Com implicações modernas. Um texto de muito
interesse, de Bruno Cardoso Reis, cujas
personagens políticas passaram na minha vida e que revi em tempos, na leitura
do fascinante livro de Jung Chang – “Cisnes Selvagens” – sobre três
gerações de mulheres (e respectivos chefes chineses, com a brutalidade – que me
impressionou, não só na questão dos pés atados da mulher chinesa, como no
confronto das histórias de dois governantes chineses – Chiang Kai Check, o simpático, e o revolucionário Mao, além do desenho de uma vasta história
real primorosamente aí contada. E este ensaio de Bruno Cardoso Reis, na sua clareza narrativa, e interpretação dos elos políticos e económicos estabelecidos
com essa viagem marcante (inaugural) de Nixon à China, foi para mim um prazer de leitura
evocativa, de nomes lidos nos jornais ou escutados - em África – ainda apenas
pela Rádio, nos noticiários ou em raros programas políticos.
Uma semana que mudou o mundo, uma
simples viagem à China. Mas Putin dirá o
mesmo, hoje, com mais orgulho ainda, depois de iniciar a sua guerra, há já três
dias, precedida de idêntica visita à China, a Xi
Jinping, aquando da abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno, «e celebrou, em meio às tensões na fronteira com a
Ucrânia, as relações 'sem precedentes' com o gigante asiático.» E tudo isso para mudar o seu mundo. E o nosso, mas em catástrofe.
Notícias da
Internet (MUNDO):
«Os países anunciaram planos de colaboração em várias áreas,
incluindo espacial, mudanças climáticas, inteligência artificial e controle da
internet.
Os líderes disseram que não vão tolerar tentativas estrangeiras de minar a estabilidade de suas regiões e que vão combater qualquer interferência e apoio a revoluções em suas áreas de influência."[A Rússia e a China] pretendem combater a interferência de forças externas nos assuntos internos de países soberanos sob qualquer pretexto", diz o comunicado. "[Ambos] se opõem às 'revoluções coloridas' e aumentarão a cooperação nas áreas mencionadas".
"Revoluções coloridas" é o termo usado para se referir às manifestações
políticas de oposição nas ex-repúblicas soviéticas que aproximaram Geórgia,
Ucrânia e Quirguistão dos EUA nos anos 2000.
A China acusa os Estados Unidos de colocarem lenha nos protestos
de Hong Kong e apoiarem a independência de Taiwan. Putin acusa os americanos de
desestabilizar a Ucrânia.
Putin viajou à China para a
abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno e se tornou o primeiro líder mundial a ser recebido para uma reunião
bilateral por Xi Jinping desde o início da pandemia, há quase dois anos.
"Nossas relações bilaterais progrediram em um espírito de
amizade e de associação estratégica. São relações realmente sem
precedentes", disse o presidente russo, que também elogiou o vínculo como
"um exemplo de relação digna na qual cada um ajuda e apoia o outro em seu
desenvolvimento".
Os dois países também afirmaram no
comunicado conjunto que o novo
relacionamento é superior a qualquer aliança política ou militar da época da
Guerra Fria.»
O texto de BCR:
Nixon foi à China, passou pelos Açores,
mudou o Mundo
Um ensaio de BRUNO CARDOSO REIS.
OBSERVADOR, 22
fev 2022
Índice
Das costas voltadas até à diplomacia do Ping-Pong.
Da Terceira a Pequim, ou realismo versus ideologia.
Nixon na China contém lições úteis para hoje?
Há
cinquenta anos encontravam-se em Pequim dois dos líderes políticos mais
controversos do último século: o presidente norte-americano Richard Nixon (1913-1994) e o dirigente comunista chinês Mao Zedong (1893-1976). Esta foi
também a primeira visita de um Presidente norte-americano à China. A
viagem marcou uma viragem nas relações entre os dois países que marcou a
fase final da Guerra Fria e influenciou a política
internacional até hoje.
A semana que mudou o mundo?
