terça-feira, 7 de setembro de 2021

A maioria não acredita


Nesse volte face ocidental, de que trata o texto optimista de João Carlos Espada. As esquerdas piedosas e aguerridas fazem finca-pé na manutenção do domínio das forças adeptas das teorias rousseaunianas e seguintes, que nós, portugueses líricos, em boa altura, sintetizámos na linda canção da “vila morena”. Cá por mim, acho belo, esse dogma da sujeição às ordens do povo, e até também penso que o nosso Sá de Miranda em parte já o estabelecera, na sua Écloga Basto, ironicamente que fosse, entre tantas outras temáticas clássicas que aí se expõem, através da história que conta Bieito ao seu amigo Gil, este afastado, na serra, do convívio humano, em indesculpáveis jeitos individualistas, de renúncia aos bens terrenos segundo o modelo da aurea mediocritas, tentando Bieito convencê-lo da necessidade de vivermos no rebanho imposto, para vivermos felizes, história que começa em “Dia de Maio choveu”:

«31 Dia de Maio chuveu:     a quantos a água alcançou     o miolo revolveu;    houve um só que se salvou,     que ao coberto se acolheu.   Dera vista às semeadas,    as que tinha mais vezinhas;    viu armar as trovoadas,    acolhe-se às bem vedadas     das suas baixas casinhas. 

32 Ao outro dia um lhe dava     paparotes no nariz,      vinha outro que o escornava;      aí também era o juiz,
que se de riso finava.     Bradava ele: - Homens, estai!       iam-lhe c’o dedo ao olho.      Disse então: - E assi che vai?     Não creo logo em meu pai, se me desta água não molho.

33 Apaixonado qual vinha,   achou num charco que farte;   o conselho havido o tinha: molhou-se de toda a parte,   tomou-a como mezinha.   Quantos viram, lá correram:    um que salta, outro que trota,   quantas graças i fizeram!    Logo todos se entenderam:      ei-los vão nua chacota. …»

Não, não sei se João Carlos Espada tem razão na sua tese de retorno ao princípio, que Sá de Miranda também seguiu, na Carta a D. João III:  «A cabeça os membros manda; Seu rei seguem as abelhas.» Até porque já são raros os pastores, substituídos os rebanhos, nos nossos dias, pelas viaturas automóveis, mesmo entre o povo da vila morena, que elegeu a taberna ou o bar para os seus preceitos existenciais, e sempre apoiados pelos doutrinadores seus amigos, entre os quais se incluirão sempre os mais radicais, ao bom jeito talibã.

O regresso do Ocidente /premium

Um sólido movimento de ideias euro-atlantista e pró-Ocidental está a renascer na América, no Reino Unido e na Europa continental. Faríamos bem em prestar-lhe atenção.

JOÃO CARLOS ESPADA           OBSERVADOR, 06 set 2021

1Retomo hoje o tema da crónica de há quinze dias (“O abandono do Ocidente”) sobre a tragédia da retirada americana e ocidental do Afeganistão. E agradeço os inúmeros comentários (maioritariamente críticos) de que fui alvo. A liberdade de crítica é um dos alicerces do Ocidente — e é sobre o regresso do Ocidente que me proponho escrever hoje. Acredito que “o regresso do Ocidente” será possível se os erros agora cometidos forem seriamente enfrentados e livremente debatidos. E se a confiança euro-atlantista nos valores do Ocidente for reafirmada contra os tribalismos rivais, de esquerda e de direita, que os atacam — ou/e que simplesmente os desconhecem. Um sólido movimento de ideias euro-atlantista e pró-Ocidental está a renascer na América, no Reino Unido e na Europa continental. Faríamos bem em prestar-lhe atenção.

2Tem sido muito legitimamente discutido se a democracia liberal ocidental pode ser exportada para culturas não ocidentais. É um tema magno da Ciência Política que permanece em aberto e que certamente merece uma continuada conversação. Há vários (talvez não muitos) exemplos de culturas não ocidentais que adoptaram com sucesso a democracia liberal: o Japão, a Índia, a Coreia do Sul e Taiwan (aos quais poderíamos talvez acrescentar Cabo Verde e a África do Sul), para citar apenas alguns, estão no topo da lista do excepcionalismo democrático não ocidental. Mas há certamente uma muito mais longa lista de fracassos da democracia liberal em culturas não ocidentais.

3Todavia, e ao contrário do que tem sido abundantemente referido, este não é o tema central que está em causa na bizarra retirada americana e ocidental do Afeganistão.

