Tempo de leitura, tempo de prática vivencial.
Lembrei-me de repegar na peça de Ésquilo, “As
Suplicantes”, como espécie de mergulho íntimo, de correspondência psicológica,
no mundo de sentimento dessas Suplicantes, mau grado a
diferente motivação que nos move a nós, humanos de hoje, da das cinquenta
virgens – as Danaides - em casta
fuga da Líbia para a Argólida, guiadas pelo
pai Dánaos, para
escaparem às perseguições matrimoniais dos cinquenta “filhos de Egipto”, irmão de Dánaos.
São «personagens de “AS
SUPLICANTES”: o REI de ARGOS, DANAOS, um ARAUTO, e o CORO
DAS DANAIDES. A acção decorre à
beira-mar, perto de Argos. Ao fundo da
orquestra, um altar com as estátuas de Zeus, Apolo, Posídon e Hermes.»
O processo narrativo em que combinam
narração e expressão dramática, complementada tantas vezes por traços
estilísticos de grande elevação, decorre no discurso do CORO, seguido de 5 ESTROFES e respectivas ANTÍSTROFES, com
mais três ESTROFES e ANTÍSTROFES, que explanam as vivências e as dores das participantes, as DANAIDES, num discurso
de estranha – talvez porque bem remota (embora helénica - e daí a elegância de
pensamento – linguagem expressiva de dor, de reminiscências sobre as suas origens,
de súplicas a vários deuses, de decisão de se matarem, caso não consigam o
apoio dos deuses para fugirem aos perseguidores. É esse, como exemplo, o conteúdo da Estrofe
3:
«ESTROFE
3: "Senão, queimadas pelos raios do Sol, iremos com os nossos remos
suplicantes até junto do deus subterrâneo (o Zeus dos Mortos, que recebe
inumeráveis mortos) depois de nos termos enforcado, caso não consigamos o apoio
dos deuses do Olimpo. Ah! Zeus, é IO, ai de nós, quem a fúria divina persegue. Reconheço o
ciúme de uma esposa todo-poderosa (Hera) no céu. É bem terrível o vento que desencadeia a
tormenta. (refrão repetido
na ANTÍSTROFE 3) (As Danaides tinham como avó IO, que
gerara o touro Epafo, nascido do bafo de Zeus, a quem pedem igualmente protecção,
a fúria de Hera, esposa de Zeus, resultando
em perseguição a IO. (Estrofe I)).
Segue-se o apelo de Dánaos às filhas, “Minhas filhas, sede prudentes. Se chegastes
até aqui, foi graças à prudência do vosso velho pai, piloto no qual tendes
confiança… Certamente os chefes do país vêm examinar-nos, advertidos por
mensageiros. Mas, seja de paz ou de cólera, o vento que no-los traz, mais vale
de toda a maneira, que vos senteis, minhas filhas, nesta eminência consagrada
aos deuses da cidade. Um altar vale mais do que uma muralha: é um escudo
infrangível.……” e explicai claramente que o vosso exílio não é punição de
sangue derramado. A vossa voz não deve afectar a ousadia nem o desplante, deve
ler-se nos vossos rostos: a fronte modesta, os olhos tranquilos. Evitai a
prolixidade nos vossos discursos: as pessoas daqui não a suportam. Sede maleáveis,
não o esqueçais; estrangeiras e fugitivas, tendes de vos dobrar ante a
necessidade. E a linguagem altiva não convém aos fracos.”
“O CORIFEU: Pai, falas com prudência a filhas
prudentes. Cuidarei de não esquecer as tuas avisadas recomendações. Assim Zeus
nosso avô lance sobre nós um olhar”............
Seguem-se os apelos aos deuses do altar:
“O CORIFEU: “Ó Zeus, tem piedade dos nossos sofrimentos, antes que
a morte nos leve”……….