Nixon
não hesitou, no seu discurso de
despedida, em qualificar os dias que passou na China, entre 21 e 28 de fevereiro de 1972, como “a
semana que mudou o Mundo”. O encontro
foi, realmente, um marco na política internacional, tornando pública para todos
– graças a dois aviões cheios de jornalistas norte-americanos – uma
extraordinária aproximação entre os EUA e a China comunista com um enorme
impacto na política, na economia e na estratégica global durante as décadas
seguintes. Nas minhas
pesquisas ainda cheguei – em 2003 – a entrevistar um dos 13 membros da
pequena equipa que acompanhou Nixon, o então recém-nomeado assessor militar
do presidente, Brent Scowcroft.
Embora a conversa tivesse por foco outros temas, acabou por recair
acessoriamente nessa visita
icónica. Scowcroft
recordava um certo desapontamento presidencial com a falta de multidões a
celebrar a visita. Ele tinha notado sobretudo a quase total ausência de
carros. Era uma China profundamente diferente da de hoje, muito pobre e
isolada.
É
verdade que este tipo de visitas raramente muda tudo. Efectivamente a
plena normalização de relações diplomáticas entre os EUA e a China só se
verificaria em 1979. Porém, o chamado Comunicado de Xangai, que foi o principal resultado das conversações desses
dias, ainda hoje é citado como uma referência que marca os termos do
relacionamento sino-americano, em particular, relativamente à questão espinhosa de Taiwan, que volta a estar no topo da agenda. E a
aproximação, depois de décadas de hostilidade, entre os EUA, o estado com a
maior economia global, e a China comunista, o estado com a maior população do
Mundo, não podiam deixar de ter impacto significativo na política global.
Curiosamente, o difícil e demorado caminho de Nixon para Pequim passou, ainda
que tangencialmente, como iremos ver, pela Ilha
Terceira, por uma
primeira cimeira
das Lajes.
As relações diplomáticas e comerciais
entre os EUA e a China remontam a 1784, poucos anos depois da independência
norte-americana. Elas foram formalizadas,
pela primeira vez, em 1844, pelo Tratado de Wangxia, assinado
num dos principais templos da Macau portuguesa, durante
séculos o grande ponto de contacto entre o Ocidente e a China. Porém, apesar de duas centenas de anos de relações
cada vez mais intensas, como já referimos, Nixon foi o
primeiro presidente norte-americano a visitar a China.
Durante
esse período três preocupações têm dominado a estratégia dos EUA nesta região
do globo. A primeira é garantir o máximo de liberdade de acesso
ao gigantesco mercado chinês, o que sempre
se revelou um desafio complicado. A segunda é a oposição à
fragmentação da China – ao
contrário de várias potências europeias, da Rússia ou do Japão. A
terceira, e principal, é a resistência à afirmação de qualquer
potência hegemónica hostil na margem oposta aos EUA do Pacífico. Estas foram as principais razões da oposição
dos EUA à expansão
do Japão, o que
levou ao ataque japonês à esquadra americana do Pacífico, ancorada em Pearl Harbour, em dezembro de 1941, e à entrada norte-americana na Segunda Guerra
Mundial, um evento marcante da memória colectiva e da cultura estratégica, quer
dos EUA, quer da China.
O
Império Chinês tinha-se fragmentado desde a queda da monarquia imperial
manchu, em 1911-12, e só recuperou alguma unidade em outubro de 1949, quando
Mao Zedong proclamou a República Popular da China em Tiananmen. Os EUA, porém, tinham apostado e apoiado fortemente o
outro lado, o movimento nacionalista perdedor de Chiang
Kai-shek. Quando
Nixon vai à China, tinham passado duas
décadas sem
contactos diplomáticos directos
e normais entre os governos de Washington DC e de Pequim. A grande
excepção a essa reunificação pela força levada a cabo pelo regime comunista
chinês foi Taiwan. Aí
se refugiou, sob proteção militar norte-americana, o governo derrotado de Chiang Kai-shek, que manteve em Taipei uma
República da China competindo pelo reconhecimento internacional com a República
Popular da China baseada em Pequim. Pouco depois,
em outubro de 1951, 250.000 “voluntários” do exército
chinês empurraram as tropas norte-americanas, à beira de vencer a Guerra da
Coreia, para fora da Coreia do Norte. Este
foi um marco importante do regresso da
China ao estatuto de potência regional e global.
A denúncia do imperialismo
norte-americano tornou-se um dos temas preferidos da propaganda da
China comunista.