Em primeiro lugar, porque o propósito crucial da presença americana e ocidental no Afeganistão não era nem nunca foi primordialmente promover a democracia. Foi, muito claramente desde o início, derrotar e manter sob controlo uma facção terrorista do fundamentalismo islâmico — perante a qual, lamento profundamente ter de recordar, foi agora efectuada uma bizarra capitulação.

Em segundo lugar, porque a bizarra retirada americana não foi decidida com base no alegado fracasso da construção da democracia no Afeganistão. A retirada foi decidida pela bizarra negociação do presidente Trump com os Talibãs — na qual negociação ele aceitou a exigência talibã de excluir o Governo do Afeganistão! E foi depois bizarramente aplicada pelo presidente Biden. Em ambos os casos, o que foi citado foi o chamado “interesse nacional americano”.

4Disse aqui há quinze dias, e repito sem hesitação, que este conceito de “interesse nacional americano” está a ser esvaziado por facções rivais, à esquerda e à direita, da dimensão moral que sempre distinguiu o “excepcionalismo americano” desde a Declaração de Independência de 1776.

Uma boa introdução (ainda que com 790 páginas) a esse “excepcionalismo americano” pode ser encontrada no livro What so Proudly We Hail: The American Soul in Story, Speech, and Song, editado pelos professores (e grandes amigos de Portugal) Amy Kass, Leon Kass e Diana Schaub em 2011, republicado em 2013 e de novo em 2019 (ISI Books). George F. Will, o distinto cronista do Washington Post (também ele grande amigo de Portugal), chamou-lhe simplesmente “magnífico… uma educação cívica em um volume”.

5Este “excepcionalismo americano” foi aliás defendido pelo liberal-conservador Edmund Burke no Parlamento britânicodurante uma (talvez a primeira) ‘guerra anti-colonial’, em que ele defendeu corajosamente no Parlamento britânico que os colonos ingleses na América (em guerra armada contra a metrópole britânica) estavam apenas legitimamente a defender as ancestrais liberdades parlamentares inglesas da Magna Carta de 1215. [Honra seja feita a esse ancestral sistema parlamentar britânico, Burke pôde dizer tudo isso no Parlamento sem que ninguém se atrevesse a mandá-lo para a prisão ou para o exílio — o que certamente teria sido o caso em alguns exóticos sistemas políticos ibéricos]. Um século e meio depois, por volta de 1940, outro liberal-conservador britânico — aliás de mãe americana — citou Edmund Burke e mobilizou a “special relationship’ anglo-americana para enfrentar em conjunto a peste nazi-comunista na Europa continental. Chamava-se Winston Churchill.

6É este mesmo Winston Churchill que está hoje sob ataque comum dos tribalismos de esquerda e de direita que alimentam o abandono do Ocidente. Andrew Roberts, biógrafo de Churchill e também grande amigo de Portugal (“o mais antigo aliado”, como gosta de recordar), acaba de publicar duas demolidoras críticas — na Spectator e no Telegraph, de Londres — ao caricato livro de Geoffrey Wheatcroft Churchill’s Shadow: An Astonishingly Life and Dangerous Legacy (Bodley Head, 2021).

Também de Londres, na mais recente edição da distinta The Economist, acaba de chegar uma demolidora crítica à “esquerda iliberal” e à sua confluência com a “direita iliberal” no ataque aos valores demo-liberais do Ocidente euro-atlantista. Nas suas diferentes maneiras”, diz The Economist em editorial que faz tema da capa, “ambos os extremos colocam o poder antes dos processos, os fins antes dos meios, e os interesses de grupo antes da liberdade do indivíduo”. Prossegue ainda o editorial: “A derradeira complacência seria para os liberais clássicos [por contraste com os modernos liberais progressistas iliberais] menosprezarem a ameaça [dos extremos iliberais]. Os liberais clássicos devem [must] redescobrir o seu espírito de combate”.

7Indeed they must! É a isso que chamo “o regresso do Ocidente”. E está a acontecer, como pode ser observado nas influentes publicações que citei.

A elas devo acrescentar a muito assertiva publicação on-line The American Purpose (editada pelos também grandes amigos de Portugal Francis Fukuyama e Jeffrey Gedmin). Deve também ser acrescentada a próxima realização da Conferência anual da International Churchill Society em Londres, de 7 a 9 de Outubro, bem como da Conferência anual em Praga (de 10 a 12 de Outubro) do Forum 2000, fundada pelo saudoso Vaclav Havel (no âmbito deste Forum 2000, já agora, tenho o prazer e o privilégio de presidir ao Trans-Atlantic Working Group).

Last but certainly not least, devo ainda recordar que, de 18 a 20 de Outubro, no histórico Estoril Palace Hotel — sede dos aliados anglo-americanos durante a II Guerra Mundial e berço do James Bond de Ian Fleming — terá lugar a 29ª edição anual do Estoril Political Forum. Por coincidência, ou talvez não, o tema deste ano será “On the 80th Anniversary of the Atlantic Charter: Structuring a New Alliance of Democracies”.

8Acreditem ou não, o Ocidente está de regresso.                       POLÍTICA  OCIDENTE  MUNDO  

COMENTÁRIOS:

Mario Almeida:  “ambos os extremos colocam o poder antes dos processos, os fins antes dos meios, e os interesses de grupo antes da liberdade do indivíduo A definição do PS de António Costa. À falta de um extremo oposto patrocina-se activamente o Chega. Quanto ao regresso do Ocidente… Inspirador … mas wishful thinking!         Rui Lima: Hoje no Le Figaro com chamada na capa do historiador Jacques Julliard com o título «O crepúsculo do ocidenteBem menos optimista, o Islão está em força até pelo número ocupado.          Ping PongYang: Há dias estive a ver umas fotos da aparelhagem do Prince of Wales em Portsmouth e não pude deixar de pensar no outro que foi afundado pelos Japoneses há 80 anos com parte da tripulação. É essa agora a essência do Ocidente? Um imponente chamariz para mísseis anti-tudo-e-mais-alguma-coisa, torpedos de super-cavitação e Deus sabe que mais?           João Amaro: O regresso do Ocidente? Tudo o que vejo é o a continuação da Eurábia.    Nuno Fonseca: Neste momento o excepcionalismo Americano é o da burrice colectiva, ou talvez melhor dizendo, do triunfo da desinformação e da manipulação de massas por grupos económicos que classificam de esquerda radical e comunismo a pretensão de, por exmplo «, dispor os EUA de um sistema de saúde universal. E 50% do povo concorda ! Não estou muito optimista quanto aos nossos amigos Americanos,...          advoga diabo: Enquanto se insistir no eles contra nós, no levantar muros, todos perdem. Para quando perceber de vez que a globalização acabou com isso tudo, que o mundo está condenado a entender-se?         Tiago Figueiredo > advoga diabo: Para quando perceber de vez que a globalização acabou com isso tudo... Desculpe, meu caro, mas é ilusão que "acabou com isso tudo" ("eles contra nós" e "muros"). Deu um enorme passo e avanço nesse sentido, aí sim concordo, mas ainda há muito chão a trilhar para o entendimento. Os muros e "contras" mentais que lhe são obstáculo continuam... E basta ver como se ainda se pratica e vangloria tanto o exercício da dialéctica e do contraditório, central na filosofia e política ocidental, até quando não há qualquer ponta de racionalidade em fazê-lo... É o meio feito fim, num infindável e viciante ciclo vicioso que, como fim, não leva a lugar algum.            Lourenço de Almeida: Inch Allah não seja demasiado tarde. Eu deixei de assinar o Economist há uns anos atrás, justamente porque tudo puxava para o grupo em detrimento do indivíduo, os lugares comuns, o cancelamento e a carneirada era ali igual a todo o resto.          Manuel Arriaga: Artigo que nos enche de esperança, embora o autor insista em associar a direita, ou pelo menos alguma direita (aquela onde eu estarei muito provavelmente incluído, uma vez que tenho vindo a ser alvo de censura, até por parte do Observador), aos tribalismos e outras misérias que as esquerdas nos têm imposto ao longo dos tempos. É pena! Porque as direitas, sejam elas quais forem, não têm feito outra coisa senão lutar, mais ou menos veementemente, pelo regresso do Ocidente...       Tiago Figueiredo: Assim espero, que esteja de regresso, mais focado em consolidar as fundações, arrumar e defender os valores da própria casa e menos em se aventurar em casas distantes.       Liberales Semper Erexitque > Tiago Figueiredo: Eu sou insuspeito de ser fã de Michael Moore, mas ele tinha razão em Farenheit 9/11 quando apelava a que as tropas americanas só fossem enviadas em último caso, em caso de extrema necessidade.             Tiago Figueiredo > Liberales Semper Erexitque: Que se tivesse feito a invasão para eliminar ou pelo menos ferir gravemente e forma cirúrgica a Al Qaeda e os seus campos, e não podendo fazê-lo de outra forma que não pelo envio de tropas americanas, e depois vindo embora tão rapidamente para depois exercer outro tipo de pressões e influências, ou até mesmo buscado uma solução de estabilização envolvendo a ONU com países vizinhos, era uma coisa, mas ficar lá e desperdiçar tantas vidas e recursos a tentar transformar e consolidar um país tão atrasado no tempo... Foi um erro, um enorme e muito lamentável erro, como se veio a constatar. Se até aqui em Portugal, com mais de 20 anos de paz na UE, ainda temos que conviver com mentalidades cavernícolas que são tão difíceis e demoradas a mudar, imagine num país como o Afeganistão, onde a sociedade ainda tem uma base tribal...           Liberales Semper Erexitque: O Ocidente está de volta desde que conseguiu amansar os católicos, essa peste das trevas, coisa que, em Inglaterra a que João Carlos Espada é tão apegado, significou que o seu rei passou a ser cabeça da nova igreja anglicana. No continente europeu o processo não foi o mesmo, mas o que importa foi que acabou também com a separação do Estado em relação a uma certa igreja com provas dadas de obscurantismo, fanatismo, intolerância e violência. Talvez se possa dizer, meramente observando a longa História do Ocidente, que aquilo que ele deveria sempre temer são as religiões, e não precisamos de ir mais longe do que o século XX para nos lembrarmos do estrago que fizeram as religiões marxistas e os seus espelhos fascistas. Ah, isso de religiões hegemónicas já acabou, agora não há ameaças no horizonte, podem-me dizer alguns mais distraídos. Mas olhem que não, olhem que não! Lourenço de Almeida > Liberales Semper Erexitque: Nunca se lhe ocorreu perguntar o que é que a Europa teve de diferente ao longo dos últimos 2 mil anos que fez com que se tornasse na zona mais progressista do mundo, não? Ou a igreja e a religião cristãs, católica e depois também a protestante, nisso não teve influencia nenhuma?! Se a igreja puxa para baixo, o triunfo do ocidente é um paradoxo. Se a igreja é irrelevante. o paradoxo é culpá-la seja do que for. Para sua informação, praticamente a única diferença entre a igreja anglicana e a católica é justamente o Papa que ali é o monarca. Do ponto de vista religioso a diferença é tão insignificante que quando um padre anglicano - casado e tudo - se converte ao catolicismo, mantém-se padre católico, com mulher, filhos e tudo, se for o caso.          Karoshi > Lourenço de Almeida: Parece-me que aquilo que tornou a Europa um pouco melhor do que o resto do mundo foi apenas o desenvolvimento da ciência, dos sistemas de segurança social e uma maior partilha e separação de poderes. Não foi o fanatismo religioso absolutista e dogmático.                Rui Lima: É caso para dizer Deus o escute e ajude no regresso do Ocidente, esse retorno deve começar em muitas das grandes cidades da Europa, onde em grande zonas não há nada de Ocidente dos habitantes a língua do vestir ao comer das lojas as rezas da sujidade aos cafés.            klaus muller: Acho piada à lista de "grandes amigos de Portugal" com que somos orgulhosamente brindados por JCE. Não que venha daí algum mal ao mundo, bem pelo contrário. Só que eu preferiria que Portugal não tivesse "grandes amigos" e, inclusivamente, que fosse odiado à força toda. Significaria que seríamos poderosos e ricos. Alguém odeia a Bolívia, p ex.? Já os States são odiados por meio mundo, até por aqueles que tudo fazem para lá entrarem.           Lourenço de Almeida > klaus muller: Nem sempre é mau estar "orgulhosamente sós". Aliás, como disse o Churchill quando havia a hipótese de serem invadidos pelos nazis: "...whatever happened in France would make no difference to the resolve of Britain and the British Empire to fight on, if necessary for years, if necessary alone."            voando sobre um ninho de cucos: Eu quero crer que o articulista tem razão e que vai mesmo haver entendimento entre as partes interessadas para o necessário regresso. Se tal não vier a acontecer, então enfrentamos o definhamento, a perda da nossa voz no mundo. O ocidente ainda é o principal ponto de luz num mundo cada vez mais conturbado. Não desejar e lutar pelo regresso do Ocidente será resignar perante um retrocesso civilizacional. Para tal regresso torna-se necessário o combate do wokismo. Gostaria de ter lido mais sobre o que o articulista considera os novos ventos do euro-atlantismo, expressão que entendo na generalidade mas que assume novas dimensões perante o mapa político recente e o que se passa nos EUA.

 

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