quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

O busílis


Viver não custa, é claro. Saber viver é que conta e Marcelo sabe-o, ou assim o julga, títere a quem a vaidade, o interesse próprio e uma real frieza humana, revestida, embora, do espalhafato da simpatia, elevaram a uma posição cimeira, num país de coitadinhos. Alexandre Homem Cristo descobre-lhe a careca, Luis Martins, cujo comentário reponho, revela os podres de uma legislação propícia à artimanha e à falcatrua:

«existem várias leis mal "amanhadas" que permitem as tais muitas interpretações e janelas de escape quando há interesse em que isso aconteça. O direito pode não ser como a matemática mas não tem de ser opaco, confuso e polémico como é neste país. O direito pode e deve ser claro e o mais directo possível e não ter as tais janelinhas de escape. E igual ou pior ainda, quem julga em tribunal deveria ter um comportamento mais homogéneo e não variar consoante quem lhe surge à frente e certos interesses, porque é dever de quem julga ser imparcial mas bem sabemos como a coisa funciona

 

Fala, fala, fala. Mas quando importa não diz nada

Perante erros graves no perímetro das suas responsabilidades, Marcelo refugia-se no silêncio. Eis o problema: Marcelo intervém muito, mas nada comenta sobre os atropelos constitucionais que permitiu.

ALEXANDRE HOMEM CRISTO

 OBSERVADOR, 17 fev 2022

O estilo de intervenção política de Marcelo Rebelo de Sousa terá virtudes, mas também acarreta riscos. Um Presidente da República que insiste em estar no centro do palco mediático, que fala de tudo e que coloca a mão em vários dossiers que não pertencem à sua esfera de responsabilidades seria apenas uma excentricidade institucional se, de facto, Marcelo falasse mesmo de tudo. Só que não fala: quando se observam incompetências gritantes ou erros graves no perímetro das suas responsabilidades políticas, Marcelo refugia-se no silêncio. Fica mudo, calado, desaparecido. Nem ai, nem ui. E nesse contraste reside o problema: demasiadas vezes, Marcelo fala ao país para partilhar lugares-comuns, mas depois nada refere acerca do que realmente importa e lhe diz directamente respeito.

Então, o que importa ouvir da parte do Presidente da República? Posições que tenham a ver com a sua missão de garante do regular funcionamento das instituições democráticas e de protector do cumprimento da Constituição. Ele que, aliás, é professor de direito constitucional e tem, como tal, conhecimentos para analisar técnica e politicamente eventuais dilemas. Ora, nesse domínio, há três assuntos nos quais o silêncio de Marcelo só pode ser recebido com estupefacção.

Primeiro ponto: o respeito pelo direito de voto dos portugueses. Após o parecer da Procuradoria-Geral da República, que informou da ilegalidade em impedir os cidadãos de votar, estivessem estes ou não em isolamento profiláctico, Marcelo não tem nada a dizer sobre o facto de, em eleições anteriores (autárquicas e presidenciais), milhares de portugueses terem sido impedidos de votar em virtude de regras impostas pelo Governo e com a conivência da Presidência da República? Estando em causa uma violação da Constituição, Marcelo tem especiais responsabilidades neste atropelo democrático, acerca do qual não disse uma palavra — o parecer da PGR foi divulgado há um mês.

Segundo ponto: a opção de declarar Estado de Calamidade, em vez de Estado de Excepção, enquanto se mantêm ilegalmente inúmeras restrições à circulação dos cidadãos. Aconteceu, por exemplo, com o isolamento de turmas nas escolas: de acordo com os juízes do Tribunal Constitucional, o isolamento de turmas durante os períodos em que vigorou o Estado de Calamidade foi inconstitucional, porque tal restrição apenas poderia ter sido aplicada se enquadrada por um Estado de Excepção. Estamos, portanto, a falar de uma violação da Constituição, que era desnecessária, mas que foi provocada por incompetência e conveniência política (os Estados de Excepção têm de ser quinzenalmente renovados e votados no parlamento). De quem é a responsabilidade? De quem considerou que o enquadramento de Estado de Calamidade seria suficiente para as medidas em vigor — Governo e Presidência da República. Agora, perante esta avaliação dos juízes, como justifica Marcelo a sua actuação? Não justifica.

