De estudo, de sabedoria, de imaginação. Servem
de orientação, e de diversão. Mas de ensinamento também, como resultado de
experiências dos que os escrevem, levando ao engano, sim, conforme o grau de
credulidade ou de adaptação de quem os lê, se são escritos no propósito de
atraiçoar valores, embora, como já afirmava o extraordinário Demócrito, filósofo pré-socrático, viajado e
culto, “a verdade exacta, ninguém a
conhece, ninguém a testemunha” - e daí o seu riso sobre a Humanidade que,
já então, tal como hoje, ele descreve nas suas misérias de luxúrias e ambições vastas
das quais se ri (in “DO RISO E DA LOUCURA”
de Hipócrates). Quando crianças,
gostamos de livros de fantasia e acção, vamos crescendo e enriquecendo
intelectualmente – e moralmente - com o auxílio de leituras que mais ou menos
ajudam à nossa formação, para além do que aprendemos com os livros escolares. Mas
os livros são escolhidos segundo os gostos de cada um, e quanto menos se
pratica essa leitura, graças à alienação provocada hoje em dia pelos
instrumentos da manipulação mediática, mais a sociedade se infantiliza,
parece-me, ou se define em função do prazer e da irresponsabilidade.
Mas os tais livros de que trata Eduardo Sá - de orientação psicológica ou outra, que
os proselitismos criam - creio que sim, que levam ao engano. Porque cada ser
humano, apesar das muitas afinidades que o ligam aos outros, diverge de outro
ser humano, e a caminhada de cada um na vida rege-se pelos padrões próprios ou
pelas teimosias de cada um. Pela sorte, também.
Há livros que nos levam ao engano
A vida não se aprende nos livros mesmo
se eles podem ser instrumentos preciosos para que a vida reconquiste o sentido
perdido. Preocupa-me que haja livros vendidos como se tivessem “psicologia”
dentro.
EDUARDO SÁ
OBSERVADOR, 20 fev
2022
Há
muitos anos, já, escrevi um livro (“Manual de instruções para um família
feliz”) que pretendia ser uma colectânea de textos sobre a infância e a
adolescência e que, de forma descontraída, pretendia mostrar que aquele seria,
sobretudo, um “não-manual”. Não tinha nem regras nem receitas. Não tinha nem
estudos experimentais nem soluções infalíveis. Pretendia, somente, trazer
experiências nas quais as pessoas se pudessem rever. E, dessa forma,
trazer-lhes, subtilmente, um ou outro argumento que estivesse em falta em
relação a tudo aquilo que elas já sabiam, de maneira a fazerem, com esse
simples “empurrãozinho”, o seu caminho. E, de forma consequente, a conseguirem
construir a família que sempre terão desejado.
Reconheço
que, depois disso, me arrependi um ror de vezes desse título. Porque são
inúmeros os pais que, ao longo do tempo, a propósito dum conselho que me pedem,
comentam, de forma descontraída e cúmplice, justificando a utilidade da minha
opinião: “Pois… As crianças não vêm equipadas com manual de instruções…”. Não
vêm, não. E ainda bem! Porque se a propósito de um automóvel só consultamos
um manual quando se acende uma luzinha vermelha, e estamos a falar dum simples
veículo (cujas instruções se repartem, todavia, por centenas de páginas),
quantas bibliotecas não seriam precisas para que se cobrissem todas as
hipóteses relativas a cada sinal que um filho nos dá, a qualquer momento? Seja como
for, eu acho que uma leitura psicológica pode ser preciosa. Se ela juntar
sabedoria e experiência. Se ligar ciência e senso comum. Se desconstruir o
complexo e o traduzir no simples. Se associar a uma leitura fina e sintética
daquilo que se passa com uma pessoa um aconselhamento inteligente, que possa
ser útil e “prático”. E “aconchegante”. E que traga mudanças.
Um
aconselhamento pressupõe,
pois, em quem o dá, muitos algoritmos que se cruzam. E que — de forma incisiva
e breve — possam, no mínimo tempo possível, interpelar, interpretar,
compreender, sintetizar e, cuidadosamente, propor uma leitura e um método (ou, simplesmente,
a escolha dum caminho) que vá do impasse à mudança. Dir-se-á: mas isso
implica que se chegue ao breve após acompanhamentos intermináveis? Nada disso. Esse vício de forma que se
colou a alguma psicologia, durante muitos anos, deu origem a uma nova vaga de
manuais que, hoje, embrulham conceitos inteligentes e títulos muito comerciais
em formatos que prometem soluções infalíveis, duma forma perigosa.
Passou-se, pois, dum extremo ao outro. Um
aconselhamento é um fim de linha duma leitura psicológica. Quando se cruzam muitas experiências, um
livro pode guardar aconselhamentos, que resultam dos denominadores comuns que
se extraíram de todas elas. Todavia, “aconselhar” sem se partir daí, com
base em meias-verdades que se vão resgatar à ciência, e com formas (muitas
vezes) demagógicas de falar para os pais, por exemplo, reclamamdo que uma mesma
“receita” se aplica a um determinado “sintoma” – independentemente dos
sintomas em psicologia serem uma formação de compromisso que traduz sinais
vitais e indícios de contradições, de morbilidade, de sofrimento e dor – já
é perigoso. Porque, por
mais que não pareça, os sintomas em saúde mental são sempre híbridos e
compósitos. Ao contrário daquilo que quem os “normaliza” dá a entender.
