Diversidade, na busca de uma quebra de
monotonia, que o seria – monotonia - se não fôssemos seres irracionalmente
perversos, racionalmente bons… ou vice-versa, na estranheza do Mal como do Bem,
da Tristeza como da Alegria, do Desgaste como da Harmonia … E da cobardia, e da
valentia… Uma picardia… dolorosa, fria… Nossa.
Num mundo de laranjas mecânicas /premium
“A falácia romântica de Rousseau, de
que é a sociedade que corrompe o homem e não o homem que corrompe a sociedade,
coloca uma cortina lisonjeira entre nós e a realidade”, escreveu Kubrick em
1972.
JAIME NOGUEIRA PINTO,
Colunista do Observador OBSERVADOR,
03 set 2021
Stanley
Kubrick (1928-1999) é um dos mais extraordinários
criadores do século XX. Digo criadores em vez de realizadores porque num tempo de decadência e
cancelamento culturais, em que a imaginação e a criação que dela resulta vão
sendo cada vez mais raras, Kubrick aparece como um grande inovador e criador.
E viveu e trabalhou em plena segunda metade do
século XX, onde não faltaram, no cinema, grandes inovadores e criadores: na
Anglo-América – Orson Welles, Elia Kazan, John Huston, Alfred Hitchcock, Billly Wilder,
John Ford, Brian de Palma – e no resto do mundo – Serguei Eisenstein, Luis Buñuel, Federico Fellinni, Luchino Visconti, Akira
Kurosawa, Werner Herzog, Jean Renoir, René Clément, Jean Luc Godard, Pedro
Almodovar. E muitos outros admiráveis “caçadores de imagens” que deixo de fora mas
a quem agradeço milhares de horas de sonho e de luz.Em quase cinquenta
anos de carreira e depois de um início de film noir, Kubric k realizou uma série de filmes magistrais sobre os
grandes temas da Humanidade e da América, começando por duas fitas protagonizadas
por Kirk Douglas – Paths of Glory (1957) e Spartakus (1960).
Como com Kubrick a verdade das coisas se impõe ao
resto, Paths of Glory é um filme antimilitarista, numa época em que
contestar o establishment militar
não estava muito na moda, que sublinha a estupidez cínica dos altos comandos que ganham
promoções e condecorações à custa de massacres da sua própria tropa. E Spartakus é uma ilustração do pensamento
nietzschiano de que a revolta é a nobreza do escravo.
Em 1962, faz a adaptação de Lolita, o livro-escândalo de Nabokov, num filme de culto com James Mason, Shelley Winters, Sue Lyon e
Peter Sellers. Depois, vem a charge à
Guerra Fria, em Dr. Strangelove
or: How I Learned to Stop Worrying and
Love the Bomb, com Sellers, George C. Scott e Sterling Hayden.
Em 1968 2001
Odisseia no Espaço, em 71 Laranja Mecânica, em 75 Barry Lindon e em
1980 um filme de terror, The
Shining, a partir do thriller´de
Stephen King. O Vietname de Kubrick ficou em Full Metal Jacket. Pelo meio deixou de parte projectos avançados
sobre o Holocausto e Napoleão. No fim fez a
sátira social Eyes Wide Shut, com Nicole
Kidman e Tom Cruise, que estreou postumamente. É toda uma obra invulgarmente original
e variada na sua universalidade.
O mecanismo da laranja
A Clockwork
Orange, A Laranja Mecânica, foi apresentado em Nova Iorque, em 19 de Dezembro
de 1971, inspirado no romance distópico de Anthony Burguess, de 1962. Numa Inglaterra futura,
Alex Delarge lidera um quatuor de delinquentes juvenis – Dim, Georgie, Pete e o
próprio Alex. São violentos, roubam, assaltam, agridem, violam, matam. A deles,
é uma violência gratuita, cobarde, sem riscos. Nas suas andanças, assaltam a
casa de campo de um escritor, Mr. Alexander e espancam-no e violam e matam-lhe
a mulher, ao som de Singing in the
Rain.
Alex,
magnificamente interpretado por Malcolm McDowell, gosta especialmente de Beethoven e particularmente da Nona Sinfonia e gosta de temperar sadicamente o mal que faz com a harmonia da música.
Mas depois do crime vem o castigo: Alex entra em
ruptura com os cúmplices, que o traem e entregam, é preso, julgado e condenado
por homicídio. Ao fim de dois anos de cárcere, voluntaria-se para uma
experiência de “aversion therapy”, um sofisticado processo pavloviano que
associa sensações desagradáveis a práticas de violência. O condenado Alex vê
projectadas no écran cenas de sexo e de brutalidade ao som de Beethoven,
enquanto lhe injectam doses de mal-estar. Assim, vai ficando pacífico e
impotente até terminar com sucesso a sua “reeducação” de duas semanas, para
grande satisfação do Ministro do Interior.
