De “MÚSICA NO CORAÇÃO”. Canção da ternura
pátria desta obra-prima cinematográfica, que aconselhamos aos donos do mundo,
embora seja ingénua a pretensão de recuo na escalada destruidora provável. Fica-nos
este magnífico estudo de DAVID MARTELO, enviado por
João
Sena, que, juntamente com outros que vamos lendo, nos enche de prazer, pela
clareza do pensamento enriquecedor e elegância de expressão, com pena pela
omissão, no blog, dos mapas esclarecedores.
CORTINADOS
GEOPOLÍTICOS
DAVID
MARTELO
A crise que opõe actualmente a Rússia
aos aliados da OTAN, localizada sobre a fronteira da Ucrânia, na qual o governo
de Moscovo alega sentir-se ameaçado pela proximidade geográfica dos novos
membros da aliança, justifica uma revisão histórica dos acontecimentos que
levaram a anteriores modificações na localização da divisória europeia entre
blocos políticos. Porque o tema tem conotações de índole militar,
iremos mesmo lançar mão da expressão ‘Linha de Contacto’ para definir essa divisória que
materializa a separação de conjuntos de Estados potencialmente antagónicos.
Em
Fevereiro de 1945, quando o previsível desfecho da guerra na Europa era já a
completa derrota Alemanha e dos seus aliados, as principais potências
vencedoras – EUA, URSS e
Grã-Bretanha – reuniram-se
em Ialta, estância balnear do Mar Negro, para debaterem os
termos finais do conflito e redesenharem o mapa da Europa e respectivas zonas
de influência.
FOTO: Ialta 1945 –
Churchill, Roosevelt e Estaline
Do ponto de vista geopolítico, à derrota
da Alemanha e dos seus aliados correspondia uma perda
de influência dos Estados Centrais e uma extensão da influência da União
Soviética na direcção do Ocidente. Observando os dois mapas que (NÃO) se seguem, é fácil deduzir que
os acontecimentos iniciados em Setembro de 1939 – invasão
da Polónia e partilha do país de acordo com o Pacto Germano-Soviético – acabaram produzindo uma deslocação para
Oeste da ‘Linha de Contacto’ entre o Leste de dominação comunista e o Ocidente
de cunho liberal e democrático. Após a ocupação da metade oriental da Polónia, a URSS ocuparia, em 1940, os Estados Bálticos – Estónia, Letónia e
Lituânia –, a Bucóvina do Norte e a Bessarábia.
MAPA 1- Territórios
anexados pela URSS. MAPA
2
- A Europa após a 2.a Guerra Mundial
Fazendo um apanhado destas movimentações
geopolíticas, podemos ver no mapa seguinte (MAPA 3) um resumo
das três fases do deslocamento para oeste da fronteira entre o espaço soviético
e a Europa Ocidental. Esse ganho – importa sublinhá-lo – era consequência directa da decisiva participação das
Forças Armadas da URSS na vitória dos Aliados na 2.a Guerra Mundial.
Feita esta introdução, torna-se adequado recordar o início
da Guerra Fria, conflito de contornos ideológicos que, praticamente, se começou
a desenhar poucos meses após o final da 2.a Guerra Mundial. A maior parte dos historiadores do século XX
tem recorrido ao discurso
de Winston Churchill, em Fulton
(Missouri), em 5 de Março de 1946, para definir o seu começo. O
estadista britânico era, nessa época, o líder da oposição ao governo
trabalhista de Londres. Nesse discurso, a certo ponto, Churchill declara: De Stettin no Báltico a Trieste no Adriático, caiu
uma cortina de ferro
através do Continente. Atrás
dessa linha encontram-se todas as capitais dos antigos Estados da Europa
Central e Oriental. Varsóvia,
Berlim, Praga, Viena, Budapeste, Belgrado, Bucareste e Sofia, todas estas famosas
cidades e respectivas populações se encontram no que eu designarei por ‘esfera soviética’ e todas elas estão sujeitas, de uma forma ou de outra,
não só à influência soviética mas também a uma muito elevada e, em muitos
casos, crescente forma de controlo a partir de Moscovo.
Estava cunhada, por conseguinte, a
expressão “cortina de ferro”, a qual correspondia a uma divisória
entre influências e que se tornaria uma verdadeira “Linha de Contacto”, a
partir da constituição dos dois blocos militares – OTAN, em
Abril de 1949, e Pacto de Varsóvia, em Maio de 1955. Também deve
sublinhar-se que, no contexto da vitória
dos Aliados, os EUA
passavam a ser uma potência militar europeia –
por sinal, a maior
potência militar europeia (200.000 efectivos na Alemanha, ao terminar a
Guerra Fria, contra os 36.000, no presente).
Bem no centro da Europa, a Áustria
iria ficar fora das duas alianças. O
país, depois de
separado da Alemanha, a que fora anexado em 1938, seria, na sua condição de potência vencida, ocupado
pelas quatro potências aliadas (EUA, Reino Unido, França e URSS), sendo
dividido em outras tantas zonas de ocupação, tal como sucedera com a Alemanha (V. mapa seguinte). Como, adiante,
iremos referir a actual
crise no leste da Europa, chamo, desde já, a atenção do leitor para o facto de
a Ucrânia, “anexada” à URSS, também foi, como a Áustria, uma “potência
vencida”, só que da Guerra Fria.
MAPA: CORTINA DE FERRO
Em
15 de Maio de 1955, dia seguinte ao anúncio da formação do Pacto de Varsóvia, as quatro potências ocupantes da Áustria
assinaram o Tratado do Estado Austríaco, pelo
qual o país se tornava independente, na condição de não aderir a nenhum
dos blocos militares então constituídos. Embora
a declaração de neutralidade da Áustria não constasse do texto original, essa condição
seria acrescentada pelo próprio Parlamento austríaco durante o debate sobre o
Tratado. Seguir-se-ia, naturalmente, a retirada das forças ocupantes, tendo o contingente soviético saído do país em
Setembro de 1955 e as últimas tropas aliadas em Outubro do mesmo ano. A Áustria
ficava, assim, na situação intermédia que a geografia sugeria: neutral, mas confinando com o bloco soviético
(Checoslováquia e Hungria), com o bloco ocidental (Itália e Alemanha) e, ainda,
com a desalinhada Jugoslávia e a neutra Confederação Helvética.
Entretanto, já estava em
desenvolvimento o clima de tensão Leste-Oeste, que ficaria na história do século XX com a
designação de Guerra Fria. Um dos momentos mais críticos dessa
hostilidade ocorreria no Verão de 1961. A
meio da noite de 13 de Agosto, a
polícia da Alemanha Oriental fechou as fronteiras com Berlim Ocidental com
barreiras de arame farpado e
deram início à construção
do muro que
separaria, daí em diante, as zonas aliadas da zona controlada pelo governo comunista. Depois,
uma estrutura permanente de barreiras de arame farpado e torres de vigilância seria
construída ao longo de toda a fronteira da República Democrática da Alemanha
(RDA) com a República Federal da Alemanha (RFA), dando à expressão Cortina de
Ferro uma inesperada representação física. Com a ascensão de Mikhail
Gorbachev ao cargo de secretário-geral
do PCUS (Partido Comunista da União Soviética), em 1985,
iniciou-se um processo de reestruturação da URSS que, rapidamente, daria lugar a
um movimento de rotura, acompanhado de duas consequências geopolíticas de
enorme significado: internamente,
com movimentações que levariam ao apeamento do poder do PCUS e à desagregação
do próprio Estado Soviético; externamente, na revolta dos países satélites da
URSS e na sua aproximação aos modelos políticos ocidentais. Depois de,
em 23 de Outubro de 1989, ter sido proclamada a nova República da Hungria, na noite de
9 para 10 de Novembro dá-se a
simbólica “queda” do Muro de Berlim. Os acontecimentos precipitam-se. No
próprio dia 10, regista-se, na Bulgária, a queda do regime de Todor Jivkov; uma semana
depois, em 17, é a vez da Revolução
de Veludo, com a declaração do fim do regime comunista na Checoslováquia. Refira-se,
entretanto, que à data destes acontecimentos, logo seguidos das negociações
para a reunificação da Alemanha, a presença
militar da URSS em território germânico
era da ordem dos 380.000
homens, valor
sensivelmente equivalente ao que sempre existira no contexto da Guerra Fria,
isto é, num dispositivo
preparado para os primeiros dias de uma guerra quente.