A
ideia de que há uma deriva perigosa (e, até, obscurantista) desta “psicologia”
sempre me preocupou. Mas, quando, num dia destes, naveguei em montras
de livros em bibliotecas digitais, passou a alarmar-me muito mais. Nesse
dia, escolhi a não-ficção. Os ensaios, portanto. E dei-me conta
da oferta infindável de títulos que vendem motivação, a sabedoria em
minutos, o amor com abertura fácil, e fórmulas (muitas fórmulas) para nos
tornarmos pessoas melhores. E como ser feliz através dos hábitos. Receitas para transformar um filho entre segunda e
sexta-feira. Manuais de boas práticas para ser próspero. Regras (rápidas!) para
a vida, sobre as coisas mais diversas, que vão dos 5 segundos aos 3 minutos. Guias
práticos para fazer amigos e influenciar pessoas. Formas para criar um novo eu.
Manuais para controlar a ansiedade. Vários outros sobre hábitos saudáveis. Uns
tantos acerca de dietas sem dor. Algumas coisas sobre o erro e os fracassos.
Muitas sobre optimismo e contra a desistência. Uma mão cheia deles, como muito
cérebro à mistura; claro. E mais alguns sobre armadilhas. Algumas delas, mais
uma vez, cerebrais.
Claro
que a intenção de muitos destes livros passa por serem manuais mais ou menos
práticos que auxiliem as pessoas. A auto-ajuda – como, dantes, se chamava a
estes livros – parece prometer transformações rápidas, fáceis, sem dor, sem
esforço, sem gritos e, sobretudo, sem “matar a cabeça” a pensar. Mas, muitos
deles, são pouco razoáveis. Pouco sensatos. Pouco consistentes. E, por mais
que bem intencionados, correm o risco de se tornar escorregadios.
Na
verdade, estas montras têm muitas pitadas de psicologia. Isso não me
surpreende, partindo do princípio que as pessoas precisam de encontrar leituras
para se conhecerem. Sobretudo,
para encontrarem explicações para as suas dificuldades. E para procurarem
soluções para cada uma elas. Mas isso, reconheço, incomoda-me. Porque uma coisa
é ligar pontas soltas na história das pessoas ou em muitos capítulos daquilo
que é a sua vida, de todos os dias. Mesmo que elas lá cheguem através dum
exemplo, duma história ou duma “explicação” esclarecedora que lhes faça
sentido. Permitindo-lhes uma leitura tão simples, tão clara e tão óbvia que,
com o acréscimo que elas acabam por pôr de si próprias em tudo isso faça com
que, de flash em flash, esse caminho as leve à mudança. E, de mudança em
mudança, à transformação. Outra coisa é
propor um mesmo aconselhamento para todos. Como
se fôssemos curvas normais. Uma coisa é chegar-se ao
aconselhamento depois de uma leitura de síntese. Outra coisa, é fazer de cada
um desses manuais um coach de cabeceira e contribuir para que muitas pessoas
generosíssimas, que se procuram em si próprias e tentam encontrar motivos para
as suas “dores”, apliquem fórmulas e soluções que, à primeira vista, lhes são
apresentadas como eficazes mas que, de solução em solução, as vão divorciando
da leitura equilibrada que elas fazem de si e dos filhos. Sobretudo,
porque muitas dessas leituras são apresentadas como dados adquiridos. Regra
geral, ancoradas em “estudos”. O que faz
com que a sagaz sabedoria das pessoas pareça atrofiar-se com essa não-ficção,
acabando por lhes fazer mal.
É
verdade que a vida não se aprende nos livros. Mas eles podem ser instrumentos preciosos para que
a vida reconquiste o sentido que, entretanto, possa ter perdido.
Preocupa-me que se estes livros se vendam como se tivessem “psicologia” lá
dentro. Mas preocupa-me mais, ainda, que não se assuma que, para cada problema, há uma solução simples, fácil,
rápida e, regra geral, errada. Porque aí, há livros que nos levam ao engano. E
isso é tudo o que nós e os livros não merecíamos.
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COMENTÁRIOS
Maria Brito do Rio: A banalização
da Psicologia é culpa dos próprios Psicólogos, desde há anos, muito antes de a
Ordem surgir. A falta de seriedade e profissionalismo com que se encara a
profissão, induziu a moda dos "coachers" e "auto-ajuda"
para tudo e todos. Ironia das Ironias: Olha quem fala eheh bento guerra: Também os smartphones não substituem a vida. Eduardo Manuel Sá Gouveia: Doutor Eduardo
Sá - mais um grande artigo onde expõe a sua visão para uma educação moderna,
inclusiva, cooperativa, solidária, em que o ambientalismo, o eco-socialismo, o
associativismo, o transhumanismo e a promoção dos valores
LGBTTPQTPPCTPMRPP-4«2+ não são palavras vãs. Muita força para continuar, doutor.
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