapam as referências literárias bem como as da sabedoria popular, por
vezes expressas em verdadeiros truques de multiplicidade de vozes desfiadas no
artifício da construção sintáctica verdadeiramente transgressora da norma
discursiva.
Um nome ilustre ficcional para título do
livro. Como as figuras de mito, da epopeia ou da tragédia grega, ou mesmo de
fantasmas, que a literatura posterior não se coíbe de propor, de Shakespeare a
Óscar Wilde, ao Fausto de Goethe, ou ao próprio Eça do Mandarim simbólico. No
seu universo conta menos o enredo do que a expressão da caricatura humana,
feita através de multiplicidade de figurantes da riquíssima panorâmica social
surgida na história-pretexto, muitas vezes através da própria multiplicidade de
falas interpostas no discurso sintacticamente transgressor, como exemplifica o
passo seguinte do final da história, desfecho elucidativo desse tal “ano da morte de Ricardo Reis”, a fazer
companhia ao seu criador literário:
«Então
bateram à porta. Ricardo Reis correu, foi abrir, já prontos os braços para
recolher a lacrimosa mulher, afinal era Fernando Pessoa. Ah, é você, Esperava
outra pessoa, Se sabe o que aconteceu deve calcular que sim, creio ter-lhe dito
um dia que a Lídia tinha um irmão na Marinha, Morreu, Morreu. Estavam no quarto,
Fernando Pessoa sentado aos pés da cama, Ricardo Reis numa cadeira. Anoitecera
por completo. Meia hora passou assim, ouviram-se as pancadas de um relógio no
andar de cima, É estranho, pensou Ricardo Reis, não me lembrava deste relógio,
ou esqueci-me dele depois de o ter ouvido pela primeira vez. Fernando Pessoa
tinha as mãos sobre o joelho, os dedos entrelaçados, estava de cabeça baixa.
Sem se mexer, disse, Vim cá para lhe dizer que não tornaremos a ver-nos,
Porquê, O meu tempo chegou ao fim, lembra-se de eu lhe ter dito que só tinha
para uns meses, Lembro-me, Pois é isso, acabaram-se. Ricardo Reis subiu o nó da
gravata, levantou-se, vestiu o casaco. Foi à mesa-de-cabeceira buscar “The god
of the labyrinth”, meteu-o debaixo do braço, Então vamos, disse, Para onde é
que você vai, vou consigo. Devia ficar aqui, à espera da Lídia, Eu sei que
devia, Para a consolar do desgosto de ter ficado sem o irmão, Não lhe posso valer,
E esse livro para que é, Apesar do tempo que tive, não cheguei a acabar de
lê-lo, Não irá ter tempo, Terei o tempo todo, Engana-se, a leitura é a primeira
virtude que se perde, lembra-se. Ricardo Reis abriu o livro, viu uns sinais
incompreensíveis, uns riscos pretos, uma página suja, Já me custa ler, disse,
mas mesmo assim vou levá-lo, Para quê, Deixo o mundo aliviado de um enigma.
Saíram de casa, Fernando Pessoa ainda observou, Você não trouxe chapéu. Melhor
do que eu sabe que não se usa lá. Estavam no passeio do jardim, olhavam as
luzes pálidas do rio, a sombra ameaçadora dos montes. Então vamos, disse
Fernando Pessoa, Vamos, disse Ricardo Reis. O Adamastor não se voltou para ver,
parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui, onde o mar
se acabou e a terra espera.»
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