segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Ninguém foge ao seu destino


 Artimanhas do destino, foi toda essa história do Édipo e Laios e Jocasta, história predita e por isso afastada,  embora provisoriamente, pelos respectivos progenitores de Édipo, que o enviaram para que fosse morto no monte, o que o destino evitou na figura de um pastor, que levou a criança que achou amarrada no monte para o palácio dos reis de outra terra, que o criaram como seu filho. Édipo adulto e enganado pelo oráculo fatídico, a respeito da sua proveniência, foge do palácio para não matar aqueles que julgava seus pais, Pólibo e Mérope, reis de Corinto. No caminho decifra o enigma da Esfinge, mata Laios, casa com Jocasta que lhe dá quatro filhos–irmãos, descobre que é o responsável pela peste que grassa em Tebas, numa progressiva reconstituição dos factos em retrospectiva, que o indiciam e condenam, sem culpa consciente. Não, ninguém foge ao seu destino. É o que é, já o disse o nosso fado, pela voz de Artur Garcia e Maria de Lurdes Resende:

Quando nasce uma pessoa
Traz o destino marcado:
Ou a sorte a abençoa
Ou a tenta o vil pecado.

Mas se alguém há que não queira

Crer em Deus pr’a lhe dar sorte,
Antes procurar a morte,
Que andar sem eira nem beira.

 

A sorte só favorece quem
Na vida uma boa estrela tem
Mas com fé até parece
Que a vida nos fica mais bela também.

Bis, coro

 

Ninguém foge ao seu destino,
A sorte não cai do céu.
Já se traz de pequenino,
A sina que Deus nos deu.

Mas não vá perder a calma,
Que a ter fé ninguém o obriga,
Basta só ter fé na alma
Duma pobre rapariga.

Estribilho

A sorte só favorece quem… etc.

Maestro Jaime Mendes, 1944

Por isso, concordo com Eduardo Sá, que renega o tal complexo freudiano, conhecedor da vida, como parece ser - a vida como resultante, sobretudo, de educação adequada, com desvios por vezes, que deixam traços e mágoas, ou laços de amor permanentes, conforme os casos.

Disse complexo de Édipo?

Um filho pode representar o único “homem” por quem a mãe se sente, inequivocamente, entendida e amada. E de formas tão inconscientes que um e outro não se dêem conta de “excluírem” o pai dessa relação

EDUARDO Sá

OBSERVADOR, 06 fev 2022

A ideia de que as meninas têm um “fraquinho” pelo pai e uma relação mais tensa com a mãe, e os meninos são muito mais próximos da mãe e distantes do pai sempre me preocupou. Em primeiro lugar, porque esses comentários são banais. E, dessa forma, assumem uma atmosfera de explicação para alguns desencontros que se instalam entre os pais e os filhos, como se fossem uma espécie de fatalidade quase biológica, diante dos quais não só parecesse não haver nada a fazer como se dela não se retirasse uma pergunta que fosse sobre os motivos pelos quais isso se possa estar a dar, num determinado momento. Em segundo lugar, porque, para além da noção de inconsciente, essa leitura ligeira conflui para a noção de Complexo de Édipo. Que não faz justiça à psicanálise e que, antes, contribui para a desqualificar. Como se um conceito como esse se afastasse, para mais, duma psicologia muito mais dada a propor receitas simples e fáceis, diante das quais pareça não ser necessário nem pormo-nos em causa nem sequer pensar.

Começando pelo princípio, a tragédia do rei Édipo para o desenvolvimento infantil é um escorregão grande de Freud. Pegando no exemplo mais trazido à discussão a propósito dum conceito como esse, o sonho secreto de cada menino não é colocar o pai longe da mãe e ocupar o seu lugar. Em boa verdade, ao contrário do que essa perspectiva demasiado linear daria a entender, o grande desafio de cada um de nós, em todos os momentos do nosso desenvolvimento, passará muito mais por “casarmos” os nossos pais dentro de nós. Identificarmo-nos aos dois, de modo tendencialmente semelhante, de forma a guardarmos o melhor de cada um e o melhor da relação que eles nos deram, como alicerces daquilo que queremos ser. Isto é, mãe e pai são matrizes do nosso desenvolvimento. E a maneira como os guardamos e misturamos dentro de nós acaba por fazer deles a trave-mestra da nossa personalidade (à qual se associam pessoas e mais pessoas representativas que, ao longo da vida, dão àquilo que somos uma pluralidade de referências e de aprendizagens sempre em aberto). Sendo que as coisas más que os tiveram como protagonistas e que vivemos com eles (episódios feios, omissões contínuas, experiências assustadoras, perdas, fragilidades, medos, dores, etc.), não deixam de ter consequências na forma como tudo isso contribuiu, também, para “moldar” a nossa personalidade, levando-nos até aquilo que somos hoje.