É então posto em liberdade, mas está na miséria; e
aqueles a quem prejudicou vão vingar-se. É atacado por mendigos, leva uma sova de
Dim e Georgie, que, entretanto, ingressaram na Polícia, e acaba descoberto e
punido por Mr. Alexander, o escritor agredido, que está agora numa
cadeira de rodas mas que, com a ajuda de amigos, o tortura ao som da Nona
Sinfonia. Alex tenta suicidar-se, mas acaba por ficar a trabalhar para o
Ministro, na campanha eleitoral, como testemunha-cartaz dos admiráveis feitos
da Ciência e efeitos da reeducação médica dos criminosos.
“A voz do Fascismo”
Assim se fecha o ciclo da brutalidade, o crime e castigo
segundo Burgess e Kubrick. O filme estreava num tempo de revolta juvenil e de
libertarianismo de costumes, um tempo que sucedia aos quietos anos cinquenta. A
partir dessa sua trágica ópera-bufa, Kubrick retratava a violência dos gangues
que queimavam os “sem-abrigo”, macaqueavam orgias romanas e se excitavam e
entorpeciam nos paraísos artificiais das drogas. Um mundo tão verdadeiro como o
dos políticos corruptos, dos consultores de comunicação enervados, do “recurso
à ciência” para fins eleitorais ou de “reeducação”.
Um mundo longe do mundo imaginário de paz e amor
cantado, também nesse ano de 1971, por John Lennon (que, de resto, definiria o
seu Imagine como uma espécie de
“sugar coated communist manifesto”).
Talvez por isso A Laranja Mecânica tenha sido objecto da crítica de Fred Hechinger no New York Times, que, em 13 de Fevereiro de 1972, escrevia contra Kubrick:
“Um liberal atento deve
reconhecer a voz do fascismo (…) E a tese de que o homem é irremediavelmente
corrupto é a essência do fascismo”.
As acusações de Hechinger tiveram, duas semanas
depois, a resposta de Kubrick, que contestava que o seu filme fosse uma “apologia anti-liberal e de
totalitarismo niilista”. Nessa longa carta, Kubrick, citando a sua observação da História e a
teologia cristã, negava a narrativa do homem como naturalmente bom, como um bom
selvagem corrompido pela sociedade, pelo poder organizado, pela propriedade,
pela religião. Mas acrescentava que o seu pessimismo antropológico, ou o seu
realismo, não fazia dele um tirano ou um fascista.
Depois, a propósito da terapia prisional aplicada a
Alex, sublinhava que a terapia nunca poderia ser redentora porque suprimia a
vontade e a livre escolha, transformando
a sociedade numa sociedade de laranjas mecânicas. E, sem medo, escrevia:
“O homem não é
um nobre selvagem, é um selvagem ignóbil. É irracional, brutal, fraco,
estúpido, incapaz de ser objectivo em causa própria ou quando se jogam os seus
interesses … E qualquer tentativa de criar instituições sociais baseadas na
visão falsa da natureza do homem, estará condenada ao fracasso.” E concluía: “A falácia romântica de Rousseau, de que é a sociedade que
corrompe o homem e não o homem que corrompe a sociedade, coloca uma cortina
lisonjeira entre nós e a realidade”.
Para Kubrick, Rousseau substituíra o Deus
transcendente e a sua religião pelo culto do homem naturalmente bom. E citava o
antropólogo Robert Ardrey, o “autor maldito” de The Social
Contract e African Genesis,
lembrando que, mais que anjos caídos, nós, os
seres humanos, éramos, ou também éramos, macacos
levantados do chão, com todos os instintos dos
hominídeos – de identidade, de território, de defesa do grupo. E capazes de
matar por eles.
Rousseau e os Talibãs
Reagindo ao
radical pessimismo de Kubrick e Ardrey, diria que oscilamos entre o anjo e a
besta – mas que esquecer a besta nos leva
quase sempre ao menos angelical dos mundos. Li agora nos “Arquivos” de Kubrick, editados por Alison Castle, esta polémica no New York Times. Li-a neste preciso momento, em que vemos e vivemos de perto um mundo
devastado e amedrontado pela pandemia, pelos feitos dos bons selvagens talibãs
em Cabul e do jihadismo no Norte de Moçambique ou no Sahel e até nas cidades de
França. Um mundo em que centenas de milhões de seres humanos continuam a viver
na fome, na miséria, dominados pelas tiranias mais diversas, vítimas do crime
organizado e da exploração em infinitas formas.
