domingo, 20 de fevereiro de 2022

Brincando às guerras


E, tal como a irmã do Solnado, nós só diremos “Pois!”, sujeitando-nos, tal como a irmã daquele, a esse mesmo comentário desagradável, ainda que do Além: “Porque a minha irmã é muito amiga de dizer coisas”. Não sei se já faleceu, a irmã do Solnado, ou se continua a dizer coisas. Nós, sim.

Mas sempre acrescento à minha interjeição conclusiva, que a cara de Putin, na doçura da sua suavidade sorridente, não engana. Tal como o algodão do anúncio, que tudo limpa. Todavia, gostaria de crer que Diana Soller não está enganada, nem nos engana, algodão puro, de verdade.

Podemos mesmo falar de guerra?

As tensões na Ucrânia são um tipo de cenário que vamos ver muito mais vezes: potências a testar os limites umas das outras. Muito mais difícil será se estas tensões se replicarem no Indo-Pacífico.

DIANA SOLLER, Colunista do OBSERVADOR

OBSERVADOR, 19 fev 2022, 00:1215

A situação na Ucrânia que se arrasta, pelo menos, desde dezembro, é um tipo de tensão a que vamos assistir muitas vezes nos próximos anos. É uma situação típica de fases de transição de poder, como a que estamos a viver agora, em que uma potência com intuitos revisionistas testa os limites da potência de status quo. A Rússia, que nunca escondeu que quer estender a sua esfera de influência e empurrar a NATO para uma posição de insignificância, viu uma oportunidade de exercer pressão sobre os Estados Unidos e fez questão de a aproveitar – como, aliás, seria de esperar tendo em conta o comportamento russo desde que Vladimir Putin tomou o poder, há mais de duas décadas.

Vamos, então, aos factos.

No Verão passado, na primeira cimeira bilateral EUA-Rússia, Biden declarou a Putin e à imprensa que considerava que Moscovo era uma grande potência. Isto quer dizer, pelo menos, três coisas: (1) que os norte-americanos não se intrometerão na vida russa, caso não haja atravessamento de linhas vermelhas que prejudiquem Washington e os seus aliados; (2) que os norte-americanos reconhecem legitimidade à existência de Moscovo, tal como é. Enquanto a China continua a ser um inimigo existencial, a Rússia é um actor com o qual se compete e coopera consoante as necessidades; e (3) o Kremlin tem o direito do tutelar a sua vizinhança próxima, porque as grandes potências têm o direito a ter uma esfera de influência. Concedendo um estatuto diferente à Rússia, terá pensado a administração americana, “isolava” Pequim e apaziguava Moscovo.

Putin esperou por um momento de fragilidade norte-americana para reclamar o seu prémio. Este chegou com a debilidade internacional da retirada do Afeganistão (final de agosto) e a franqueza com que os norte-americanos têm vindo a analisar a sua situação interna – a fraca popularidade de Joe Biden desde setembro e o incremento da polarização americana que, segundo diversos especialistas, tem condições para se tornar violenta. Assim, Putin fez uso do cenário que lhe proporcionavam os exercícios militares regulares de Inverno e apresentou aos Estados Unidos um ultimato em que exigia o regresso da NATO às fronteiras de 1997, o recuo do armamento, mesmo que defensivo, entre outras exigências que nunca seriam aceites por Washington, sob pena de destruir a NATO que, salvo melhor opinião, ainda é a aliança mais duradoura da história. Putin cobriu as suas exigências com um manto de intimidação, fazendo acreditar que, caso não se cumprissem parte das suas exigências – o Kremlin sempre soube que nunca seriam todas – deflagraria uma “guerra” na Ucrânia.

A resposta dos Estados Unidos foi gradual mas persistente. Primeiro, insistiu em sanções severas. Depois, começou a denunciar diariamente os avanços da Rússia, tal como Kennedy tinha feito com sucesso, na Crise dos Mísseis de Cuba. Uma vez ou outra, por Anthony Blinken ou Jack Sullivan, deu a entender que não estava fora de questão usar “outros meios” caso a Rússia avançasse para além das suas fronteiras. O facto de a diplomacia americana estar a tratar estas tensões como se trata de uma guerra iminente, torna a intimidação da Ucrânia por parte de Moscovo um acontecimento em grande escala junto da comunidade internacional e denuncia as intenções não justificadas do Kremlin. Biden, visto por muitos como um presidente fraco, está a manobrar esta situação com bastante perícia.