A forma como identificamos os nossos pais nos nossos mais diversos gestos, apartes, comentários, comportamentos ou pontos de vista vê-se no nosso dia a dia. No modo como nos relacionamos com os outros. Como falamos como eles. Como amamos. Como somos pais. Como somos guerreiros. Como somos medricas. E por aí adiante. E é por isso que esse processo é descrito como sendo inconsciente. O que quer dizer, por outras palavras, que faz parte duma sabedoria imensa que se guarda em nós, que não tem unicamente a ver com os nossos pais mas que se aprende e aprende e aprende, e que, em cada momento, se assemelha a um assistente pessoal que regista, analisa, arruma e cria informação e nos leva a discorrer, a pensar e a ter inúmeros comportamentos “em piloto automático”. Por outras palavras, mesmo quando parecemos nem sequer puxar pela cabeça, pensamos ao nosso melhor nível. Sem que isso queira dizer que não nos “embrulhamos”, de vez em quando, em histórias, episódios, enredos e personagens que estorvam o melhor de tudo o que somos. E que nos levam a ligar uma espécie de atrapalhador dentro de nós.

E, depois, há a relação de privilégio único e inimitável entre uma mãe e o seu bebé. Onde se misturam os pais que teve, os pais que sonhou ter, a mãe que se imagina a ser, o bebé que desejou e ousou construir. E, já agora, a história daquela gravidez. E a das anteriores. E a que se foi construindo desde que o bebé pôs o seu nariz cá fora. Mais o estado actual da relação com o pai daquele bebé. A forma como ela e o pai se reconhecem ou se reveem nele. Etc. Com o pai do bebé não deixa de acontecer algo de muito semelhante. O que faz com que a relação de um bebé com os seus pais seja uma encruzilhada de muitas histórias. E faz do coração da mãe e do pai uma fonte de sabedoria que se aprofunda em todos os dias em que todos se conhecem melhor. É claro que será mais do que razoável que um bebé tenha, a priori, muito mais olhos para a mãe do que tem para o pai. E que, para o melhor e para o pior, ela seja a sua primeira grande referência. A verdade é que a sua relação com ela tem muito mais horas de aprendizagem recíproca…

É claro que, em função duma tão inacreditável experiência entre os dois, se a relação entre mãe e bebé se torna como “a referência” de uma relação amorosa para um bebé, ela corre, igualmente, “o risco” de passar a ser uma espécie de “up grade” para o que a mãe espera do amor, o que faz com que, depois desse encantamento recíproco, a qualidade da relação amorosa que ela tinha com o pai do bebé possa ser posta em causa. Ao que se acrescerá tudo aquilo que ele pode não ter sido capaz de dar à relação, depois do bebé nascer. E, já agora, ao modo como ele se colocou naquela relação. Passou a ser um companheiro mais cúmplice, mais atento e mais dedicado para a mãe? Excelente! Revela-se com um pai único, terno, participativo e brincalhão? Melhor, ainda. Anula-se ou “eclipsa-se”, como se não soubesse qual é o seu lugar naquela relação? As coisas complicam-se… Amua, como se se sentisse excluído, e cobra esse presumível afastamento com resmunguice e mau humor? É claro que compromete o dia depois de amanhã daquela relação. Ou seja, a forma como mãe e pai se relacionam com um filho não tem nada da linearidade que uma ideia de um complexo de Édipo com um interruptor mais ou menos biológico faria supor. Mas o modo como mãe e filho (continuemos com este exemplo) se sentem a comunicar um com o outro pode estar “muito além” da forma como o pai e a mãe conseguem comunicar entre si. E isso não é tão raro assim. Em muitas circunstâncias, um filho poderá representar o único “homem” por quem a mãe se sente, inequivocamente, entendida e amada. E de formas tão inconscientes que um e outro não se dêem conta de “excluírem” o pai dessa relação. Ou isso leve a que o pai, de tão continuadamente magoado, se exclua a si próprio, aos poucos, reagindo, episodicamente, de forma áspera, em relação aquele filho. A ponto de, a longo prazo, comprometer essa relação, afastando-se aos poucos da mãe, divorciando-se dela, aos bocadinhos. Na verdade, não é uma criança que afasta os pais. Mas é a forma entaramelada como eles vivem estes episódios, que concorrem uns com os outros, que os pode afastar, aos poucos.

Na verdade, com pai e uma filha passa-se o mesmo. E, sem fazer disso qualquer ligação exclusiva entre pais e filhos de sexos diferentes, passa-se um pouco desta forma entre todos os pais e todos os filhos. O que faz com que aquilo a que se foi chamando complexo de Édipo, hoje, não faça sentido. O que não quer dizer que os pais e os filhos não se desencontrem. Que os bebés não interfiram na relação dos pais. Que, por vezes, a relação de um dos pais com um dos filhos não tenha a cumplicidade, os laços e o amor que não existem entre os próprios pais. Ou que, às vezes, um dos pais tenha com um dos filhos uma relação amorosa que transcende aquilo que se esperaria da simples parentalidade. E que tudo isso leve a que pareça, por exemplo, que as meninas têm um “fraquinho” pelo pai e uma relação mais tensa com a mãe, e os meninos são muito mais próximos da mãe e distantes do pai. Mas o importante é perguntar porquê. Sem que se fique por uma espécie de fatalidade quase biológica sem pés nem cabeça. Nem por receitas simples e fáceis, diante das quais pareça não ser necessário nem pormo-nos em causa nem sequer pensar.

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COMENTÁRIO

bento guerra: Eu julgava que era o filho achar que só a mãe é única "mulher como deve ser"

 

 

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