Terceiro ponto: a votação dos emigrantes nas eleições legislativas foi um processo desastroso, que culminou na anulação de 80% dos votos no círculo eleitoral da Europa. Houve falhas que impediram emigrantes de votar. Houve votos misturados nas urnas — com e sem cópia do cartão de cidadão. Houve reuniões informais entre PS e PSD, no edifício do Ministério da Administração Interna, para tentar um arranjinho e contornar a lei na contagem dos votos. E houve, agora, um acórdão do Tribunal Constitucional que mandou repetir as eleições neste círculo eleitoral da emigração, e que arrasa completamente a acção das autoridades políticas neste processopor exemplo, assinala que acordo informal entre PS e PSD é grosseiramente ilegal. Nos dias em que a situação se arrastou, Marcelo começou por desvalorizar e assegurar que os prazos para tomada de posse do parlamento se manteriam, para agora assumir que foi surpreendido pela decisão do TC de mandar repetir as eleições. E concluiu: é “a democracia a funcionar” e é “uma lição para os partidos”. Está redondamente enganado: é também uma lição para o Presidente da República, que legitimou, com o seu silêncio, que a democracia portuguesa fosse tão maltratada.

Talvez valha a pena abdicar desde já das ilusões: Marcelo será sempre Marcelo, o que significa que manterá tanto a obsessão pelo centro do palco político como pela gestão calculista dos seus silêncios. Mas há uma questão que talvez Marcelo devesse ponderar para este segundo mandato: como é que pretende ficar na história? A popularidade é efémera, o que fica são as decisões e as suas consequências. Ora, neste momento, popular ou não, Marcelo é o Presidente da República que, sucessivamente e num momento particularmente delicado das nossas vidas, permitiu atropelos grosseiros da Constituição e nada fez para os reconhecer ou assumir. Ou seja: por enquanto, Marcelo é um Presidente que falhou. A questão para os próximos anos é se quererá continuar a falhar.

MARCELO REBELO DE SOUSA   PRESIDENTE DA REPÚBLICA   POLÍTICA   TRIBUNAL CONSTITUCIONAL   TRIBUNAL  JUSTIÇA   LEGISLATIVAS 2022   ELEIÇÕES

COMENTÁRIOS:

José Dias: Estarei a ler o mesmo "maria" que apelidou o governo de PPC de "criminoso" por ter tomado decisões que o Tribunal Constitucional considerou contrárias à Constituição? Ou será que quando em relação a tudo o que não provir de campos ditos progressistas os tribunais são de imediato banhados pela Luz e as suas decisões tornam-se matematicamente perfeitas e teologicamente infalíveis?           Luis Martins > José Dias: Nem mais meu caro.            josé maria: O direito não é como a matemática, Alexandre... O Alexandre ainda não percebeu que o direito não é uma ciência exacta, como a matemática, e que até os próprios Supremo Tribunal de Justiça ou o Tribunal Constitucional emitem regularmente decisões contraditórias sobre os mesmos assuntos. Também ainda não percebeu que existe separação estrita entre os poderes do PR e os dos tribunais. O Supremo Tribunal Administrativo, numa decisão proferida em Junho de 2021, teve um entendimento contrário, considerando que a Lei de Bases de Protecção Civil, a Lei do Sistema de Vigilância em Saúde Pública e a Lei de Bases da Saúde, legitimavam a adopção, por via adiministrativa, de medidas legais de controlo de pandemia, sem necessidade da declaração do Estado de Emergência. Portanto, como vê e poderá confirmar, Alexandre, há várias decisões  judiciais e vários pareceres de professores de direito que abalizam a adopção de medidas de contenção de pandemia por via do Estado de Calamidade. O direito não é como a matemática, é elementar meu caro Alexandre. Há que estudar melhor os assuntos, que não devem ser resolvidos demagogicamente pela aplicação de uma regra de três simples.               Luis Martins > josé maria: E o meu caro também ainda não deve ter percebido que existem várias leis mal "amanhadas" que permitem as tais muitas interpretações e janelas de escape quando há interesse em que isso aconteça. O direito pode não ser como a matemática mas não tem de ser opaco, confuso e polémico como é neste país. O direito pode e deve ser claro e o mais directo possível e não ter as tais janelinhas de escape. E igual ou pior ainda, quem julga em tribunal deveria ter um comportamento mais homogéneo e não variar consoante quem lhe surge à frente e certos interesses, porque é dever de quem julga ser imparcial mas bem sabemos como a coisa funciona


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