Por fim, já nos derradeiros momentos do processo de derrocada da URSS, em 29
de Agosto de 1991, o
Soviete Supremo – o parlamento da URSS – suspende todas as actividades do
partido comunista. Em 25 de Dezembro, às 19h32, a bandeira da foice e do martelo é arriada do Kremlin, dando lugar
ao pavilhão branco, azul e vermelho,
anterior à revolução de 1917. Não era a bandeira da OTAN – como
réplica da bandeira soviética a ondular sobre o edifício do Reichstag, em 1945
– porque não houvera uma derrota militar combatente, mas o
desastre político era de dimensões gigantescas – a
maior catástrofe geopolítica do século XX, como se lhe haveria de referir
Vladimir Putin, em Abril de 2005 – e essencialmente auto-infligida. No
entanto, se eram evidentes as mudanças no cenário político, a GEOGRAFIA
continuaria a ser a mesma.
FOTO: Bandeira soviética a
ondular sobre o edifício do Reichstag, em 1945
Em 2005, “a
maior catástrofe geopolítica do século XX” já
se havia reflectido num movimento de protecção gerado pelo ressentimento e pelo
medo que os países anteriormente sob dominação soviética transferiram
geograficamente para a Rússia. O
primeiro passo fora dado, em 1990,
com a unificação da RFA, a que
correspondeu a
integração na OTAN do território da antiga RDA. Seguiu-se,
por uma lógica de proximidade geográfica, a adesão de três países da Europa
Central, ex- membros do Pacto de Varsóvia – República
Checa, Hungria e Polónia –, em Março de 1999.
Todavia, o maior alargamento – e
aquele que mais viria a ferir o orgulho da Rússia – verificar-se-ia em Março de
2004, através da adesão de três ex-repúblicas da URSS (Estónia,
Letónia e Lituânia), a que se acrescentaram, na mesma ocasião, a Bulgária, a
Roménia, a Eslováquia e a Eslovénia. As
adesões subsequentes, relativas a países da península balcânica, já não
acarretam, para Moscovo, o mesmo tipo de reservas, dada a sua menor proximidade
das fronteiras da Rússia. Na figura seguinte, além da representação
dos novos membros da OTAN, é assinalada, em duas linhas amarelas, a posição da
Cortina de Ferro e da nova “Linha de Contacto”, como é vista de Moscovo, a
qual, até que surja melhor designação, baptizei de Cortina
Liberal. O espaço entre estas duas linhas representa,
portanto, a perda de influência geopolítica que sustenta a insatisfação de Vladimir
Putin.
Refira-se, entretanto, que nesse período de retracção do ‘império russo’, os
sucessivos governos de Moscovo foram confortados com diversas garantias verbais
de altas figuras da política europeia e americana, garantias essas que, não
constando de nenhum tratado (1) e não tendo
sido cumpridas, se transformaram em imposturas políticas. Deve
sublinhar-se esta circunstância, porque nos pode fazer compreender que da actual situação de crise não poderá
sair-se, pacificamente, sem um tratado que estabeleça uma nova arquitectura de
segurança europeia. Arquitectura
essa em que, por vontade da Rússia, os EUA deveriam estar ausentes. É no contexto geopolítico do alargamento de 2004 que
se vão desenvolver os conflitos que localmente opõem a Ucrânia à Rússia e
cujo risco de rotura se agravou durante o Outono de 2021.
(1) A Carta de Paris para uma Nova Europa,
assinada por países-membros da OTAN e do Pacto de Varsóvia no âmbito da
Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa (CSCE), em Novembro de 1990,
além de ser anterior ao colapso da URSS, não se aproxima de um tratado sobre
“esferas de influência” nem da formação de novos blocos militares.
