sábado, 26 de fevereiro de 2022

Faltou uma chave


Diz-se, para nos desculparmos da falta de auxílio, que a Ucrânia não pertence à Nato, e é por isso que ficou sozinha em casa, sem a tal chave da Nato. Mas o Ocidente mandou-lhes armas, aos Ucranianos, para se desenrascarem e vai mandar tropas para os países limítrofes, dos que pertencem à Nato, sempre parece mais resguardado. Mas talvez não tenhamos ocasião de ver bem esses feitos, se é que se vão cumprir os desígnios de um chefe poderoso que tem o nuclear no sangue. Este texto de Jaime Nogueira Pinto bem o explicita, descrevendo as inépcias dos de cá e os poderosos desígnios dos de lá, que, pelos vistos, são muitos e fundos, sem falar na China ainda, que aguarda.

Filhos da Guerra Fria

O conflito russo-ucraniano veio, mais uma vez, mostrar o perigo das cruzadas ideológicas. A Ucrânia foi encorajada pelos “aliados” a desafiar a Rússia mas, na hora da verdade, ficou sozinha.

JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador

OBSERVADOR,26 fev 2022,

Os poetas, mais que os comentadores políticos, têm às vezes um sexto ou sétimo sentido que adivinha o tempo que vem. Sarhiy Zhadan é um poeta ucraniano, nascido em Starobilsk, no Lugansk (agora república separatista), autor de Catálogo de Barcos, um livro cujos poemas espelham um clima de tensão e guerra que parece profetizar as imagens das cidades da Ucrânia invadida que agora nos entram em casa. Zhadan parte da Ilíada, do mítico Catálogo dos Barcos da expedição contra Troia, mas não é de Troia que fala:

“Então vou falar disto

Do olho verde de um demónio no céu colorido

Um olho que espreita do lado de fora do sono de uma criança.”

“Ucrânia Oriental, no fim do Segundo Milénio

O mundo transborda de música e fogo

Peixes voadores e animais que cantam vozeiam na escuridão

Entretanto, quase todos os que aqui se casaram morreram

Entretanto, os pais da gente da minha cidade morreram

Entretanto, muitos heróis morreram.”

Foi este o tempo que chegou à Ucrânia na quinta-feira de manhã, quando os mísseis e a artilharia russa bombardearam as bases militares e as cidades, e os tanques entraram, à desfilada, em eixos de invasão que cortam o país a meio, de Norte a Sul. E com os mísseis e os tanques chegam as imagens das tragédias e dos desastres da guerra que, quem a eles foi poupado, se habituou a ver em Bruegel, em Goya ou em filmes e documentários: gente que sofre, gente que foge, gente que leva crianças pela mão, gente que morre para vir depois a engrossar a lista das “vítimas colaterais”.

O grande irmão americano

Segundo o Politico, os rumores do ataque iminente chegaram a Washington em primeira mão. O Presidente Biden disse aos aliados europeus que Putin atacaria a 16 de Fevereiro e deu instruções aos americanos na Ucrânia para abandonarem o país o mais depressa possível. Nos dias seguintes, os jornais e televisões do outro lado do Atlântico foram repetindo os avisos, com Biden a insistir que os russos não brincavam e que iam mesmo atacar; e que, em caso de ataque, a América não lutaria contra a Rússia, mas imporia sanções.

O modo como o Presidente dos Estados Unidos foi sucessivamente anunciando datas para uma invasão russa da Ucrânia lembra os puerisNão és homem, não és nada …” dos tempos em que parecia mal não ser “homem” e se esperava que o acicatado, ofendido na sua masculinidade e sem olhar a consequências, provasse desvairadamente que o era. E quanto mais provocável, belicoso e susceptível de perder a cabeça fosse o desafiado, melhor (ou pior). Muitas vezes, o provocador, o que dizia “Não és homem não és nada”, era também o que, aparentemente preparado para uma luta em que não fazia tenção de se arriscar, pedia aos que o rodeavam: “Agarrem-me que eu vou-me a ele”.

O trágico resultado ficou à vista na quinta-feira, 24 de fevereiro.

A insistência e o ruído da “informação programada”, numa escalada com velhos processos de desinformação de parte a parte, serviu para alimentar um clima de suspeição e desafio que contribuiu para que o Presidente russo ficasse na confortável alternativa diabólica de “invadir ou perder a face”. E como o Presidente russo é um “artista”, tratou de reconhecer as “repúblicas” de Donetsk e Lugansk, na região do Donbass, arranjando um pretexto e deixando ao “Ocidente” o ónus da resposta. E a resposta veio em coro de Washington e das capitais europeias: haveria retaliações económicas, mas o uso de força armada estava fora de questão. Moscovo interpretou a mensagem como um sinal verde, ou, quando muito, amarelo, e sentiu-se confiante para avançar.

