terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Os livros são fruto


De estudo, de sabedoria, de imaginação. Servem de orientação, e de diversão. Mas de ensinamento também, como resultado de experiências dos que os escrevem, levando ao engano, sim, conforme o grau de credulidade ou de adaptação de quem os lê, se são escritos no propósito de atraiçoar valores, embora, como já afirmava o extraordinário Demócrito, filósofo pré-socrático, viajado e culto, “a verdade exacta, ninguém a conhece, ninguém a testemunha” - e daí o seu riso sobre a Humanidade que, já então, tal como hoje, ele descreve nas suas misérias de luxúrias e ambições vastas das quais se ri (in “DO RISO E DA LOUCURA” de Hipócrates). Quando crianças, gostamos de livros de fantasia e acção, vamos crescendo e enriquecendo intelectualmente – e moralmente - com o auxílio de leituras que mais ou menos ajudam à nossa formação, para além do que aprendemos com os livros escolares. Mas os livros são escolhidos segundo os gostos de cada um, e quanto menos se pratica essa leitura, graças à alienação provocada hoje em dia pelos instrumentos da manipulação mediática, mais a sociedade se infantiliza, parece-me, ou se define em função do prazer e da irresponsabilidade. 

Mas os tais livros de que trata Eduardo Sá - de orientação psicológica ou outra, que os proselitismos criam - creio que sim, que levam ao engano. Porque cada ser humano, apesar das muitas afinidades que o ligam aos outros, diverge de outro ser humano, e a caminhada de cada um na vida rege-se pelos padrões próprios ou pelas teimosias de cada um. Pela sorte, também.                                  

Há livros que nos levam ao engano

A vida não se aprende nos livros mesmo se eles podem ser instrumentos preciosos para que a vida reconquiste o sentido perdido. Preocupa-me que haja livros vendidos como se tivessem “psicologia” dentro.

EDUARDO SÁ

OBSERVADOR, 20 fev 2022

Há muitos anos, já, escrevi um livro (“Manual de instruções para um família feliz”) que pretendia ser uma colectânea de textos sobre a infância e a adolescência e que, de forma descontraída, pretendia mostrar que aquele seria, sobretudo, um “não-manual”. Não tinha nem regras nem receitas. Não tinha nem estudos experimentais nem soluções infalíveis. Pretendia, somente, trazer experiências nas quais as pessoas se pudessem rever. E, dessa forma, trazer-lhes, subtilmente, um ou outro argumento que estivesse em falta em relação a tudo aquilo que elas já sabiam, de maneira a fazerem, com esse simples “empurrãozinho”, o seu caminho. E, de forma consequente, a conseguirem construir a família que sempre terão desejado.

Reconheço que, depois disso, me arrependi um ror de vezes desse título. Porque são inúmeros os pais que, ao longo do tempo, a propósito dum conselho que me pedem, comentam, de forma descontraída e cúmplice, justificando a utilidade da minha opinião: “Pois… As crianças não vêm equipadas com manual de instruções…”. Não vêm, não. E ainda bem! Porque se a propósito de um automóvel só consultamos um manual quando se acende uma luzinha vermelha, e estamos a falar dum simples veículo (cujas instruções se repartem, todavia, por centenas de páginas), quantas bibliotecas não seriam precisas para que se cobrissem todas as hipóteses relativas a cada sinal que um filho nos dá, a qualquer momento? Seja como for, eu acho que uma leitura psicológica pode ser preciosa. Se ela juntar sabedoria e experiência. Se ligar ciência e senso comum. Se desconstruir o complexo e o traduzir no simples. Se associar a uma leitura fina e sintética daquilo que se passa com uma pessoa um aconselhamento inteligente, que possa ser útil e “prático”. E “aconchegante”. E que traga mudanças.

Um aconselhamento pressupõe, pois, em quem o dá, muitos algoritmos que se cruzam. E que — de forma incisiva e breve — possam, no mínimo tempo possível, interpelar, interpretar, compreender, sintetizar e, cuidadosamente, propor uma leitura e um método (ou, simplesmente, a escolha dum  caminho) que vá do impasse à mudança. Dir-se-á: mas isso implica que se chegue ao breve após acompanhamentos intermináveis? Nada disso. Esse vício de forma que se colou a alguma psicologia, durante muitos anos, deu origem a uma nova vaga de manuais que, hoje, embrulham conceitos inteligentes e títulos muito comerciais em formatos que prometem soluções infalíveis, duma forma perigosa. Passou-se, pois, dum extremo ao outro. Um aconselhamento é um fim de linha duma leitura psicológica. Quando se cruzam  muitas experiências, um livro pode guardar aconselhamentos, que resultam dos denominadores comuns que se extraíram de todas elas. Todavia, “aconselhar” sem se partir daí, com base em meias-verdades que se vão resgatar à ciência, e com formas (muitas vezes) demagógicas de falar para os pais, por exemplo, reclamamdo que uma mesma “receita” se aplica a um determinado “sintoma” – independentemente dos sintomas em psicologia serem uma formação de compromisso que traduz sinais vitais e indícios de contradições, de morbilidade, de sofrimento e dor – já é perigoso. Porque, por mais que não pareça, os sintomas em saúde mental são sempre híbridos e compósitos. Ao contrário daquilo que quem os “normaliza” dá a entender.

A ideia de que há uma deriva perigosa (e, até, obscurantista) desta “psicologia” sempre me preocupou. Mas,  quando, num dia destes, naveguei em montras de livros em bibliotecas digitais, passou a alarmar-me muito mais. Nesse dia, escolhi a não-ficção. Os ensaios, portanto. E dei-me conta da oferta infindável de títulos que vendem motivação, a sabedoria em minutos, o amor com abertura fácil, e fórmulas (muitas fórmulas) para nos tornarmos pessoas melhores. E como ser feliz através dos hábitos. Receitas para transformar um filho entre segunda e sexta-feira. Manuais de boas práticas para ser próspero. Regras (rápidas!) para a vida, sobre as coisas mais diversas, que vão dos 5 segundos aos 3 minutos. Guias práticos para fazer amigos e influenciar pessoas. Formas para criar um novo eu. Manuais para controlar a ansiedade. Vários outros sobre hábitos saudáveis. Uns tantos acerca de dietas sem dor. Algumas coisas sobre o erro e os fracassos. Muitas sobre optimismo e contra a desistência. Uma mão cheia deles, como muito cérebro à mistura; claro. E mais alguns sobre armadilhas. Algumas delas, mais uma vez, cerebrais.

Claro que a intenção de muitos destes livros passa por serem manuais mais ou menos práticos que auxiliem as pessoas. A auto-ajuda – como, dantes, se chamava a estes livros – parece prometer transformações rápidas, fáceis, sem dor, sem esforço, sem gritos e, sobretudo, sem “matar a cabeça” a pensar. Mas, muitos deles, são pouco razoáveis. Pouco sensatos. Pouco consistentes. E, por mais que  bem intencionados, correm o risco de se tornar escorregadios.

Na verdade, estas montras têm muitas pitadas de psicologia. Isso não me surpreende, partindo do princípio que as pessoas precisam de encontrar leituras para se conhecerem. Sobretudo, para encontrarem explicações para as suas dificuldades. E para procurarem soluções para cada uma elas. Mas isso, reconheço, incomoda-me. Porque uma coisa é ligar pontas soltas na história das pessoas ou em muitos capítulos daquilo que é a sua vida, de todos os dias. Mesmo que elas lá cheguem através dum exemplo, duma história ou duma “explicação” esclarecedora que lhes faça sentido. Permitindo-lhes uma leitura tão simples, tão clara e tão óbvia que, com o acréscimo que elas acabam por pôr de si próprias em tudo isso faça com que, de flash em flash, esse caminho as leve à mudança. E, de mudança em mudança, à transformação. Outra coisa é propor um mesmo aconselhamento para todos. Como se fôssemos curvas normais. Uma coisa é chegar-se ao aconselhamento depois de uma leitura de síntese. Outra coisa, é fazer de cada um desses manuais um coach de cabeceira e contribuir para que muitas pessoas generosíssimas, que se procuram em si próprias e tentam encontrar motivos para as suas “dores”, apliquem fórmulas e soluções que, à primeira vista, lhes são apresentadas como eficazes mas que, de solução em solução, as vão divorciando da leitura equilibrada que elas fazem de si e dos filhos. Sobretudo, porque muitas dessas leituras são apresentadas como dados adquiridos. Regra geral, ancoradas em “estudos”. O que faz com que a sagaz sabedoria das pessoas pareça atrofiar-se com essa não-ficção, acabando por lhes fazer mal.

É verdade que a vida não se aprende nos livros. Mas eles podem ser instrumentos preciosos para que a vida reconquiste o sentido que, entretanto, possa ter perdido. Preocupa-me que se estes livros se vendam como se tivessem “psicologia” lá dentro. Mas preocupa-me mais, ainda, que não se assuma que, para cada problema, há uma solução simples, fácil, rápida e, regra geral, errada. Porque aí, há livros que nos levam ao engano. E isso é tudo o que nós e os livros não merecíamos.

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COMENTÁRIOS

Maria Brito do Rio: A banalização da Psicologia é culpa dos próprios Psicólogos, desde há anos, muito antes de a Ordem surgir. A falta de seriedade e profissionalismo com que se encara a profissão, induziu a moda dos "coachers" e "auto-ajuda" para tudo e todos.           Ironia das Ironias: Olha quem fala eheh          bento guerra: Também os smartphones não substituem a vida.           Eduardo Manuel Sá Gouveia: Doutor Eduardo Sá - mais um grande artigo onde expõe a sua visão para uma educação moderna, inclusiva, cooperativa, solidária, em que o ambientalismo, o eco-socialismo, o associativismo, o transhumanismo e a promoção dos valores LGBTTPQTPPCTPMRPP-4«2+ não são palavras vãs. Muita força para continuar, doutor.

 

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