A actual crise – que já tinha alguns
antecedentes preocupantes – subiu de tom, em 2014, quando a Rússia
anexou a Crimeia. Seguidamente, eclodiu
uma rebelião no leste da Ucrânia – região de Donbas, maioritariamente
russófona –, que seria
apoiada pela Rússia e que, vista de Kiev, é considerada como mais uma violação
de fronteiras e, de Moscovo, como guerra civil ucraniana. Nos
últimos três meses, temos assistido a uma escalada de ameaças entre a Rússia,
por um lado, e os EUA e a OTAN, por outro, com a particularidade de ter
desaparecido da discussão a violação de fronteiras no Donbas e na Crimeia (e,
anteriormente, na Geórgia), uma clara
vitória da diplomacia russa. A Rússia, movimentando grandes
efectivos militares junto da fronteira com a Ucrânia – incluindo a realização
de exercícios na Bielorrússia – não esconde que pretende afastar a Cortina Liberal
para oeste, sendo muito perspícua na apresentação das suas reivindicações. Em 17 de Dezembro
de 2021, o ministério
russo dos Negócios Estrangeiros tornou público dois projectos de documento
contendo as exigências do governo de Moscovo para o abrandamento da tensão
– um endereçado aos EUA e outro à OTAN –, aos quais era requerida uma resposta
escrita. As principais reivindicações do governo de Moscovo implicariam:
• Garantia
do não-alargamento da OTAN a mais países do leste europeu;
• Retirada
de tropas e equipamentos estrangeiros dos países que se tornaram membros da OTAN
nos alargamentos de 1997 e 2004;
•
Deslocamento para posições mais afastadas da Rússia dos sistemas de mísseis de
longo e médio alcance;
• Que
os EUA renunciassem a toda a cooperação militar com a Ucrânia e outros antigos países
soviéticos que não são membros da OTAN.
Com a sensação de impasse
negocial em que a crise russo-ucraniana se encontra quando
concluo este texto, receio bem que nenhuma das partes logrará alcançar
TODOS os objectivos geopolíticos do seu agrado. Tanto poderemos acordar, num próximo
dia, com a loucura de uma guerra europeia, como poderemos continuar, por longos
meses, a ler notícias sobre as negociações e as ameaças mútuas a que temos
assistido desde Novembro de 2021. Nesta segunda eventualidade, e, tendo em consideração:
•
Que nem os EUA nem os membros da OTAN estão interessados em enviar tropas para
a Ucrânia para combater uma eventual invasão da Rússia;
•
Que os países europeus – designadamente os que constituem a União Europeia –
têm demonstrado uma notória incapacidade e falta de vontade para reduzir a
dependência estratégica dos EUA;
•
Que a Europa Ocidental, em termos energéticos, se encontra muito dependente da
Rússia;
•
Que a prioridade estratégica dos EUA está orientada para a região do
Indo-Pacífico;
•
Que o governo ucraniano não está interessado na aplicação dos acordos de Minsk (2);
•
Que nem os EUA nem os membros da OTAN têm, presentemente, interesse no ingresso
da Ucrânia (e da Geórgia) nesta organização...
...a saída do actual impasse poderá
fazer-se mediante a celebração de um novo Tratado de Segurança Europeia, no
qual, À SEMELHANÇA DO QUE SUCEDEU COM A ÁUSTRIA, após a 2.a Guerra Mundial...
• A
Ucrânia (e a Geórgia) aceite(m) o estatuto de país neutral
•
Os EUA, a OTAN e a Rússia reconheçam a neutralidade da Ucrânia
•
As fronteiras da Ucrânia sejam respeitadas pelos outros signatários, com a
retirada de forças russas do Donbas e da Crimeia
•
Se estabeleça um critério de posicionamento de sistemas de mísseis de longo e
médio alcance que satisfaça as partes interessadas
•
Seja reconhecido pelas potências signatárias que a neutralidade da Ucrânia, tal
como a da Áustria, lhe não retira o direito a ingressar, querendo, na União
Europeia O Tratado teria um explícito período de validade (20 anos, por
exemplo), findo o qual seria revisto ou prorrogado. Estes acordos poderiam ser
monitorizados em diferentes fóruns – entre eles a Organização para a Segurança
e Cooperação na Europa (OSCE) ou o Diálogo de Estabilidade Estratégica
EUA-Rússia e o Conselho NATO-Rússia – procurando o progressivo retorno a um clima
de confiança.
(2)Assinado em 5 de Setembro de 2014, sob os
auspícios da OSCE, o Protocolo de Minsk implicava, da parte do governo de Kiev,
a aprovação de uma lei sobre a descentralização do poder, nomeadamente no que
respeitaria ao "regime provisório de governação local em certas zonas dos
Oblasts (regiões) de Donetsk e Lugansk".
David Martelo – 6 de Fevereiro de 2022
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