Por
sua vez, a denúncia da alegada “perda da China” para o comunismo pela
Administração do Democrata Harry
Truman foi uma
das armas dos Republicanos nas eleições presidenciais de novembro de 1952, em
que recuperaram a Casa Branca, com Dwight Eisenhower como Presidente e Richard Nixon como
Vice-Presidente. Numa cimeira internacional, em Genebra, em 1954, o
chefe da diplomacia norte-americana, John Foster Dulles, recusou-se,
publicamente, a apertar a mão estendida do seu homólogo chinês, o sempre
cortês mandarim comunista, sobrevivente de mil batalhas políticas e patriarca
da diplomacia da nova China, Zhou
Enlai. Foi, aliás, sobretudo com este, na qualidade de
Primeiro-Ministro, que Henry
Kissinger, o
braço-direito de Nixon para a grande estratégia internacional, negociou
os termos da viagem presidencial que apanhou o Mundo de surpresa há
cinquenta anos.
Não foi fácil. Quando, em 1970, os diplomatas norte-americanos tentaram passar aos
seus colegas chineses a mensagem da intenção da nova Administração Nixon de retomar contactos exploratórios, tiveram de
recorrer a um dos poucos sítios do mundo onde se podiam encontrar
informalmente: uma passagem de modelos na embaixada da Jugoslávia em
Varsóvia. Tiveram
de gritar a mensagem de Nixon aos diplomatas chineses que, quando viram os
norte-americanos aproximar-se, fugiram deles!
A
Polónia comunista até tinha sido palco, ao longo dessas décadas, de mais
de uma centena de encontros secretos entre diplomatas chineses e
norte-americanos. O que nos
recorda que mesmo quando os Estados estão oficialmente de relações cortadas,
raramente cortam todos os canais de diálogo. Porém, a China de Mao vivia os dias sangrentos da Revolução
Cultural. O
contacto não-autorizado com “imperialistas” estrangeiros tinha-se tornado mais
arriscado do que nunca, até para diplomatas, muitos dos quais tinham sido chamados de regresso à
China para reeducação nos campos.
Foi preciso um ano para Mao decidir
que os sinais de abertura negocial norte-americana – transmitidos por várias
vias – eram sérios e se decidir a mudar de agulha e esboçar, por sua vez, um
gesto de abertura aos EUA. Tratou-se
do mediático convite para a seleção de ping-pong dos EUA se deslocar à China,
em abril de 1971, onde os jogadores, espantados, foram recebidos com honras de
Estado. Na sequência
desse passo, Kissinger deslocou-se secretamente a Pequim,
por duas vezes: em julho – a coberto de supostos problemas gástricos numa visita
ao Paquistão – e, novamente, em outubro de 1971, sendo
então acordada e, logo a seguir, anunciada publicamente a visita
de Nixon à China. A bola
estava lançada. A jogada era arriscada, mas quer em Pequim, quer em
Washington DC mandavam dois líderes com carreiras construídas com base em
apostas políticas de alto risco.
Dois marginais no topo
Quando
Nixon se encontrou com Mao, em Pequim, em fevereiro
de 1972, este último
aproveitou para dizer, de forma provocadora, que “um velho amigo
comum”, Chiang Kai- shek, “não gostava deste encontro” e até o apelidava
de “bandido”. Nixon não se deixou desconcertar e perguntou como é que a
propaganda maoista designava Chang-Kai Shek? Mao e Zhou Enlai riram-se,
e este último confessou que devolviam a acusação e rematou: “Insultamo-nos
mutuamente!” Na verdade,
as biografias de Mao referem a sua admiração, desde criança, pelo
anti-herói, o bandido honrado, muito presente na cultura e literatura chinesa.
Nixon, neste encontro em 1972, tentou criar um laço
pessoal com Mao, sublinhando
que ambos vinham de um meio popular, pobre, e que ambos tinham “chegado ao
topo” de dois grandes países. E é verdade que, sem serem verdadeiramente
pobres, Nixon e Mao, por razões de classe, de geografia, de educação, eram
figuras relativamente marginais, certamente não faziam parte da elite
tradicional norte-americana ou chinesa.