Embora a História nos ensine que há sempre o risco de que a razão – e até o interesse próprio – fiquem esquecidos em processos de escalada e jogadas de prestígio, hoje, com armas nucleares, uma guerra global seria totalmente irracional.  As declarações euro-americanas de que a NATO não iria intervir militarmente vêm também nesse sentido – mas talvez fosse melhor que não tivessem sido tão veementemente declaradas.

Conhece o teu inimigo

Em 1815, no Congresso de Viena, os vencedores da guerra contra o Império napoleónico tiveram o cuidado de não humilhar a França, de fazer de conta que a Revolução e Napoleão eram os únicos culpados dos 25 anos de guerra na Europa, que esses anos de guerra e sofrimento não tinham nada a ver com o povo francês e que a restauração dos Bourbon curava as feridas passadas.

Cem anos depois, os vencedores da Grande Guerra fizeram do Tratado de Versalhes uma paz punitiva para a Alemanha e para o povo alemão, pondo a primeira pedra para o que seria a vertiginosa ascensão de Adolf Hitler.

Em 1945, as políticas seguidas com a Alemanha e o Japão vencidos foram diferentes. A Alemanha ficou dividida, mas como a Guerra Fria começou logo a seguir, soviéticos e ocidentais, depois dos primeiros tempos de brutal ocupação, tiveram o cuidado de tratar bem os “seus” alemães.

A vitória do Ocidente na Guerra Fria resultou da aliança de uma tríade – Reagan, Thatcher, João Paulo II – que, alimentando a resistência polaca, rearmando militarmente e usando o bluff da SDI-Guerra das Estrelas, forçou Gorbachev a “reformar” o sistema, retirando-lhe aquilo que o sustentava – o medo.

Assim, as Repúblicas Soviéticas, usando as suas constituições “independentes”, abandonaram uma estrutura que era mantida pela hegemonia do Partido Comunista e pelo sistema securitário. Porém, uma das preocupações nas negociações finais entre americanos e soviéticos foi a salvaguarda de um certo espaço livre entre as fronteiras da NATO e da Rússia.

O Presidente George H. Bush e os seus colaboradores, especialmente o Conselheiro Nacional de Segurança, general Brent Scowcroft, homens de formação realista, avessos a paixões ideológicas e conhecedores da História e da mentalidade russas, prepararam com toda a cautela o soft landing da URSS, percebendo que um Estado com semelhante poder militar e nuclear tinha de ser respeitado e bem tratado para não dar origem a fenómenos de ressentimento nacional de tipo hitleriano.

Fenómenos que não estiveram longe de vingar. No princípio dos anos 90, o líder do Partido Liberal Democrático da Rússia (PLDR), Vladimir Zhirinovski, um radical populista que prometia nos seus discursos dar “um homem a cada mulher e uma garrafa de vodka a cada homem”, lançou-se numa corrida ao poder, apelando aos sentimentos de frustração e vingança do povo russo.

O PLDR teve um certo sucesso eleitoral em 1993, o que levou ao aparecimento de outras formações semelhantes, uma das quais a do general Alexandre Lebed, que criou o movimento Pátria e Honra e ficou em terceiro lugar na eleição presidencial de 1996, ganha por Yeltsin, logo seguido pelo candidato comunista Zingarov.

Entretanto, Bill Clinton, na euforia da vitória da Guerra Fria, de que fora herdeiro e não artífice, e daquilo que então foi chamado pelos optimistas “o fim da História” (a Era em que o capitalismo e a democracia iam estender-se urbi et orbe) estimulou a avançada para Leste da NATO e da influência americana, numa espécie de grande cruzada democrática.

Mas, na América, nem todos ficaram eufóricos.

Em 1998, numa entrevista a George Friedman para o New York Times, George Kennan, o grande inspirador da estratégia de contenção dos Estados Unidos face à URSS durante a primeira Guerra Fria, foi claro no aviso, quanto à política da Administração Clinton de expansão da NATO para Leste:

“Penso que é o princípio de uma nova Guerra Fria. Os russos vão reagir, gradualmente, de modo hostil, porque esta expansão vai afectá-los. Penso que é um erro trágico. Ninguém agora ameaça ninguém. E este nosso expansionismo faria os nossos Founding Fathers revirarem-se nas sepulturas. Comprometemo-nos a proteger uma série de países, embora não tenhamos nem os recursos nem a intenção de o fazer de um modo sério. A expansão da NATO foi uma decisão tomada de ânimo leve por um Senado que não se interessa particularmente por política externa.”

