sábado, 12 de fevereiro de 2022

O Homem, esse conhecido

 

Tempo de leitura, tempo de prática vivencial. Lembrei-me de repegar na peça de Ésquilo, “As Suplicantes”, como espécie de mergulho íntimo, de correspondência psicológica, no mundo de sentimento dessas Suplicantes, mau grado a diferente motivação que nos move a nós, humanos de hoje, da das cinquenta virgens – as Danaides - em casta fuga da Líbia para a Argólida, guiadas pelo pai Dánaos, para escaparem às perseguições matrimoniais dos cinquenta “filhos de Egipto”, irmão de Dánaos.

São «personagens de “AS SUPLICANTES”: o REI de ARGOS, DANAOS, um ARAUTO, e o CORO DAS DANAIDES. A acção decorre à beira-mar, perto de Argos. Ao fundo da orquestra, um altar com as estátuas de Zeus, Apolo, Posídon e Hermes.»

O processo narrativo em que combinam narração e expressão dramática, complementada tantas vezes por traços estilísticos de grande elevação, decorre no discurso do CORO, seguido de 5 ESTROFES e respectivas ANTÍSTROFES, com  mais três ESTROFES e ANTÍSTROFES, que explanam as vivências e as dores das participantes, as DANAIDES, num discurso de estranha – talvez porque bem remota (embora helénica - e daí a elegância de pensamento – linguagem expressiva de dor, de reminiscências sobre as suas origens, de súplicas a vários deuses, de decisão de se matarem, caso não consigam o apoio dos deuses para fugirem aos perseguidores. É esse, como exemplo,  o conteúdo da Estrofe 3:

«ESTROFE 3: "Senão, queimadas pelos raios do Sol, iremos com os nossos remos suplicantes até junto do deus subterrâneo (o Zeus dos Mortos, que recebe inumeráveis mortos) depois de nos termos enforcado, caso não consigamos o apoio dos deuses do Olimpo. Ah! Zeus, é IO, ai de nós, quem a fúria divina persegue. Reconheço o ciúme de uma esposa todo-poderosa (Hera) no céu. É bem terrível o vento que desencadeia a tormenta. (refrão repetido na ANTÍSTROFE 3) (As Danaides tinham como avó IO, que gerara o touro Epafo, nascido do bafo de Zeus, a quem pedem igualmente protecção, a fúria de Hera, esposa de Zeus, resultando em perseguição a IO. (Estrofe I)).

Segue-se o apelo de Dánaos às filhas, Minhas filhas, sede prudentes. Se chegastes até aqui, foi graças à prudência do vosso velho pai, piloto no qual tendes confiança… Certamente os chefes do país vêm examinar-nos, advertidos por mensageiros. Mas, seja de paz ou de cólera, o vento que no-los traz, mais vale de toda a maneira, que vos senteis, minhas filhas, nesta eminência consagrada aos deuses da cidade. Um altar vale mais do que uma muralha: é um escudo infrangível.……” e explicai claramente que o vosso exílio não é punição de sangue derramado. A vossa voz não deve afectar a ousadia nem o desplante, deve ler-se nos vossos rostos: a fronte modesta, os olhos tranquilos. Evitai a prolixidade nos vossos discursos: as pessoas daqui não a suportam. Sede maleáveis, não o esqueçais; estrangeiras e fugitivas, tendes de vos dobrar ante a necessidade. E a linguagem altiva não convém aos fracos.”

O CORIFEU: Pai, falas com prudência a filhas prudentes. Cuidarei de não esquecer as tuas avisadas recomendações. Assim Zeus nosso avô lance sobre nós um olhar”............

Seguem-se os apelos aos deuses do altar:

 “O CORIFEU: “Ó Zeus, tem piedade dos nossos sofrimentos, antes que a morte nos leve”……….