Mao
Zedong provinha
de uma família de proprietários rurais, remediados, do Sul, de Hunan, uma
região afastada da capital e não pertencia ao meio de
intelectuais-aristocratas que tinham dominado a China durante sucessivos
regimes imperiais. Fez os seus estudos em escolas de província, e mesmo aí terá
sido ridicularizado pelas suas origens e modos rústicos e nunca
concluiu um curso universitário. Mesmo no seio do Partido Comunista Chinês,
fundado em 1921, o seu percurso até à liderança esteve longe de ser fácil. Já o pai
de Nixon geriu
pequenos negócios com pouco capital e sucesso variável. Há anos estive em
Yorba Linda, a uns 30 quilómetros a sul de Los Angeles, próximo do parque
Disney World, em Aneheim. Aí pude visitar a modesta moradia em que
cresceu Nixon e que este transformou numa casa-museu anexa ao seu arquivo
e museu presidencial.
Um
traço que marcou muito a personalidade política de Mao e Nixon foi este
poderoso sentimento de marginalização e a convicção de que só podiam conquistar
e manter o poder contra elites poderosas. Ambos
foram, em certo sentido, precursores dos nacionalistas populistas de
hoje em dia, apresentando-se como a voz do americano ou do chinês
comum, únicos capazes de voltar a tornar grandes os seus países,
enfrentando burocracias acomodadas.
Claro
que a comparação dos dois percursos – que o próprio Nixon fez – tem sérios
limites. Este
sentimento de marginalização certamente ajuda a explicar, sem justificar, a
aposta de Nixon em políticas duvidosas e até ilegais. Ao nível externo, por exemplo, a cumplicidade com
o golpe militar que derrubou o Presidente
Salvador Allende do Chile,
ou o apoio ao
regime altamente repressivo da Indonésia,
um parceiro anticomunista considerado vital no Sudeste Asiático depois da queda
do Vietname do Sul. A nível
interno, por exemplo, mandando espiar a campanha presidencial do Partido Democrático no
respetivo quartel-general no edifício Watergate, em Washington DC. Apesar de tudo isso, Nixon foi um líder livremente eleito de uma
democracia, forçado a demitir-se por meios igualmente legais. Já Mao
Zedong foi um líder guerrilheiro de grandes qualidades e um político
carismático, principal responsável pela reunificação da China, em 1949, depois
de um século de humilhações, derrotas externas e guerras civis internas. Porém, Mao
também presidiu a um regime totalitário, responsável, directa ou indirectamente, pela morte de
dezenas de milhões de pessoas, seja pela repressão política da Revolução
Cultural, seja pela fome provocada por desastrosas opções económicas estatistas
durante o dito Grande Salto em Frente.
Estamos,
em todo o caso, face a jogadores políticos que gostavam de desafiar
convenções. Perante este dado, as diferenças ideológicas
radicais entre ambos perdem alguma relevância. Mao fez questão, no seu estilo
sardónico, de afirmar a Nixon que “votei em si” e “gosto de líderes
[ocidentais] direitistas”, por serem mais previsíveis. Nixon pegou na deixa
para sublinhar que, realmente, tinha as condições ideias para levar a cabo a
reaproximação à China. De facto, depois de uma carreira política de décadas na
direita anticomunista, seria difícil alguém acusar Nixon de ir a Pequim por
simpatia com o Maoismo.
Da Terceira a Pequim, ou realismo versus ideologia
O
encontro histórico entre Nixon e Mao em 1972 é o exemplo perfeito de que as duras
realidades do poder e da ameaça, assim como os fatores geoestratégicos pesam
mais na política internacional do que a retórica ideológica. Mao
no seu encontro com Nixon manifestou espanto que alguém levasse a sério os seus
slogans anti-imperialistas. Sobreviventes
de muitas batalhas, tinham adoptado uma visão fortemente pragmática e realista,
atenta às mudanças na distribuição do poder e a potenciais ameaças ou aliados. Não
por acaso Mao, no final do encontro, lamentou-se de saber pouco dos EUA e
afirmou que seria útil que, como resultado desta reaproximação, fosse possível
enviarem professores “sobretudo de história e de geografia”.
Nas
palavras de Nixon, a pergunta fundamental era: “qual é o maior perigo para vocês [China]: a União
Soviética ou os EUA?” E prosseguiu: “devemos perguntar-nos porque é que a União
Soviética tem mais tropas na fronteira convosco do que na
Europa Ocidental”.
