domingo, 26 de setembro de 2021

Discreta, humana e cautelosa


É o que, em minha opinião de leiga, Angela Merkel sempre aparentou ser. Oxalá os seus seguidores mantenham o mesmo carisma. Mas se a Alemanha, segundo o autor da crónica, André Abrantes Amaral, prossegue como “o pilar da EU”, quemantém todos os cenários em aberto relativamente à Rússia, continua com uma base financeira extremamente sólida e o seu eventual sucessor do SPD quer continuar as linhas gerais da governação de Merkel”, que mais pode ela desejar para a sua projecção? Embora - concordamos – a fragilidade e a fugacidade sejam características de tudo, na vida, incluindo estas coisas da política.

Mas ela própria, que tanto deu de si, poderia cantar como a nossa Simone de Oliveira, com voz forte e impaciente, ciente de que um dia o seu valor de mulher não arrogante nem altiva, mas eficiente e trabalhadora será reconhecido:

Que mais te posso dar?
Que mais queres tu de mim?
De mim, nada mais há
Já tudo é teu

Saudades são de ti
Ciúmes também são
E até p'ra eu chorar
Me dás razão

Ternura, amor e ódio
Tudo é teu!
Desprezo e esperança
Tudo é teu!

E os meus sonhos mortos
Pelo teu desdém
(Ai de mim)
São teus também

Que mais te posso dar?
Que mais queres de mim?
Eu só tenho de ti
Mentiras tuas

Se tu ainda queres mais
Os restos aí vão
Só tenho p'ra te dar
                                                              O meu perdão      (
De degrau em degrau)

 

Merkel, ou a arte do possível /premium

A sobrevivência política de Angela Merkel a sucessivas crises permitiu-lhe uma governação longa. Se o legado é positivo ou se limitou a ganhar tempo, só daqui a uns anos saberemos.

ANDRÉ ABRANTES AMARAL           OBSERVADOR, 26 set 2021

Henry Kissinger tinha por hábito encarar os desafios internacionais numa perspectiva de longo prazo. Quais seriam os objectivos dos EUA a 10, 15 anos? Foi esta pergunta que apresentou à Administração Kennedy aquando da crise de Berlim. O que é que seria melhor para a América, não naqueles dias de Agosto de 1961, mas no final da década?

De acordo Walter Isaacson, que em 1992 escreveu a biografia de Kissinger, Kennedy não teve tempo para seguir o seu conselho pois o Muro começou a ser construído três dias depois da sugestão de Kissinger. Um dos grandes problemas na política é precisamente esse: as inúmeras crises que puxam as decisões para o imediato e impedem uma visão a longo prazo. Kissinger, que tinha um profundo conhecimento da história, não só pelo estudo mas também derivado da sua experiência pessoal, nunca perdeu esse fio condutor do longo prazo. Apenas alguns líderes políticos conseguiram esse feito e tornaram-se estadistas. Entre eles, pensamos em Churchill, Thatcher, De Gaulle e Adenauer. Será que o futuro vai juntar Angela Merkel a este distinto grupo?

A pergunta é pertinente porque, como é referido neste texto, o tempo de Merkel foi marcado por sucessivas crises que tiveram o efeito dramático de moldarem a Chanceler à realidade do terreno. A crise financeira de 2008, a crise do euro, Vladimir Putin, a crise dos refugiados, Donald Trump, a crise climática e, finalmente, a pandemia. Merkel não teve descanso. Foram 16 anos de constantes convulsões, umas a seguir às outras, que encobriram os seus planos iniciais e entristeceram os seus mandatos.

O texto no Der Spiegel considera que, perante cada uma das crises, Merkel suspendeu as suas convicções e assumiu a necessidade de as ultrapassar o mais rapidamente possível, nem que para isso tivesse de se aliar com os adversários. Desta forma nunca foi demasiado dura com Putin, fechou acordos com Erdogan, fez o que pode para que a suspeição da América por Pequim não interferisse com os negócios das empresas alemãs na China ao mesmo tempo que tornou suas algumas das bandeiras políticas do SPD. Em jeito de conclusão, o texto refere que o balanço não é positivo, pois a Alemanha não está melhor que em 2005, a UE está mais enfraquecida e os desafios climáticos continuam por resolver. De acordo com o autos do texto a marca de Merkel reduz-se à longa duração da sua chancelaria. À imagem de uma governante que não resolveu crises, mas que se limitou a passar por cima delas.

É aqui que entra a perspectiva de longo prazo de Kissinger. Se a adoptarmos, não será em 2021 que encontramos a resposta ao legado de Merkel, mas daqui a 10, 20 anos. Vejamos o seguinte: um dos grandes estadistas alemães foi Otto von Bismarck que, por sinal, Kissinger admira. Bismarck mudou a face da Alemanha (de certa forma, criou-a) e da Europa. Enfraqueceu a França, encostou a Rússia ao seu canto, pôs o Império Austro-Húngaro no bolso e equiparou a Alemanha à Grã-Bretanha. O seu legado foi imenso, mas dramático. Os seus sucessores não conseguiram manter os precários equilíbrios internos e externos que Bismarck deixara. O mais certo é que nem Bismarck fosse capaz pois a sua estratégia de usar o poder ruidoso das massas a favor das instituições conservadoras tornava-se cada vez mais difícil. É verdade que as tragédias do século XX não se devem apenas à incapacidade da Alemanha lidar com o legado de Bismarck, mas a inaptidão dos governos alemães também não ajudou. Nesta perspectiva de longo prazo é duvidoso que o legado de Bismarck seja positivo.

Não há dúvidas que a Alemanha de 2021 está pior que a de 2005. Sucede que esse não é um problema unicamente alemão. Diz respeito a todo o Ocidente. Apesar de tudo o que sucedeu de então para cá, a Alemanha continua a ser o pilar da UE, mantém todos os cenários em aberto relativamente à Rússia, continua com uma base financeira extremamente sólida e o seu eventual sucessor do SPD quer continuar as linhas gerais da governação de Merkel. Se olharmos para as crises dos últimos 16 anos, Merkel fez o possível. Esta é a única conclusão que podemos tirar no momento em que se prepara para sair do governo. Tudo o mais necessita de tempo. De perspectiva. Do tal longo prazo que Kissinger sugeriu a Kennedy e que este não esteve disposto a aceitar.

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