A tensão e a guerra de informação vão manter-se por mais algum tempo. Washington continuará a dizer que a guerra vai começar no dia do encerramento dos Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim e que nada justifica a acção musculada de Putin na fronteira. Moscovo vai continuar a dizer que a NATO não correspondeu às suas imposições legítimas e a evocar os direitos das minorias russas em território estrangeiro. os membros da NATO vão continuar a dizer que ainda há lugar para uma solução  diplomática.

Ainda pode ainda haver uma guerra? Pode. Por três razões: nestas situações em que se escalam tensões pode sempre haver um momento em que um acidente ou mesmo um cálculo mal feito pode levar algum dos actores, mais afoito, a disparar o primeiro tiro. E se as forças militares estacionadas na fronteira da Ucrânia não têm dimensão para uma invasão em larga escala, o Kremlin ainda pode ordenar uma incursão capaz de destruir o exército ucraniano. E as manobras de quinta-feira dos separatistas do Donbass abrem a porta a Putin para fazer a alegada defesa dos cidadãos russos fora de fronteiras.

Ainda vamos ter de esperar até que as tensões se desanuviem. Mas mesmo que não haja uma guerra limitada, o Kremlin pode dizer que “ganhou” a Ucrânia (mesmo que seja por falta de comparência ocidental), a NATO pode dizer que mantém as suas fronteiras intactas, os Estados Unidos podem dizer que evitaram uma guerra iminente. Ninguém perde a face.

É legítimo perguntar se alguém ganha com estes meses de inquietude para, na verdade, nada mudar significativamente. Não me parece que haja vencedores nem vencidos. Há, essencialmente, um tipo de tensão que vamos ver muitas vezes daqui para a frente: potências a testar os limites umas das outras. Muito mais difícil será se estas tensões se replicarem no Indo-Pacífico, o que não está, pelas razões elencadas acima, do todo, fora de questão.

UCRÂNIA   EUROPA   MUNDO

 COMENTÁRIOS:

David Pinheiro: Quem ganha, de certeza, é a NATO, que ganhou nova vida.           João Afonso: E o Trump é que coiso e tal. Já o Biden, ui ui. A Europa está entalada, impotente e completamente exposta a um jogo perigoso, mas nem assim há a honestidade de fazer uma análise retrospectiva da política externa americana durante a presidência Trump em comparação com a actual. Ou pensam que o cheiro a guerra, a incerteza e a ameaça à Europa é fruto da sorte ou do azar?           Censurado Censurado > João Afonso: Deixa lá essa paixão de quem é mais que passado e nem as contas paga.          João Afonso > Censurado Censurado: As contas fazem-se no fim, e agora que chegou ao fim, convém relembrar as tontas marionetas canhotas que profetizaram o fim do mundo e asseguraram que com Trump viria a guerra.  Só pela paixão se explica como engoles o flop Joe. Deves andar angustiado com as escolhas: de um lado o Joe, do outro o Putin !          Censurado Censurado: Adoro estas colunistas que fazem questão de começar logo por dizer ao que vêm e que de independentes não têm nada. Além de mais honestos quanto ao engajamento ainda poupam imenso tempo c/ statements:    “(2) que os norte-americanos reconhecem legitimidade à existência de Moscovo, tal como é.” E o Mundo rejubila de contente porque os EUA reconheceram finalmente Moscovo!     Melhor mesmo só: “A Rússia, que nunca escondeu que quer (…) empurrar a NATO para uma posição de insignificância…”      Ou seja, para toda a existência que consegue  justificar ou os 50 anos até à queda do muro. Como foi aliás prometido ao Mundo e à Rússia à época. Que a Nato nunca procederia a qq alargamento. Como ainda hoje defendem muitos estrategas norte americanos que sempre previram outra Guerra Fria. Posto que a Rússia tem todo o direito de não conviver bem com esse alargamento! Quanto mais não fosse porque o período até à queda do Muro é realmente o único período que consegue justificar a existência da NATO como foi criada! Depois do populista mais sobrevalorizado da história, Mr. Chrchill cambalhotas - ter criado o conceito e declarado o início da Guerra Fria!      Mr. Churchill que já no deflagrar da 1ª guerra no Almirantado até a alma do RMS Lusitania com mais de 1 000 vidas humanas encomendou ao Criador para trazer os EUA para a Guerra na Europa. O que acabava com a carreira de qq político menos aristocrático em qq parte do mundo. Já na 2ª Guerra Putin tb costuma dizer que Stalin devia ter um colchão de ginástica só para o receber com os seus pedidos de ajuda. Putin que até é um grande crítico da sua geriatria ortodoxa comunista. Outra coisa que Mr. Churchill não deve ter previsto na 2ª Guerra foi que os americanos só vieram engolir a libra esterlina.      Finalmente saudar a colunista por ao menos não ter enveredado pela narrativa do imperialismo de antanho. Ao que eu me pergunto sempre se os seus crentes não terão ao menos dois neurónios que lhe digam que os Impérios tb acabaram porque são insustentáveis sem escravos. Por maiores esforços da globalização tb nesse sentido de retorno.  P.S. E também é verdade que Kennedy fez algo parecido com os mísseis de Cuba. Esqueceu-se, foi de fazer o mesmo uns meses antes quando instalou os mísseis na Turquia. Que pagou por essa via o ingresso no clube. Como outros a partir de 97 como diz e bem a colunista.      Cisca Impllit: Não queria os russos como vizinhos. Ou se lhes faz a vontade ou destroem de uma forma ou  de outra!           Censurado Censurado > Cisca Impllit: Eu tb preferia russas. JS M: A Ucrânia faz parte da Rússia quer a gente queira, quer não queira. Já houve Dolgorukis (príncipes da Ucrânia) que foram Czares da Rússia. Por isso nem NATO nem americano nenhum poderá mudar a geopolítica. klaus muller > JS M: Mas se eles não querem ser parte da Rússia atualmente, terão de sê-lo à força apenas porque "príncipes da Ucrânia foram czares da Rússia"?           J Sm > klaus muller: As coisas não são assim tão simples. E quem são 'eles'?! Quer pesar a vontade histórica de milhões de ucranianos na mesma balança que uma hipotética vontade  conjuntural, impulsionada por uma também hipotética adesão a uma união europeia, que sabe-se lá quanto tempo vai durar?! Mas nem precisamos de ir por aí. A soberania nunca é absoluta. Se os portugueses se levantassem todos num dia e votassem a existência de bases russas no Alentejo essa vontade nunca seria satisfeita. A não ser que estivessem dispostos a morrer todos por isso. Portugal existe porque muita gente morreu para que ele existisse. Não teve nada a ver com vontades episódicas e conjunturais. Uma votação apaga a outra no dia seguinte.            klaus muller > J Sm: Isso não foi resposta à minha pergunta que, aliás, saltava à vista que não era para ter resposta. Mas uma coisa é factual: tal como os russos se acham no direito de se sentirem ameaçados com a NATO logo ali ao seu lado, os Europeus também têm o direito de se acharem ameaçados com a possibilidade (real) dos russos concentrarem e ameaçarem com tropas mesmo aqui ao nosso lado. Daí que recorramos à NATO, pois é a única saída que temos, caso contrário há muito que seríamos engolidos.          Francisco Tavares de Almeida: Que trapalhada. Putin e Biden a testar quem faz xi-xi mais longe. E, já agora, vamos juntar Xi à competição de xi-xis no indo-pacífico. Tudo egos; nada de interesses geo-estratégicos. No Verão passado, na primeira cimeira bilateral EUA-Rússia, Biden declarou a Putin e à imprensa que considerava que Moscovo era uma grande potência. Ora aí está uma frase verdadeira mas que vale zero sem enquadramento. Quando Trump elegeu a China como inimigo principal, fez questão de impedir a Rússia de se aproximar à China. Conferenciou directamene com Putin - sem nunca reconhecer a Rússia como grande potência -  e fez declarações elogiosas mas totalmente inócuas. Foi então crucificado por todos, imcluindo Diana Soller. Internamente chegaram a acusá-lo de estar a trair os EUA em favor da Rússia. Biden acede ao cargo e a primeira coisa que fez foi declarar publicamente que considerava Putin um assassino. Menos de 15 dias depois, a pedido dele próprio, foi encontrar-se com Putin e fez a declaração em epígrafe. Ou seja, pediu desculpas públicas, deu a Putin o reconhecimento que procurava e nem sequer segurou o futuro comprometimento da Rússia com a China que é hoje um facto notório, na aviação, no espaço, na energia e sobretudo na política. Xi apoiou a Rússia na questão da Ucrânia e Putin irá apoiar a China na questão de Taiwan. Numa coisa, Diana Soller tem razão. A Europa continuará a pedir a intervenção da diplomacia porque, de facto, mais nenhuma intervenção lhe é possível. No actual quadro de dependência, se as coisas azedarem, a indústria alemã pára e os alemães (polacos e outros) arriscam-se a ver os seus velhos a morrer de frio em casas sem aquecimento, como se fossem portugueses.

Nenhum comentário: