sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Ó glória de mandar!


E os fogachos da fama. São momentos transitórios mas ridículos, que mostram quanto a Humanidade ondula, ao sabor dos ventos. Como as águas eternas dos lagos ou dos oceanos. Mais pobre em força, todavia, do que aquelas. E por isso mais mesquinha e risível e pouco convincente. Os livros de Hergé “pasarán”, é claro, eternos na graça e no movimento.

A glória de Hergé /premium

Os inimigos da imaginação que querem fechar o mundo na sua prisão para que os nossos olhos não se dirijam para o desconhecido são dignos merecedores de todos os insultos que o Capitão Haddock proferiu

PAULO TUNHAS

OBSERVADOR, 23 set 2021

No outro dia, Sérgio Sousa Pinto publicou, no Expresso, um artigo, “A irmandade dos idiotas”, sobre um episódio característico desta nossa época, “inverosímil de tão estúpida que é”, como ele escreve: a incineração de cerca de trinta livros, no Canadá, sob a supervisão de uma senhora, Suzy Kies, por os julgarem atentatórios da valente nação índia (já não se pode dizer “tribo”) Abenaki. Entre os livros que a senhora Kies julgou por bem cometer às chamas encontravam-se vários álbuns de histórias aos quadradinhos do Asterix, do Lucky Luke e do Tintim. O primeiro-ministro mais woke do mundo, Justin Trudeau, emitiu umas tímidas reservas contra o processo, mas fez notar que, não sendo índio, não lhe cabia emitir considerações sobre o modo como como os índios lidavam com aquilo que julgavam ofensivo para a sua “auto-estima”.

A senhora Kies reclamava, suponho que para justificar a sua missão purificadora, ter no seu sangue uma forte presença de sangue Abenaki, coisa que posteriormente se soube ser falsa, a exemplo de outras descendências maravilhosas, como, nos Estados Unidos, a da senadora Elizabeth Warren, a “Pocahontas” de Trump. Há muitos, muitos casos assim. Inventar a pertença imaginária a uma comunidade oprimida no passado pode dar um jeito dos diabos no avanço de uma carreira política. Permite comer o bolo e, ao mesmo tempo, guardá-lo muito bem guardadinho. É-se branquinho como tudo, um cara-pálida de gema, mas tem-se uma alma pele-vermelha que, enquanto não for conduzida às planícies do Grande Manitu, nos ajuda a ganhar a vidinha com proveito, enganando os tolos. E isto sem ter de viver, com a squaw e os papuses, num modesto tipi ou sem ser submetido aos dolorosos rituais de iniciação por que passou Richard Harris em A Man Called Horse. A época, “inverosímil de tão estúpida que é”, favorece a aldrabice e recompensa-a abundantemente.

Estas histórias de purificação por fogos reais ou metafóricos fazem parte da nossa paisagem contemporânea e vamos ter que viver com elas durante muito tempo. O problema é que a inverosimilhança, tornada sistema de pensamento, lentamente vai destruindo tudo, tornando falsa a nossa vida e corrupta a nossa memória. Convida-nos a renegar o prazer tido no passado, inclusive o prazer da infância. A estupidez inverosímil torna irreal o mundo da imaginação que é a nossa via de acesso privilegiada ao mundo humano. Sobra, idealmente, apenas uma lisa superfície quadriculada onde se inscrevem meticulosamente todos os delírios que nos obrigam a uma má-consciência arbitrariamente imposta de cima. Asterix e Lucky Luke foram pecados inexpiáveis pelos quais temos de pagar. E com os gestos de contrição todos que a religião woke quiser inventar. O grande ataque à imaginação, com vista à sua excisão, segue o seu curso aparentemente inexorável. Há, nos Estados Unidos, estados em que os manuais escolares não podem falar do mar, porque as crianças desses estados supostamente não terão nunca visto o mar e poderão experimentar uma perda de “auto-estima” que os fará sofrer terrivelmente. Noutros, o mesmo se passa com as montanhas. E por aí adiante.

O problema com o Tintim, se me é permitido, é ainda mais grave. Porque o que Hergé fez foi criar uma das poucas obras de cultura popular que ascendeu ao patamar da verdadeira arte, por uma conjunção improvável de um talento gráfico extraordinário, que nos faz reconhecer instantaneamente cada quadradinho dos seus livros, que vive na nossa memória, e de um génio narrativo que lhe permite criar personagens e situações que perduram para lá do encanto passageiro do divertimento. Há mesmo um maravilhamento sempre renovado que não pode ser reduzido a uma revisitação do momento inaugural em que, na infância, descobrimos as suas histórias. Por mais que saibamos de cor todos os desenhos e todas as peripécias, há sempre algo de novo, algo que começa pela primeira vez, a cada leitura. O prazer que temos com aquilo é tudo menos regressivo. Não se trata de voltar ao passado, a um universo de inocência. Trata-se de descobrir, como se fosse sempre pela primeira vez, a imaginação criadora em acção. Em acção de criação do mundo.

E essa criação do mundo faz-nos entrar em contacto com o desconhecido e olhar para o já conhecido de forma nova. Há, obviamente, como em toda a arte, lugar para o preconceito. Toda a arte se encontra sempre doente de alguma coisa. Mas é a máxima expressão da inverosímil estupidez da época, para voltar a falar como Sérgio Sousa Pinto, pensar que o preconceito (que fecha ao outro) é, nas aventuras de Tintim, mais importante do que a descoberta (que abre ao outro). Não há, em Hergé, comparação entre uma coisa e outra. É a descoberta que, a todo o instante, ganha. E ganha com o mistério todo que é só seu, o mistério da descoberta permanente do mundo. É a glória de Hergé.

Entre a lisa superfície quadriculada da wokeness, da tal “irmandade dos idiotas”, e os quadradinhos de Hergé, a escolha é imediata. É a escolha entre a subjugação e a liberdade. Por isso, os nossos tutores woke, os inimigos da imaginação que querem fechar o mundo na sua prisão para que os nossos olhos não se dirijam para o desconhecido, são dignos merecedores de todos os insultos que o Capitão Haddock proferiu desde que apareceu nas aventuras de Tintim:

Analfabetos diplomados! Canibais! Cercopitecos! Cretinos dos Alpes! Ectoplasmas! Extractos de pepinos de conserva! Metralhadores de cueiros! Micróbios de cólera! Protozoários! Sementes de valdevinos! Zuavos!

Como há cerca de duzentos e vinte insultos, segundo cálculos sábios, fico-me por estes. Mas subscrevo todos os outros também. E, se aparecer alguém a discordar de mim, estou pronto, depois de analisar a lista, a escolher os que me parecerem mais convenientes a cada caso particular. E até a inventar algum novo, se o génio me assistir. Já tenho, aliás, um na manga: Espécie de bazuco!

POLITICAMENTE CORRETO SOCIEDADE

COMENTÁRIOS:

Jorge Carvalho: Excelente põe o ridículo e o absurdo escancarados .             Carminda Damiao: Muito, muito bom.                   josé mariaCarminda Damiao: Tintin, Astérix, Lucky Luke ou Pocahontas são algumas das personagens que desapareceram das estantes de algumas bibliotecas escolares no Canadá. Ao todo, quase 5 mil livros terão sido destruídos e 30 deles terão sido queimados num ritual de “purificação pelas chamas”, como forma de reconciliação com os povos indígenas. A decisão de destruir os livros considerados racistas (4.716, uma média de 157 livros por biblioteca) foi do Conselho Escolar Católico de Providence, que tem a seu cargo 30 escolas católicas no sudoeste de Ontário.          Lourenço de Almeida: Perfeito!               Mario Areias: "Espécie de bazuco". O génio assistiu-o.                   José Ramos: Subscrevo todos os insultos do bravo Capitão Haddock e acrescento ainda alguns mais sumarentos e da minha lavra. Infelizmente não os posso escrever porque o comité moderador do Observador me manda SEMPRE para a "moderação" e duvido mesmo que este comentário seja publicado.           Theodor Adorno: Arte racista não é arte, é um atentado à dignidade humana.           António Sennfeltb> Theodor Adorno: "Arte racista"? Ou é arte, ou não é arte; o resto é conversa dita politicamente correcta! E, já agora, aonde é que o Tintin cometeu um atentado à dignidade humana?            Lourenço de Almeida > Theodor Adorno: Boa parte da arte africana é racista. Os nossos artistas remetem-se normalmente a imagens, cores, materiais, formas e símbolos absolutamente particulares da etnia à qual pertencem. Não promove necessariamente o racismo, mas é em si mesma racista. Quer dizer que não há arte africana?!            Ed 7: Todos os chalupas ‘woke’ e quejandos devem ser vigiados de perto, de modo a evitar que provoquem danos irreversíveis ao património e pessoas caso estejam a solta na sua deriva destrutiva ou espasmos esquizofrénicos. Manuel Martins: Excelente análise. É habitual nos incultos e radicais , a inveja da capacidade dos outros. Tal como os talibans que destruíram a arte que diziam infiel, move-os a beleza e poder da arte do inimigo. Esta gente vê política em toda a arte, e são perigosos porque odeiam a liberdade, a criatividade, a capacidade que a arte tem de ser disruptiva, chocar, questionar, fazer pensar. São gente perigosa, sem capacidade crítica, que quer destruir estátuas, retirar pinturas, queimar livros, porque incomodam. São perigosos porque têm poder, pois censuram quem não cria como eles vêem o mundo, não patrocinando, não promovendo, não expondo, despedindo , censurando, não comprando o seu produto. É a censura a retornar a este país numa câmara municipal, comissão ou departamento do estado perto de si...           António Sennfelt: Viva Tintin! Viva o capitão Hadock! Viva o professor Tournesol! Viva os inseparáveis Dupont e Dupond! Viva a Castafiore! Viva o senhor Oliveira da Figueira! Viva Hergé e abaixo as fogueiras da nova Inquisição!              maldekstre estas kaptiloAntónio Sennfelt: Ou seja, abaixo a esquerda. mamadorchulo dostugas: Por aqui também não faltam burros como essa Suzy Kies.           maldekstre estas kaptilo > mamadorchulo dostugas: Bem observado. São verdadeiros asnos, jumentos e e jericos. João Távora Maravilha > advoga diabo: Hergé e quejandos foram fruto da sua circunstância. Há hoje outros "Hergés" que nada, pelo contrário, ficam a dever-lhes em capacidade imaginativa, fazem-no obedecendo ao mundo que os rodeia, bem mais evoluído como até PT concordará. Por mais notáveis que sejam obras que envenenem o presente pertencem aos museus!    Francisco Correia  >advoga diabo: E porque não se queimam os museus?            José Neto > Francisco Correia: "Porque não se queimam os museus?" Fique calado, que alguém agarra a ideia! João Floriano > advoga diabo: E como há outros «Hergés» mais de acordo com os ventos que sopram, vamos lá queimar tudo o que envenena o presente: comecemos pela Ilíada e Odisseia. Os Lusíadas vão a seguir e claro Tudo o Vento Levou passa a ser lido às escondidas. Onde é que isto contribui para um mundo mais evoluído? Quem souber, responda. Contribui isso sim para um mundo sem memória. Pobre Castafiore!           maldekstre estas kaptilo > João Floriano: Chamo-o à atenção para lhe dar nota de que está a responder a um perfeito e completo atra sa do men tal. Se acha que vale a pena perder o seu tempo...            maldekstre estas kaptilo > Francisco Correia: Chamo-o à atenção para lhe dar nota de que está a responder a um perfeito e completo atra sa do men tal. Se acha que vale a pena perder o seu tempo...               Anarquista Coroado > maldekstre estas kaptilo: Ouvi dizer que a advoga diabo era uma tal Ferreira que foi expulsa de O Público por excesso de prática de censura como moderadora.        Carlos Quartel: Uma lufada semanal de bom senso, que bastante falta faz, neste universo a caminhar para a loucura e para o perigoso preconceito. Seguindo os livros para a fogueira, chegará o tempo da purificação pelo fogo, de todos os incapazes de verem a resplandecente verdade. Uma nova estirpe de talibans... a postura é a mesma: Temos a receita para felicidade eterna, quem não cumpre. deve ser removido . Ameaça real, pouco levada a sério ...tempo de acordar Manuel Lourenço: Obrigado! Eu acrescentava uns adjectivos (para mais sendo o capitão Haddock um homem do mar): "alforrecas espongiformes" !!!          bento guerra: Tam-Tam           Nuno Filipe: Para quando uns anormais “portugueses” que não o deveriam de ser , o melhor mesmo era irem-se embora para outro país a quererem fazer o mesmo em Portugal? Sérgio Coelho: Excelente! Vivemos tempos difíceis e quase somos obrigados a seguir a carneirada e as "redes socias" e o politicamente correcto e quase não podemos ter uma opinião pois somos logo "fascistas, xenófobos, racistas, etc"... O planeta parece podre e moribundo, e não apenas ambientalmente!           Hipo Tanso: Um artigo verdadeiramente exemplar sob muitos aspectos. Humor finíssimo a culminar no fim com um tiro de bazuca!                 Américo Silva: Parabéns pela crónica. Ser judeu traz muitas vantagens. O judeu não pretende converter ninguém, não publica tudo o que sabe, está em quase todo o lado, estabeleceu uma rede universal de confiança. Por isso sobreviveu e prosperou na idade média, no absolutismo, na república, em muitas circunstâncias adversas. Hoje vivemos fanatismos, crenças, perseguições, despotismos variados, saques e presúrias. Façamos como o judeu. Anarquista Coroado > Américo Silva: Sábio comentário. E não há escolha possível.

 

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