Nixon,
por sua vez, insistiu nesse encontro com Mao que o
fundamental era concordarem “numa visão de conjunto do Mundo e das grandes
forças que o condicionam”. E em face
disso perceber
os interesses vitais dos respetivos países e procurar convergências entre eles. De acordo com Nixon essa convergência realista de
interesses e ameaças tinha um nome: a União Soviética e o seu crescente poderio militar. Mao, genericamente, concordou. Em face dessa
convergência fundamental de ameaças e interesses, os detalhes seriam depois
tratados por negociadores experientes: Kissinger e Zhou Enlai.
As implicações da ruptura e da
crescente tensão entre a União Soviética pós-Estaline e a China comunista são,
efectivamente, a chave para perceber esta surpreendente inversão de
alinhamentos. Nas
palavras de Nixon, a pergunta fundamental era: “qual é o
maior perigo para vocês [China]: a União Soviética ou os EUA?” E prosseguiu: “devemos
perguntar-nos porque é que a União Soviética tem mais tropas na fronteira
convosco do que na Europa Ocidental”. Mao,
sem dar parte fraca, basicamente anuiu.
Aliás, o estudo que o líder chinês tinha encomendado a um grupo de marechais
veteranos, na sequência do conflito fronteiriço com a União Soviética, para
legitimar a sua opção de conversar com Nixon, apontava no mesmo sentido.
Estima-se,
efetivamente, que a União Soviética chegou a ter perto de um milhão de
homens na sua fronteira terrestre com a China na Ásia Central e na Sibéria. Em
1969, os dois países tinham-se envolvido em várias escaramuças sangrentas em
territórios disputados. E a União Soviética terá mesmo considerado uma ofensiva
militar mais séria, até, potencialmente, visando o incipiente arsenal nuclear
chinês (inaugurado em 1964), tendo sondado os EUA a esse respeito. Mao terá
levado tão a sério a ameaça militar soviética que chegou a ordenar à
maioria dos membros do governo e aos principais líderes comunistas que
abandonassem Pequim e preparassem a resistência pela guerrilha por todo o
território chinês. Para Nixon, a aproximação com a China tinha a vantagem
de atemorizar a União Soviética, o principal
rival dos EUA na disputa global que se arrastava desde 1945 e ficou conhecida
como a Guerra Fria.
É esta questão que nos leva à Ilha
Terceira, mais concretamente a uma hoje quase esquecida
cimeira, em 13 de dezembro de 1971, entre o Presidente Nixon e o
Presidente francês Georges Pompidou. Marcelo Caetano, como chefe do governo português,
serviu de anfitrião. Mas Nixon
e Pompidou quiseram, sobretudo, aproveitar a localização mediana dos Açores
para reunirem em terreno neutro, mais concretamente, no Palácio da Junta de
Governo, no coração da bela Angra
do Heroísmo. Ali, no
meio do Atlântico, um dos seus principais temas da conversa foi a distante
China. Nixon referiu que o antecessor de Pompidou, o general de Gaulle,
por quem tinha grande admiração, lhe tinha aconselhado a reaproximação com a
China como a melhor opção externa para os EUA. Pompidou concordou e
afirmou que a acção externa da Rússia tinha duas características: “Tal como um rio, só pára quando
encontra um obstáculo” e “está constantemente obcecada com a China”. Nixon afirmou que era uma análise muito pertinente que
teria em conta, provavelmente, porque já correspondia à sua própria. Um dos
canais exploratórios usados nesta reaproximação passou precisamente por Paris,
pelo embaixador da China comunista em França e membro do Comité Central, Huang
Chen, contactado por Kissinger através do amigo comum, Jean Santenay, veterano
da Resistência e de outros contactos secretos com o Vietname do Norte.
Nixon na China contém lições úteis para hoje?
Que balanço se pode fazer passadas
cinco décadas, desta viagem história de Nixon? Não há dúvida de que a reaproximação entre a China
e os EUA foi um factor
muito importante de pressão sobre o Kremlin, que ajuda
a explicar o desfecho da Guerra Fria, com o colapso final da União Soviética. No entanto, hoje, surgem algumas questões: será que
os EUA pagaram ganhos de curto prazo – a derrota da União Soviética e a
promessa sempre adiada do pleno acesso ao gigantesco mercado chinês – com um
preço demasiado alto no longo prazo – com a consolidação da China como a
grande potência, capaz de suplantar os EUA?
