Também penso que a cultura é algo que se
enraíza num domínio de firmeza, tal como as plantas que se fixam na terra, descontando,
é certo, as de raízes aéreas, com outras fontes de alimento - mais ligeiro.
Para todos os efeitos, parece fundamental uma fixação de base, e por isso,
natural é que os homens se apoiem em valores ditos racionais, sabendo que os
próprios animais não racionais se regem por instintos, como raízes da sua existência.
Estimar os valores apreendidos nos antepassados não é, pois, desdouro, mas
Thomas Mann arriscou-se a uma reacção de frieza, ao reivindicar os do seu país,
numa altura em que um Hitler não servia de exemplo a ninguém.
Mas é sempre bom saber reconhecer e
admirar tantos desses nomes de que a pátria de cada um foi enriquecida, e
Thomas Mann razão tinha para admirar na sua todos esses ilustres que ajudaram a
fortalecer espiritualmente a nação a que ele pertenceu e ajudou também a
enriquecer espiritualmente.
O conhecimento das filosofias, como de
tantos valores artísticos, parece, pois, fundamental, pese embora a
relatividade das teorias – e dos saberes – e bom era que as novas tecnologias
de comunicação não libertassem totalmente, as sociedades modernas, do interesse
pelas leituras, de todos esses que, através do tempo, ajudaram a moldar o
pensamento. E a fortalecê-lo.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 13.09.21
Quando
em 1938 Thomas Mann chegou aos
Estados Unidos fugindo ao nazismo, deu uma conferência de imprensa em que
disse: «Onde eu estiver, está a cultura alemã».
Logo
houve quem atribuísse esta frase a uma grande dose de arrogância e a
simpatia com que foi recebido ficou claramente moldada pela impressão assim
causada. Foi necessário esperar alguns anos para que essa frase fosse
explicada pelo seu irmão mais velho, Henrique, quando nas suas memórias se
refere ao episódio e o explica com a frase de Fausto: Aquilo
que de teus pais herdaste, merece-o para que o possuas.
Não
fora, pois, arrogância mas sim um profundo sentido de responsabilidade que
levara o escritor a identificar-se daquele modo com a sua própria cultura. O
conhecimento do que outros fizeram antes de si já levara Hölderlin
(1770 - 1843), o poeta de
quem se diz ter sido atacado de mansa loucura, a afirmar que somos originais
porque não sabemos nada.
Em 1518, Ulrich von Hütten (1488-1523), companheiro de Lutero, escrevia a
um amigo que, embora fosse de origem nobre, não desejava sê-lo sem o merecer: A
nobreza de nascimento é puramente acidental e, por conseguinte, insignificante
para mim. Procuro noutro local as fontes da nobreza e bebo dessa nascente. A
verdadeira nobreza é a do espírito por via das artes, das humanidades e da
filosofia que permitem à humanidade a descoberta e reivindicação da sua forma
mais elevada de dignidade, aquela que faz distinguir a pessoa daquilo que
também é: um animal.
Ou
seja, a nobreza conquista-se, não se adquire por via hereditária. Afinal, era
isso que Mann significava
quando chegou à América.
E o que é, então, a essência da cultura? É o conjunto das obras intemporais, as perenes, as que
não passam de moda, as grandes obras humanistas, as que desenvolvem o
pensamento especulativo. É a conjugação lógica de axiomas para a construção de
novos silogismos e para a definição de doutrinas inovadoras. Eis o âmago da cultura, de uma qualquer cultura: o
raciocínio especulativo, a independência relativamente à letra, a interpretação
dessa mesma letra, a busca do significado. Quanto
mais uma cultura se identificar com os valores humanistas e os promover, quanto
mais convidar ao significado, mais elevada é essa cultura.
E o que é ser culto? Será saber
muitas coisas? Não, isso é uma enciclopédia. O conhecimento dos factos não
define a cultura mas apenas a dimensão do conhecimento. O culto é aquele que
está aberto à nova interpretação, o que busca o significado.