Kennan acrescentava que o que mais o irritava era a manifesta “superficialidade” e “falta de informação” da discussão no Senado. Com lucidez e liberdade, o autor do “Longo Telegrama”, que tinha sido embaixador em Moscovo, lembrava que a política de expansão para Leste mostrava falta de conhecimento e compreensão da História da Rússia. Kennan estava certo de que, quando confrontados com a reação de Moscovo no futuro, os responsáveis ocidentais iriam dizer que a culpa era dos russos, que eram assim, maus e imperialistas, mas que a provocação vinha dos “ocidentais”.

Infelizmente o seu aviso não foi seguido. No mesmo sentido, mas em relação à Ucrânia, escreveu Henry Kissinger em 2014:

“O Ocidente deve perceber que, para a Rússia, a Ucrânia nunca pode ser apenas um país estrangeiro. A História da Rússia começou no que foi a chamada Rússia de Kiev. A religião russa disseminou-se dali. A Ucrânia fez parte da Rússia durante séculos e as duas histórias estiveram entrelaçadas desde então. Algumas das mais importantes batalhas pela liberdade da Rússia, a começar pela batalha de Poltava, em 1709, foram travadas em solo ucraniano. A frota do Mar Negro, o instrumento de projeção do poder russo no Mediterrâneo, está baseada, por um aluguer de longo prazo, em Sebastopol, na Ucrânia. Mesmo dissidentes famosos, como Alexandre Soljenitsin e Jozeph Brodski, insistiram que a Ucrânia é parte integrante da História da Rússia e, na verdade, da Rússia.”

“Never corner an opponnent”

Nos últimos vinte anos, as guerras da América no Médio Oriente, da invasão do Iraque à guerra do Afeganistão e sua humilhante conclusão, deviam servir de lição para presentes e futuros entusiasmos e pretextos ideológicos, sobretudo em conflitos que podem, pela primeira vez na História, envolver potências nucleares. O realismo não é de esquerda nem de direita e, neste momento, faz muita falta. Perante alguém como Putin, um jogador de xadrez, com sentido estratégico, os apelos à retórica nunca iriam contar muito. Vladimir Putin tem – ou, pelo menos, tinha – um retrato de Nicolau I na antecâmara do seu gabinete e há, por isso, quem sublinhe o seu perfil nacional-autoritário e de defensor do cristianismo ortodoxo para o comparar com o Czar que reprimiu os Dezembristas, defendeu a autocracia e foi para a guerra da Crimeia contra turcos, ingleses e franceses. É também conhecida a sua afirmação de que o desmantelamento da União Soviética foi o maior desastre geopolítico do séc XX. E apesar de a Rússia de hoje não ter nada que ver com a ideologia marxista-leninista, persiste em Putin, como noutros contemporâneos e servidores da URSS, a nostalgia do que era também um grande Império. Os dados estavam todos lá.

O pôr de parte, à cabeça, a dissuasão militar (embora não se visse na Europa nem nos Estados Unidos grande vontade popular em morrer por Kiev) foi uma espécie de garantia de imunidade. Para as sanções económicas, Putin está preparado, com a quarta maior reserva financeira do mundo, parte em ouro e uma “opinião pública”  autocraticamente controlada.

Na crise de Cuba, John Kennedy foi firme mas foi também inteligente e subtil, metendo-se na pele de Kruschev e pondo-se no lugar dos russos. No fim, trocaram-se os mísseis de Cuba pelos mísseis americanos na Turquia. Kennedy percebera bem a recomendação de B. H. Liddell Hart, outro realista e um dos grandes historiadores militares e mestres de Estratégia do século XX, sobre a atitude que um líder político na idade nuclear deveria ter; recomendação que o Presidente citaria no Saturday Review of Literature:

“Keep strong if possible. In any case, keep cool. Have unlimited patience. Never corner an opponent and always assist him to save his face. Put yourself in his shoes – so as to see the thing through his eyes. Avoid self-righteousness like the devil – nothing is so self-blinding.”Os conselheiros do Presidente Biden deviam ter-lhe recomendado a leitura deste texto. Agora, é tarde, mas pode sempre vir a servir para o futuro.