Há
dez anos havia muitas vozes no Ocidente que consideravam que um segundo
elemento fundamental desta reaproximação – a
abertura e modernização da economia chinesa – tinha
trazido enormes benefícios para a economia global, e encerrava a promessa de
uma crescente liberalização não apenas económica, mas, também, política da
China comunista. A repressão
em Tianamnen, em 1989, teria sido
um recuo trágico, mas temporário, nesse caminho para a convergência inevitável
entre a China comunista e o Ocidente liberal, em linha com o que tinha
acontecido com o antigo bloco soviético na Europa. Em suma, todo
o processo iniciado por Nixon e Mao teria sido claramente controlado pelos EUA,
que mais teria beneficiado dele. Hoje essa avaliação tem, no mínimo, de ser
questionada.
A
aposta estratégica de longo prazo, actualmente, aparece como tendo sido muito mais favorável à China comunista, que está à
beira de se tornar a primeira economia mundial, é o segundo
maior investidor em capacidades militares a nível global, e compete pela
liderança tecnológica em áreas chave como a inteligência artificial. O
protegido de Zhou Enlai e sucessor de Mao, Deng Xiaoping, usou de forma hábil e
muito deliberada a aproximação aos EUA para conseguir os fundos e o
conhecimento para modernizar a economia e a tecnologia chinesas como forma
de concretizar o grande sonho da sua geração: tornar a China novamente uma
grande potência.
Mesmo
o famoso Comunicado
de Xangai está hoje
em crise. Pode ser
visto como uma forma de a China comunista ganhar tempo para modernizar as
suas Forças Armadas de tal forma que, hoje, tem alguma credibilidade a
ideia de uma tentativa de a China continental tomar Taiwan pela força num
futuro próximo. Desse ponto de vista, a concessão feita nesse
documento de retirada gradual de forças militares norte-americanas de Taiwan
enfraqueceu a capacidade dos EUA de dissuadir um eventual ataque contra a ilha,
que se transformou num oásis de democracia à chinesa.
Porém,
num dos paradoxos em que a estratégia abunda, a solução para o problema criado
por Nixon pode ser o próprio exemplo de Nixon. Kissinger ainda está activo, quase com 100
anos, e defende a aposta pelos EUA numa nova diplomacia triangular entre Pequim
e Moscovo. Qual é actualmente a principal ameaça aos interesses
dos EUA? Se a resposta é a próspera e inovadora China, e já não, como era o
caso em 1972, a Rússia, territorialmente diminuída pelo colapso da União
Soviética, estagnada e em quebra demográfica acelerada, então os EUA deviam
dar prioridade a separar a Rússia da China, privilegiando as relações com
Moscovo como forma de pressionar Pequim, independentemente de maiores ou
menores simpatias ideológicas.
O
que é claro é que a passagem de Nixon pela política norte-americana e global foi
suficientemente marcante para deixar dois legados no nosso vocabulário
político. O primeiro é o do escândalo por excelência – Watergate – que
acabou por destruir a sua presidência. De tal forma se tornou sinónimo de
escândalo que qualquer evento político polémico passou a utilizar o
sufixo “gate”, veja-se o exemplo atual do dito “Party-gate” do
primeiro-ministro britânico Boris Johnson. O segundo é a expressão “Nixon
goes to China”, que entrou no vocabulário diplomático global, como
sinónimo de uma iniciativa surpreendente, arriscada, mas brilhante, de uma
inversão de alianças inesperada ajustada às exigências de uma boa leitura das
dinâmicas da estratégia global.
Se em 1970 a China, apesar da sua
enorme população, era a 11ª economia mundial, hoje essa posição é ocupada pela
Rússia… O que parece evidente é que os EUA, hoje como em 1972,
precisam de novos parceiros e de maior flexibilidade na sua acção externa,
para compensar uma relativa perda de poder num mundo onde abundam rivais e
desafios. Até onde estarão os norte-americanos dispostos a levar o pragmatismo
que seria necessário para isso?
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA MUNDO CHINA AÇORES PAÍS
COMENTÁRIOS:
Censurado Censurado: Nixon. Um gigante da política norte-americana. Depois dele talvez só o vice
Dick. Porque até se torna um bocado embaraçoso nomear algum Bush.
Nenhum comentário:
Postar um comentário