E o que é ser educador? É dar
corpo à segunda obra espiritual da caridade convidando os outros para o
significado.
Eis
ao que as elites devem andar, a
transmitir o significado das envolvências para elevação das massas; eis ao que elas têm andado, a imprimir um cunho pessoal aos acontecimentos para
deslumbramento e alienação das massas.
Assim não se transmite o significado;
assim se esmaga quem apenas serve para servir; assim se espanta quem poderia
valer.
COMENTÁRIOS:
Anónimo,
19.2021: texto muito interessante e deveria ser
bastante divulgado
Henrique Salles da
Fonseca14.09.2021: Muito
obrigado pelo comentário. Esteja V. Exª à sua vontade para promover a
divulgação que preconiza. Melhores cumprimentos.
Anónimo 14.09.2021: Sem
divergência com o teu post, Henrique Os conceitos que introduzes de “cultura” e
de “ser culto” não são fáceis de satisfazer, particularmente quando olhamos
para o que tem acontecido ao longo da nossa vida. Onde está a cultura
quando, por exemplo, para citar o autor a que te referes -Thomas Mann - se vê
obrigado a exilar-se da Alemanha nazi e ir para os EUA para, na era McCarthy,
ver as bibliotecas das Casas da América em Viena, Salzburgo e de outras cidades
serem despojadas de obras suas, para além das de outros autores ditos
“inconvenientes”? Não terá sido por coincidência que ele regressa à Europa
em 1952, morrendo em Zurique passados 3 anos. O que dizer da dificuldade que
o “ser humano” tem de aceitar, em geral, o que é novo, o que é inovador, o que
causa ruptura com o existente, seja no âmbito das artes, a que igualmente te
referes, seja no domínio dos costumes, seja em outros aspectos? E quanto aos costumes, o século XX sofreu uma
verdadeira revolução cultural, para além da outra chinesa maoista. Estou-me a referir às relações no domínio da Família
(nós que fomos educados sob o lema Deus, Pátria e Família, teremos mais
dificuldade em aceitar certas alterações), do género, da vida sexual, da
instituição do casamento (quando, em 1963, o meu professor de Direito Civil
chamou a atenção que o contrato de casamento era a união de duas pessoas de
sexo diferente, nós rimo-nos muito, como a dizer, claro que sim, poderia ser de
outra forma?), bem como da autonomia e do internacionalismo da juventude, não
esquecendo o Maio de 68 e a própria alteração das pirâmides populacionais, com
o incremento significativo da esperança de vida, etc. O que dizer da cultura de certos regimes que
impõem parâmetros à criatividade das artes? E não evoco apenas a
Alemanha hitleriana ou a URSS de Estaline. Recordo-me bem das críticas
ideológicas e burocratas de Kruschchev a artistas plásticos soviéticos. E não é
preciso ir muito longe, Henrique, aqui no nosso burgo, quando António Ferro
procurou dinamizar os artistas “vanguardistas” através do Secretariado da
Propaganda Nacional, que chefiava, o coronel Ressano Garcia, que na altura
dirigia a Sociedade Nacional de Belas Artes, criticou-o dizendo que Ferro
apoiava artistas modernos “revolucionários sociais, sem ideal, sem Deus e sem
moral”, conforme é descrito pela Prof.ª Margarida Acciaiuoli, em “António
Ferro” (pág. 134). Estamos a falar de coisas da nossa época, Henrique…
Abraço. Carlos Traguelho
Henrique Salles da
Fonseca, 14.09.2021:
Como sempre o teu texto sobre a cultura
tem bases sólidas para apoiar a sua leitura... Maria João Botelho
Henrique Salles da
Fonseca: 14.09.2021: Muito
interessante texto e devia ser muito publicitado 👏👏 Rui
Bravo Martins
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