domingo, 12 de setembro de 2021

Um ilustre nome ficcional


Como personagem central de uma intriga mistificatória, que mais nos parece destinada a fazer realçar a personalidade literária do escritor Saramago, no seu poderoso universo humanístico e vivencial, de veia sarcástica e profundamente observadora e abrangente, a que um estilo habitual de dialogação subversora da conexão sintáctica segundo os modelos tradicionais da gramática clássica, acrescenta, na sua sequência discursiva, um sentido paralelo com o veloz deslizar do tempo.

Uma personagem, pois, não da invenção do autor, mas amplo e eficaz pretexto para uma decomposição social que parte essencialmente da argúcia do seu narrador, numa geometria dispersa dos seus quadros humanos funcionando como agentes motores da sua experiência e da sua seriedade ou sarcasmo segundo um modelo de oposição salazarista, irmanado o narrador com a sua personagem, confundida, nesse ponto, com o seu criador Fernando Pessoa.

Eis o ponto de partida dos dados biográficos de Ricardo Reis, segundo a carta sobre a génese dos seus heterónimos (que transponho da Internet), carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, datada de 1935, ano da morte de Pessoa e, como consequência, de Ricardo Reis, seu heterónimo, imaterial figura de ficção, pois:

 

«Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil…..Reis de um vago moreno mate; …. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi helenista por educação própria…. Reis (escreve) melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis — ainda inédita — ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso). Lisboa, 13 de Janeiro de 1935

 

É, aparentemente, uma história banal, esta de um homem – o médico Ricardo Reis, quarentão regressado do Brasil, após a sua chegada no barco, provisoriamente instalado, por indicação do taxista, no hotel Bragança, no princípio da Rua do Alecrim, onde se iniciarão amores com as protagonistas - Lídia mulher amada, na primeira Ode de RR, segundo a expressão epicurista e simultaneamente estóica, de comedimento sensual, no absurdo da tragédia humana, transformada, no romance, em sensual, embora delicada, criada de hotel e futura companheira em apartamento de vizinhança indiscreta; Mercenda, jovem doente buscando o apoio do médico, e acabando numa relação amorosa efémera, que não ultrapassa os beijos sensuais, no mesmo apartamento para onde se mudará Ricardo Reis, perto da estátua de Camões, e sempre sob o coruscante espreitar do mulherio palreiro do prédio. De permeio, como personagem acompanhante dos problemas vivenciais de Ricardo Reis, o espectro de Fernando Pessoa, que o acompanhará na decifração da problemática aventureira ou de companheirismo dialogante, ao longo desse enredo naturalmente banal, (embora largamente explorado, nos seus díspares valores amorosos), e onde figurarão comparsas vários da comédia humana, pretexto para a expressão realista de tipos sociais, a maioria das quais traduzindo a visão satírica da larga experiência humana do narrador.

Uma deambulação contínua, a da personagem central, tantas vezes sob a chuva lavando os espaços, pormenores da agitação popular em dias festivos, e gente que preenche as ligações com as personagens centrais, como meio para a portentosa e mordaz análise psicológica, para além da expressão de uma variadíssima riqueza cultural do escritor, a que não escapam as referências literárias bem como as da sabedoria popular, por vezes expressas em verdadeiros truques de multiplicidade de vozes desfiadas no artifício da construção sintáctica verdadeiramente transgressora da norma discursiva.

Um nome ilustre ficcional para título do livro. Como as figuras de mito, da epopeia ou da tragédia grega, ou mesmo de fantasmas, que a literatura posterior não se coíbe de propor, de Shakespeare a Óscar Wilde, ao Fausto de Goethe, ou ao próprio Eça do Mandarim simbólico. No seu universo conta menos o enredo do que a expressão da caricatura humana, feita através de multiplicidade de figurantes da riquíssima panorâmica social surgida na história-pretexto, muitas vezes através da própria multiplicidade de falas interpostas no discurso sintacticamente transgressor, como exemplifica o passo seguinte do final da história, desfecho elucidativo desse tal “ano da morte de Ricardo Reis”, a fazer companhia ao seu criador literário:

 

«Então bateram à porta. Ricardo Reis correu, foi abrir, já prontos os braços para recolher a lacrimosa mulher, afinal era Fernando Pessoa. Ah, é você, Esperava outra pessoa, Se sabe o que aconteceu deve calcular que sim, creio ter-lhe dito um dia que a Lídia tinha um irmão na Marinha, Morreu, Morreu. Estavam no quarto, Fernando Pessoa sentado aos pés da cama, Ricardo Reis numa cadeira. Anoitecera por completo. Meia hora passou assim, ouviram-se as pancadas de um relógio no andar de cima, É estranho, pensou Ricardo Reis, não me lembrava deste relógio, ou esqueci-me dele depois de o ter ouvido pela primeira vez. Fernando Pessoa tinha as mãos sobre o joelho, os dedos entrelaçados, estava de cabeça baixa. Sem se mexer, disse, Vim cá para lhe dizer que não tornaremos a ver-nos, Porquê, O meu tempo chegou ao fim, lembra-se de eu lhe ter dito que só tinha para uns meses, Lembro-me, Pois é isso, acabaram-se. Ricardo Reis subiu o nó da gravata, levantou-se, vestiu o casaco. Foi à mesa-de-cabeceira buscar “The god of the labyrinth”, meteu-o debaixo do braço, Então vamos, disse, Para onde é que você vai, vou consigo. Devia ficar aqui, à espera da Lídia, Eu sei que devia, Para a consolar do desgosto de ter ficado sem o irmão, Não lhe posso valer, E esse livro para que é, Apesar do tempo que tive, não cheguei a acabar de lê-lo, Não irá ter tempo, Terei o tempo todo, Engana-se, a leitura é a primeira virtude que se perde, lembra-se. Ricardo Reis abriu o livro, viu uns sinais incompreensíveis, uns riscos pretos, uma página suja, Já me custa ler, disse, mas mesmo assim vou levá-lo, Para quê, Deixo o mundo aliviado de um enigma. Saíram de casa, Fernando Pessoa ainda observou, Você não trouxe chapéu. Melhor do que eu sabe que não se usa lá. Estavam no passeio do jardim, olhavam as luzes pálidas do rio, a sombra ameaçadora dos montes. Então vamos, disse Fernando Pessoa, Vamos, disse Ricardo Reis. O Adamastor não se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera.»


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