GUERRA NA UCRÂNIA   UCRÂNIA   EUROPA   MUNDO

COMENTÁRIOS:

servus inutilis: Lamentavelmente o autor tem muita informação mas pouquíssimo conhecimento. Como a Ucrânia faz parte da Rússia, ambas fazem parte da Europa, da Europa que as rejeitou. Esta, a europa minúscula dos eurocratas e das maçonarias, nos anos noventa queria integrar a Turquia, mas nem sequer considerava as três rússias. JNP devia ler menos as revistazecas da direita americana - também as leio, e ler mais literatura especializada. A história não se aprende em revistas com opinadores e jornalistas. Ah, e devia ter lido o que a propósito escreveu Bento XVI. Atacaram-no violentamente mas quanto à Turquia e às Rússias estava cheio de razão, como agora se vê. Que JNP apoie discretamente um tirano comunista não é de admirar, toda a extrema direita faz o mesmo.        Francisco Moutinho: Grande artigo.            Gil Lourenço: Excelente artigo! Completamente diferente daquilo que os "tudólogos" cá do burgo andam a dizer. Agora temos uma nova espécie de comentadores: "ucranólogos" e "putinólogos"... todos sabem de tudo e sobre tudo.        Francisco Correia: Esta narrativa tem um problema: não encaixa no discurso de Putin, realizado na segunda-feira. O objectivo de Putin é reconstituir o império russo. A desculpa de que a Rússia está ameaçada pela NATO é apenas isso: uma desculpa. Quem tem milhares de ogivas nucleares, mísseis hipersónicos para as transportar e, alegadamente, armamento XPTO que o mundo nunca viu, não tem razão para se sentir ameaçado. A prova do algodão será ver se Putin fica só pela Ucrânia.           Rui Mendes: Excelente! Sem qualquer tipo de receio de "sair do alinhamento" do discurso único e simplificações que pretendem condicionar o chamado "cidadão comum". E, como sempre, o rigor, a elegância na escrita e a "passagem de testemunho" da memória. Tenho uma dívida de gratidão, que é impossível de quantificar, em relação a muitos dos seus "textos"/intervenções (e da Maria José Nogueira Pinto) desde os anos 80. Neste momento tão tragicamente triste, tentando desanuviar, e homenageando esses textos que para mim foram frequentemente "iniciáticos", recordo, qd mt jovem, li as suas descrições (e da Maria José) das igrejas, museus, praças, ruas, livrarias, "rotinas" de Roma. Antes de me "apaixonar" em anos recentes pela cidade de Roma, tive os vossos textos deslumbrantes que a tornavam quase palpável. Esta referência a Roma é igualmente uma homenagem ao papel que o Papa Francisco tem tido nesta crise (agora guerra entre irmãos tão próximos), nomeadamente à visita q fez hoje à Embaixada Russa no Vaticano. Fazendo um paralelismo entre os anos 60/70 e os tempos atuais, o Papa Francisco é um muito digno sucessor dos Papas Paulo VI e João XXIII, o mesmo não se passa, tragicamente, com os políticos/lideranças do mundo ocidental (que diferença abissal de níveis culturais, exigência, valores, "substância"). Muito obrigado por tudo... e por Roma (e peço desculpa por este texto embaraçoso, em parte importante, muito pessoal, uma homenagem à minha Mãe que faz hoje 88 anos).              Gil Lourenço > Rui Mendes: Escreveu um texto bonito e sentido! Parabéns à sua mãe!          Vashny Karpouzis: O insuspeito Dr. André Thomashausen também ‘alinha’ por esta ‘bitola’: “Minutes of the March 6, 1991 meeting of US, UK, France and German diplomats to discuss NATO and Eastern Europe: “NATO should not expand eastwards, Esther officially or unofficially.” Document was found in the National Archives of the United Kingdom by Joshua Schiffrinson.” E publica no seu Twitter um ‘fac-simile’ do referido documento.             Filipe Brandao: Excelente, como sempre. Obrigado.     PortugueseMan: ...Na crise de Cuba, John Kennedy foi firme mas foi também inteligente e subtil, metendo-se na pele de Khrushchev e pondo-se no lugar dos russos. No fim, trocaram-se os mísseis de Cuba pelos mísseis americanos na Turquia. Kennedy percebera bem a recomendação de B. H. Liddell Hart, outro realista e um dos grandes historiadores militares e mestres de Estratégia do século XX, sobre a atitude que um líder político na idade nuclear deveria ter...

Precisamos de mais artigos como este.

Tem que haver gente na Europa que pense o mesmo.

O ultimato da Rússia não é sobre a Ucrânia.

A Europa vai ser palco de novo conflito se continuarmos por este caminho.

Os americanos não vão arriscar o nuclear, porque não têm protecção contra isso.

Os americanos vão atirar a Europa para a fogueira.

A Europa não tem como parar os mísseis convencionais.

O nosso modo de vida está em perigo.

Sioux Boumerang: Era isto o que os americanos queriam, aliás sonhavam, foi um sonho que se tornou realidade, chama-se politica de terra queimada, já que a tomada da Ucrânia não lhes adiantou no terreno o que almejavam, a sua destruição lançou nos braços destes genocidas o resto da alcateia que estava renitente em segui-los, no entanto há sonhos que se tornam pesadelos, e eles lá tão longe e com tudo e nós aqui tão perto e com absolutamente nada.

 

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