E, no entanto, neste mesmo mundo, o discurso oficial das grandes
organizações internacionais e multilaterais continua a ser a versão revista,
aumentada e requintada da cartilha de Rousseau, presente nos estatutos, nas
declarações, nas resoluções, nas convenções destes respeitabilíssimos areópagos
da Humanidade. Areópagos que preferem falar
do tempo, das ameaças climáticas, por mais reais e por mais estridentemente
anunciadas pela pequena profeta sueca que sejam. Ou então de novos e também
verdes e floridos “direitos humanos”, para selvagens cada vez melhores e mais
nobres e mais angelicais. Ou da protecção dos dóceis animais, que até tiveram
prioridade sobre as pessoas num voo de Cabul para Londres. E para tudo isto preparam-se agendas especiais, cancelam-se e proíbem-se
autores, práticas culturais, modos de vida. E destroem-se estátuas, mudam-se
nomes de ruas e universidades, criam-se leis especiais para os “discurso de
ódio” e impõe-se o terror e a morte moral dos dissidentes.
A nova Inquisição segue os passos do Sr. Hechinger,
esse “liberal atento”, que viu o ovo da serpente, ou o fascismo palpitante na Laranja Mecânica e no pessimismo antropológico
de Kubrick. Se fosse hoje Hollywood proibia-o. Talvez ainda o venha a fazer.
Também depende de nós deixar que o faça ou que o façam.
A SEXTA
COLUNA CRÓNICA OBSERVADOR SOCIEDADE CULTURA AFEGANISTÃO MUNDO HOMEM
COMENTÁRIOS:
Antonio Castro: Artigo muito interessante. mário
Unas: Excelente crónica. Apenas um pequena nota: Fomos macacos levantados do chão e agora somos
macacos caídos. Anjos nunca fomos. Censurado
sem razão: Este texto é incompreensível
para o portuguesito. Quantos podem dizer que viram estas obras-primas do cinema
e as entenderam? Este senhor, fascista, foi impedido numa palestra na
universidade nova, por um grupelho de anti-fascistas do BE. Foi censurado. É
este Senhor que foi apelidado de fascista. Como alguém douto disse um dia: se
aos 18 anos não és de esquerda, não tens coração. Se aos trinta te dizes de esquerda, não tens
inteligência. Manuel Matos: Magistral.
Obrigado
Tiago Figueiredo: É preciso uma aldeia para criar uma criança." Provérbio African Se o Homem
fosse "naturalmente bom", este provérbio não existiria. Nascemos selvagens, com uma diferença genética
entre humanos e outros hominídeos ainda mais selvagens não sendo maior que 4-5%
com o de chimpanzés, se levados em conta segmentos perdidos ao longo da
evolução. Não há organização social ou sociedade sem educação, nem mesmo entre
chimpanzés, sendo que os progenitores apenas exercem uma parcela dessa
influência e apenas, na melhor das hipóteses, estabelecem as fundações mais
fortes nesse processo de formação individual. Em Swahili, um outro provérbio
aponta para esta questão: Quem não for
ensinado pela mãe será ensinado pelo mundo. "O colectivo civiliza
ou bestifica o indivíduo, que por sua vez participa na civilização ou bestialização
colectiva de outros indivíduos.
josé maria Natureza é partes sem todo Alberto
Caeiro: Agora só falta o
JNP explicar o que é uma "sociedade"... advoga diabo:
O Homem é a sociedade! A questão que divide a
Humanidade desde que há registos é, como deve o colectivo agir sobre o
indivíduo. Entre, p.e., Kant ou Rousseau que viam o Homem intrinsecamente bom,
e Nietzsche que o considerava mau por natureza, encontram-se os dois lados da
barricada, Democracia, ou Ditadura de que JNP é partidário. José Paulo C Castro >
advoga diabo: O colectivo agir sobre o
indivíduo ? Pois... Conversa de regime instalado. Eu acho que o coletivo emerge
do indivíduo. De muitos ou apenas vários deles. Todo o poder, tirânico ou da
lei, depende da força que está por trás dele. Não há formulação que mude isso.
Nem com bondade natural. Tiago Figueiredo > advoga diabo: Somos intrinsecamente
selvagens, nem "bons" nem "maus", mas apenas selvagens, com
a capacidade de tanto sermos bons como maus. Reconhecer isso não implica ser
partidário da Ditadura, mas somente e apenas que a "civilidade",
ou "habilidade social", não é inata, nem mesmo entre chimpanzés.