O REI: De que país vem esta gente a que me dirijo? Não está vestida à moda dos gregos; está ornada com trajes e faixas bárbaras; e tal não é o vestuário das mulheres da Argólida, nem de qualquer outro estado grego. Que tenhais ousado com tanta desenvoltura vir a este país, sem arautos nem próxenos e sem guias, eis o que me surpreende. Trazeis, é certo, ramos, que segundo o costume dos suplicantes, depusestes aos pés dos deuses públicos É o único ponto que me permite conjecturar que estais de acordo com a Grécia. … e tens a palavra para te explicares…..

Segue-se a identificação pelo REI e pelo CORIFEU, das respectivas proveniências, que os aproximam como oriundos da terra de Argos e o pedido de ajuda ao REI para a perseguição aos cinquenta pretendentes, filhos de EGIPTO, irmão de DÁNAOS. Embora perplexo e pesando razões, em discurso pleno de racionalidade denunciadora de pusilanimidade, e igualmente de compaixão, o REI promete consultar os árgios sobre a questão, atitude democrática que não convence O CORO das aguerridas e voluntariosas SUPLICANTES:

“És tu a cidade: és tu o povo: monarca absoluto, és o senhor do altar, fogo sagrado do país. Os únicos sufrágios aqui são os acenos da tua cabeça; o único ceptro aquele que empunhas no teu trono; tu e só tu decides tudo; não queiras manchar-te”.

O REI: “Deixo as manchas para os meus inimigos; mas não posso socorrer-vos sem graves danos; e no entanto, não é humano desprezar as vossas súplicas. Não sei como determinar-me e tenho, ao mesmo tempo, medo de agir e de tentar a sorte”……….

…..O REI: Se os filhos de Egipto têm algum direito sobre as vossas pessoas, em virtude das leis do vosso país e se alegarem que são os vossos mais próximos parentes, quem pode competir com eles? Cabe-vos, pois, convencer-me de que eles não têm, de facto, segundo as leis do Egipto, qualquer direito sobre vós”.

O CORO: “Deus nos preserve sempre dessa sujeição à autoridade masculina. Para nos preservarmos de um odioso himeneu, decidimos fugir, guiadas pelas estrelas. Aceita a justiça como aliada e julga consoante o respeito que aos deuses se deve.”

O REI: “Esse julgamento é difícil: não me tomes por juiz. Já te disse que o que me pedes não posso eu fazê-lo sem o povo, admitindo mesmo que me assista tal direito. Não quero que o povo me diga um dia, se por acaso tal desgraça sucedesse: «Para honrares uns recém-chegados, deitaste a perder a cidade»”

E o diálogo prossegue sempre vivo, o CORO das corajosas e perspicazes DANAIDES reivindicando para ZEUS oequilíbrio da balança da justiça”, punindo os ímpios e salvando os piedosos”, pelo que o REI não deveria temer, ao protegê-las.

Não vou prosseguir com as transcrições de uma peça que prosseguirá com as sucessivas intervenções dos participantes, acrescidos do ARAUTO que pretende levar as mulheres requestadas para o barco dos Egípcios, numa extrema violência de linguagem ameaçadora, escatológica, alternando com os gritos de raiva e de pavor do CORO das DANAIDES, a que o REI, salvador das mulheres, porá cobro, em expressões ameaçadoras contra o ARAUTO furioso. E a peça – tragédia com happy end, de um escritor dos séculos VI/V a.C – concluirá com as expressões de gratidão aos deuses e ao REI, numa escrita a que a tradução de URBANO TAVARES RODRIGUES não deixou, certamente, de imprimir o seu cunho de elegância e modernidade, conservando a nobreza de pensamento ático que nos deslumbra.

Lembrei-me de a reler, levada pelo título da peça – AS SUPLICANTES – correspondente, certamente, ao posicionamento psicológico em que se encontrarão hoje muitas mulheres (e homens, naturalmente), de um mundo assustador, temendo pelos seus filhos e pais e maridos, cujas vidas se manipulam, não democraticamente, mas ao jeito ostensivamente ditatorial. Zeus que nos valha, numa guerra a formar-se, ainda que nos falte a garra loquaz das SUPLICANTES, de IO descendentes, amada de ZEUS, transformada em touro…

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