Artimanhas
do destino, foi toda essa história do Édipo e Laios e Jocasta, história predita
e por isso afastada, embora provisoriamente, pelos
respectivos progenitores de Édipo, que o enviaram para que fosse morto no monte,
o que o destino evitou na figura de um pastor, que levou a criança que achou amarrada
no monte para o palácio dos reis de outra terra, que o criaram como seu filho. Édipo
adulto e enganado pelo oráculo fatídico, a respeito da sua proveniência, foge
do palácio para não matar aqueles que julgava seus pais, Pólibo e Mérope, reis
de Corinto. No caminho decifra o enigma da Esfinge, mata Laios, casa com
Jocasta que lhe dá quatro filhos–irmãos, descobre que é o responsável pela
peste que grassa em Tebas, numa progressiva reconstituição dos factos em
retrospectiva, que o indiciam e condenam, sem culpa consciente. Não, ninguém
foge ao seu destino. É o que é, já o disse o nosso fado, pela voz de Artur Garcia e Maria de Lurdes Resende:
Quando nasce
uma pessoa
Traz o destino marcado:
Ou a sorte a abençoa
Ou a tenta o vil pecado.
Mas se alguém
há que não queira
Crer em Deus
pr’a lhe dar sorte,
Antes procurar a morte,
Que andar sem eira nem beira.
A sorte só
favorece quem
Na vida uma boa estrela tem
Mas com fé até parece
Que a vida nos fica mais bela também.
Bis, coro
Ninguém foge
ao seu destino,
A sorte não cai do céu.
Já se traz de pequenino,
A sina que Deus nos deu.
Mas não vá
perder a calma,
Que a ter fé ninguém o obriga,
Basta só ter fé na alma
Duma pobre rapariga.
Estribilho
A sorte só
favorece quem… etc.
Maestro Jaime Mendes, 1944
Por isso, concordo com Eduardo Sá, que renega o tal complexo
freudiano, conhecedor da vida, como parece ser - a vida como resultante,
sobretudo, de educação adequada, com desvios por vezes, que deixam traços e
mágoas, ou laços de amor permanentes, conforme os casos.
Disse complexo de Édipo?
Um filho pode representar o único
“homem” por quem a mãe se sente, inequivocamente, entendida e amada. E de
formas tão inconscientes que um e outro não se dêem conta de “excluírem” o pai
dessa relação
EDUARDO Sá
OBSERVADOR, 06 fev 2022
A
ideia de que as meninas têm um “fraquinho” pelo pai e uma relação mais tensa
com a mãe, e os meninos são muito mais próximos da mãe e distantes do pai
sempre me preocupou. Em primeiro lugar, porque esses comentários são banais.
E, dessa forma, assumem uma atmosfera de explicação para alguns desencontros
que se instalam entre os pais e os filhos, como se fossem uma espécie de
fatalidade quase biológica, diante dos quais não só parecesse não haver
nada a fazer como se dela não se retirasse uma pergunta que fosse sobre os
motivos pelos quais isso se possa estar a dar, num determinado momento. Em
segundo lugar, porque, para além da noção de inconsciente, essa leitura
ligeira conflui para a noção de Complexo
de Édipo. Que não faz
justiça à psicanálise e que, antes, contribui para a desqualificar. Como se um conceito como esse se afastasse, para mais,
duma psicologia muito mais dada a propor receitas simples e fáceis, diante das
quais pareça não ser necessário nem pormo-nos em causa nem sequer pensar.
Começando
pelo princípio, a tragédia do
rei Édipo para o desenvolvimento infantil é um escorregão grande de Freud. Pegando no exemplo mais trazido à discussão a
propósito dum conceito como esse, o sonho secreto de cada menino não é
colocar o pai longe da mãe e ocupar o seu lugar. Em boa verdade, ao
contrário do que essa perspectiva demasiado linear daria a entender, o
grande desafio de cada um de nós, em todos os momentos do nosso
desenvolvimento, passará muito mais por “casarmos” os nossos pais dentro de nós.
Identificarmo-nos aos dois, de modo tendencialmente
semelhante, de forma a guardarmos o melhor de cada um e o melhor da relação que
eles nos deram, como alicerces daquilo que queremos ser. Isto é, mãe
e pai são matrizes do nosso desenvolvimento. E
a maneira como os guardamos e misturamos dentro de nós acaba por fazer deles a
trave-mestra da nossa personalidade (à qual se associam pessoas e mais
pessoas representativas que, ao longo da vida, dão àquilo que somos uma
pluralidade de referências e de aprendizagens sempre em aberto). Sendo que as coisas más que os tiveram como
protagonistas e que vivemos com eles (episódios feios, omissões contínuas,
experiências assustadoras, perdas, fragilidades, medos, dores, etc.), não
deixam de ter consequências na forma como tudo isso contribuiu, também, para
“moldar” a nossa personalidade, levando-nos até aquilo que somos hoje.
A forma como identificamos os nossos
pais nos nossos mais diversos gestos, apartes, comentários, comportamentos ou
pontos de vista vê-se no nosso dia a dia. No
modo como nos relacionamos com os outros. Como falamos como eles. Como amamos.
Como somos pais. Como somos guerreiros. Como somos medricas. E por aí adiante.
E é por isso que esse processo é
descrito como sendo inconsciente. O
que quer dizer, por outras palavras, que faz parte duma sabedoria imensa que
se guarda em nós, que não tem unicamente a ver com os nossos pais mas que se
aprende e aprende e aprende, e que, em cada momento, se assemelha a um
assistente pessoal que regista, analisa, arruma e cria informação e nos leva a
discorrer, a pensar e a ter inúmeros comportamentos “em piloto automático”.
Por outras palavras, mesmo quando parecemos nem sequer puxar pela cabeça,
pensamos ao nosso melhor nível. Sem que isso queira dizer que não nos
“embrulhamos”, de vez em quando, em histórias, episódios, enredos e personagens
que estorvam o melhor de tudo o que somos. E que nos levam a ligar uma espécie de atrapalhador
dentro de nós.
E, depois, há a relação de privilégio único e
inimitável entre uma mãe e o seu bebé. Onde se misturam os pais que teve, os
pais que sonhou ter, a mãe que se imagina a ser, o bebé que desejou e ousou
construir. E, já agora, a história daquela gravidez. E a das anteriores. E a
que se foi construindo desde que o bebé pôs o seu nariz cá fora. Mais o estado
actual da relação com o pai daquele bebé. A forma como ela e o pai se
reconhecem ou se reveem nele.
Etc. Com o pai do bebé não deixa de acontecer
algo de muito semelhante. O que faz
com que a relação de um bebé com os seus pais seja uma encruzilhada de muitas
histórias. E faz do coração da mãe e do pai uma fonte de sabedoria que se
aprofunda em todos os dias em que todos se conhecem melhor. É claro que
será mais do que razoável que um bebé tenha, a priori, muito mais olhos para a
mãe do que tem para o pai. E que, para o melhor e para o pior, ela seja a sua
primeira grande referência. A verdade é que a sua relação com ela tem muito
mais horas de aprendizagem recíproca…
É claro que, em função duma tão inacreditável
experiência entre os dois, se a relação entre mãe e bebé se torna como “a
referência” de uma relação amorosa para um bebé, ela corre, igualmente, “o
risco” de passar a ser uma espécie de “up grade” para o que a mãe espera do
amor, o que faz com que, depois desse encantamento recíproco, a qualidade da
relação amorosa que ela tinha com o pai do bebé possa ser posta em causa. Ao que se acrescerá tudo aquilo que ele pode não ter
sido capaz de dar à relação, depois do bebé nascer. E, já agora, ao modo como ele se colocou naquela relação. Passou a ser
um companheiro mais cúmplice, mais atento e mais dedicado para a mãe? Excelente! Revela-se com
um pai único, terno, participativo e brincalhão? Melhor, ainda. Anula-se ou
“eclipsa-se”, como se não soubesse qual é o seu lugar naquela relação? As
coisas complicam-se… Amua, como se se sentisse excluído, e cobra esse
presumível afastamento com resmunguice e mau humor? É claro que compromete o
dia depois de amanhã daquela relação. Ou seja, a
forma como mãe e pai se relacionam com um filho não tem nada da linearidade que
uma ideia de um complexo de Édipo com um interruptor mais ou menos biológico
faria supor. Mas o modo
como mãe e filho (continuemos com este exemplo) se sentem a comunicar um com o
outro pode estar “muito além” da forma como o pai e a mãe conseguem comunicar
entre si. E isso não é tão raro assim. Em muitas circunstâncias, um filho poderá representar
o único “homem” por quem a mãe se sente, inequivocamente, entendida e amada. E de formas tão inconscientes que um e outro não
se dêem conta de “excluírem” o pai dessa relação. Ou isso leve a que o
pai, de tão continuadamente magoado, se exclua a si próprio, aos poucos,
reagindo, episodicamente, de forma áspera, em relação aquele filho. A ponto
de, a longo prazo, comprometer essa relação, afastando-se aos poucos da mãe,
divorciando-se dela, aos bocadinhos. Na verdade, não é uma criança que
afasta os pais. Mas é a forma entaramelada como eles vivem estes episódios, que
concorrem uns com os outros, que os pode afastar, aos poucos.
Na verdade,
com pai e uma filha passa-se o mesmo. E,
sem fazer disso qualquer ligação exclusiva entre pais e filhos de sexos
diferentes, passa-se um pouco desta forma entre todos os pais e todos os
filhos. O que faz com que aquilo a que se foi chamando complexo de Édipo, hoje, não faça sentido. O que não quer dizer que os pais e os filhos não se
desencontrem. Que os bebés não interfiram na relação dos pais. Que, por vezes,
a relação de um dos pais com um dos filhos não tenha a cumplicidade, os laços e
o amor que não existem entre os próprios pais. Ou que, às vezes, um dos pais
tenha com um dos filhos uma relação amorosa que transcende aquilo que se
esperaria da simples parentalidade. E
que tudo isso leve a que pareça, por exemplo, que as meninas têm um “fraquinho”
pelo pai e uma relação mais tensa com a mãe, e os meninos são muito mais
próximos da mãe e distantes do pai. Mas o importante é perguntar porquê. Sem
que se fique por uma espécie de fatalidade quase biológica sem pés nem cabeça.
Nem por receitas simples e fáceis, diante das quais pareça não ser necessário
nem pormo-nos em causa nem sequer pensar.
PAIS E FILHOS FAMÍLIA LIFESTYLE
COMENTÁRIO
bento guerra: Eu julgava
que era o filho achar que só a mãe é única "mulher como deve ser"
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