Aprende-se. Se o ensino desta habilidade se pode fazer pela Democracia ou requer
Ditadura, mais depende do estado civilizacional dos indivíduos e do colectivo,
tanto do educando como do educador. O que não aprendemos a bem, aprendemos a mal. Francisco Correia > advoga diabo:
Tu sim, és partidário da Ditadura pois apoiaste os que
impediram JNP de dar uma conferência numa universidade. jose ricardo
da cruz pereira: Um das melhores crónicas e texto que li nos últimos anos. Somente quem leu
o livro, assistiu ao excelente filme e viveu naquela época, conseguirá entender
as verdades desta crónica. Obrigado por nos tê-la escrita Simplesmente
Maria: Vivemos tempos
em que o apadrinhamento da natureza falsa do homem tem resultados bem visíveis no deslaçar das
sociedades actuais. Na organização social dos hominídeos as regras tèm que ser
escrupulosamente cumpridas. Que viva Kubrick e que viva também Jaime Nogueira
Pinto. Carlos Quartel: Um excelente texto sobre uma personagem impar. Cada
filme é uma impiedosa análise sobre a condição humana, suas grandezas e
misérias. Com violência ou com humor corrosivo (o comandante da B52 cavalgando a
bomba) ou mesmo uma ternura imensa (os soldados franceses chorando,
acompanhando a jovem alemã). são obras de um génio. O aviso aí fica, nós somos
assim, o homem-anjo que a UE nos quer impingir não passa de um ficção. Acordem ou acabaremos todos sob
o jugo de uma teoria, uma religião ou um ditador, que nos fará em picado .... bento guerra: Já não há Candides, as redes
sociais destruíram as inocências Rui Brandao: Excelente crónica (também) sobre um excelente filme. E
um excelente tema...
Rui Lima: Foi dos filmes que vi mais que uma vez por tudo até pela banda sonora e dos
que nunca esqueci . Viver em sociedade e quase sem violência em liberdade
foi uns maiores triunfos da história é a conquista maior do ocidente e só do
ocidente . Como o conseguimos o Divino e centenas de anos de leis
implacáveis com os criminosas memórias dessa repressão do crime ( em menino o
meu avô e a minha mãe contaram-me a história do último condenado à morte ) Além
desse código penal e do medo do inferno ter um só povo as sociedade
multirraciais são muito mais violentas o resto foi educação . José Carvalho: O livro negro do Iluminismo
ainda está por escrever. Não admira: a peçonha ainda aí está e, como se vê
neste brilhante artigo, está para durar. mamadorchulo
dostugas: Excelente, no nosso caso tugas
Mecânicos.
Américo Silva: Uma bela e pertinente crónica. Não sendo acessível ao homem uma erudição
ilimitada, para compreender as altas formulações teóricas, basta observar para
onde vai o dinheiro. Rousseau e os outros artistas da revolução francesa
falavam em democracia, mas reservaram o poder judicial para si próprios, não o
entregaram ao povo. Este poder antidemocrático que os juristas fazem remontar
ao direito romano, na verdade assenta na delegação do poder arbitrário dos
senhores feudais. Conseguiram o objectivo associando-se aos detentores do
crédito, pois na verdade a justiça não é cega, vê por debaixo do pano com olhos
de lince, onde se encontram os seus interesses. Se somarmos os proventos de
juízes, advogados, e uma plêiade de figuras menores, nada será tão dispendioso
para a sociedade e com tão pouco proveito, como a justiça. Figuras que ninguém
conhece, julgam-se capazes de ultrapassar a divisão de poderes e dar ordens ao
executivo, por exemplo sobre refugiados, e implementar toda a espécie de activismos
assimilados nas faculdades. Para quem acredita no princípio da causalidade,
tudo tem uma explicação, o que não advém dos genes, advém do ambiente, e de um
ou de outro modo, a culpa não existe. O castigo não faz sentido, mas os
problemas têm que ser resolvidos. Qual a responsabilidade do juiz bonzinho
que por dúvidas e escrúpulos absolve o assassino, que continua a matar?
Quem se responsabiliza pelos crimes cometidos em saídas precárias, ou depois do
cumprimento parcial das penas? José Paulo C
Castro: E como disse alguém uma vez, na televisão e em horário
nobre, a essência da Direita é não acreditar nessa bondade natural do homem e
fazer leis de acordo com essa realidade e que equilibrem essa tendência. (a Esquerda vai logo para a supressão ou condicionamento
da escolha livre que corrompe...)
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