O REI: De que país vem esta gente a que me
dirijo? Não está vestida à moda dos gregos; está ornada com trajes e faixas
bárbaras; e tal não é o vestuário das mulheres da Argólida, nem de qualquer
outro estado grego. Que tenhais ousado com tanta desenvoltura vir a este país,
sem arautos nem próxenos e sem guias, eis o que me surpreende. Trazeis, é
certo, ramos, que segundo o costume dos suplicantes, depusestes aos pés dos
deuses públicos É o único ponto que me permite conjecturar que estais de acordo
com a Grécia. … e tens a palavra para te explicares…..
Segue-se a identificação pelo REI e pelo CORIFEU, das
respectivas proveniências, que os aproximam como oriundos da terra de Argos e o
pedido de ajuda ao REI para a perseguição aos cinquenta pretendentes, filhos
de EGIPTO, irmão de DÁNAOS. Embora perplexo e pesando razões, em discurso pleno
de racionalidade denunciadora de pusilanimidade, e igualmente de compaixão, o
REI promete consultar os árgios sobre a questão, atitude democrática que não
convence O CORO das aguerridas e voluntariosas SUPLICANTES:
“És
tu a cidade: és tu o povo: monarca absoluto, és o senhor do altar, fogo sagrado
do país. Os únicos sufrágios aqui são os acenos da tua cabeça; o único ceptro
aquele que empunhas no teu trono; tu e só tu decides tudo; não queiras
manchar-te”.
O REI: “Deixo as manchas para os meus inimigos; mas não posso socorrer-vos sem
graves danos; e no entanto, não é humano desprezar as vossas súplicas. Não sei
como determinar-me e tenho, ao mesmo tempo, medo de agir e de tentar a sorte”……….
…..O REI: Se os filhos de Egipto têm algum direito sobre as vossas pessoas, em
virtude das leis do vosso país e se alegarem que são os vossos mais próximos
parentes, quem pode competir com eles? Cabe-vos, pois, convencer-me de que eles
não têm, de facto, segundo as leis do Egipto, qualquer direito sobre vós”.
O CORO: “Deus nos preserve sempre dessa sujeição à autoridade masculina.
Para nos preservarmos de um odioso himeneu, decidimos fugir, guiadas pelas
estrelas. Aceita a justiça como aliada e julga consoante o respeito que aos
deuses se deve.”
O
REI: “Esse julgamento é difícil: não me tomes por juiz. Já te disse que o que
me pedes não posso eu fazê-lo sem o povo, admitindo mesmo que me assista tal
direito. Não quero que o povo me diga um dia, se por acaso tal desgraça
sucedesse: «Para honrares uns recém-chegados, deitaste a perder a cidade»”
E o diálogo prossegue sempre vivo, o CORO das corajosas
e perspicazes DANAIDES reivindicando para ZEUS o “equilíbrio da
balança da justiça”, punindo os ímpios e salvando os piedosos”, pelo que o REI não deveria
temer, ao protegê-las.
Não vou prosseguir com as transcrições de
uma peça que prosseguirá com as sucessivas intervenções dos participantes,
acrescidos do ARAUTO que pretende levar as mulheres requestadas para o barco
dos Egípcios, numa extrema violência de linguagem ameaçadora, escatológica, alternando
com os gritos de raiva e de pavor do CORO das DANAIDES, a que o REI, salvador das
mulheres, porá cobro, em expressões ameaçadoras contra o ARAUTO furioso. E a peça – tragédia com happy end, de um escritor dos séculos VI/V a.C – concluirá
com as expressões de gratidão aos deuses e ao REI, numa escrita a que a tradução de URBANO
TAVARES RODRIGUES não deixou, certamente, de imprimir o seu cunho de
elegância e modernidade, conservando a nobreza de pensamento ático que nos deslumbra.
Lembrei-me de a reler, levada pelo título
da peça – AS SUPLICANTES –
correspondente, certamente, ao posicionamento psicológico em que se encontrarão
hoje muitas mulheres (e homens, naturalmente), de um mundo assustador, temendo
pelos seus filhos e pais e maridos, cujas vidas se manipulam, não
democraticamente, mas ao jeito ostensivamente ditatorial. Zeus que nos valha, numa guerra a formar-se, ainda
que nos falte a garra loquaz das SUPLICANTES, de IO descendentes, amada de ZEUS,
transformada em touro…
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