segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Recordando EDELWEISS


De “MÚSICA NO CORAÇÃO”. Canção da ternura pátria desta obra-prima cinematográfica, que aconselhamos aos donos do mundo, embora seja ingénua a pretensão de recuo na escalada destruidora provável. Fica-nos este magnífico estudo de DAVID MARTELO, enviado por João Sena, que, juntamente com outros que vamos lendo, nos enche de prazer, pela clareza do pensamento enriquecedor e elegância de expressão, com pena pela omissão, no blog, dos mapas esclarecedores.

CORTINADOS GEOPOLÍTICOS

DAVID MARTELO

A crise que opõe actualmente a Rússia aos aliados da OTAN, localizada sobre a fronteira da Ucrânia, na qual o governo de Moscovo alega sentir-se ameaçado pela proximidade geográfica dos novos membros da aliança, justifica uma revisão histórica dos acontecimentos que levaram a anteriores modificações na localização da divisória europeia entre blocos políticos. Porque o tema tem conotações de índole militar, iremos mesmo lançar mão da expressão ‘Linha de Contacto’ para definir essa divisória que materializa a separação de conjuntos de Estados potencialmente antagónicos.

Em Fevereiro de 1945, quando o previsível desfecho da guerra na Europa era já a completa derrota Alemanha e dos seus aliados, as principais potências vencedoras – EUA, URSS e Grã-Bretanha – reuniram-se em Ialta, estância balnear do Mar Negro, para debaterem os termos finais do conflito e redesenharem o mapa da Europa e respectivas zonas de influência.

FOTO: Ialta 1945 – Churchill, Roosevelt e Estaline

Do ponto de vista geopolítico, à derrota da Alemanha e dos seus aliados correspondia uma perda de influência dos Estados Centrais e uma extensão da influência da União Soviética na direcção do Ocidente. Observando os dois mapas que (NÃO) se seguem, é fácil deduzir que os acontecimentos iniciados em Setembro de 1939 – invasão da Polónia e partilha do país de acordo com o Pacto Germano-Soviéticoacabaram produzindo uma deslocação para Oeste da ‘Linha de Contacto’ entre o Leste de dominação comunista e o Ocidente de cunho liberal e democrático. Após a ocupação da metade oriental da Polónia, a URSS ocuparia, em 1940, os Estados Bálticos – Estónia, Letónia e Lituânia –, a Bucóvina do Norte e a Bessarábia.

MAPA 1- Territórios anexados pela URSS.               MAPA 2 - A Europa após a 2.a Guerra Mundial

Fazendo um apanhado destas movimentações geopolíticas, podemos ver no mapa seguinte (MAPA 3)  um resumo das três fases do deslocamento para oeste da fronteira entre o espaço soviético e a Europa Ocidental. Esse ganho – importa sublinhá-lo – era consequência directa da decisiva participação das Forças Armadas da URSS na vitória dos Aliados na 2.a Guerra Mundial.

Feita esta introdução, torna-se adequado recordar o início da Guerra Fria, conflito de contornos ideológicos que, praticamente, se começou a desenhar poucos meses após o final da 2.a Guerra Mundial. A maior parte dos historiadores do século XX tem recorrido ao discurso de Winston Churchill, em Fulton (Missouri), em 5 de Março de 1946, para definir o seu começo. O estadista britânico era, nessa época, o líder da oposição ao governo trabalhista de Londres. Nesse discurso, a certo ponto, Churchill declara: De Stettin no Báltico a Trieste no Adriático, caiu uma cortina de ferro através do Continente. Atrás dessa linha encontram-se todas as capitais dos antigos Estados da Europa Central e Oriental. Varsóvia, Berlim, Praga, Viena, Budapeste, Belgrado, Bucareste e Sofia, todas estas famosas cidades e respectivas populações se encontram no que eu designarei por ‘esfera soviética’ e todas elas estão sujeitas, de uma forma ou de outra, não só à influência soviética mas também a uma muito elevada e, em muitos casos, crescente forma de controlo a partir de Moscovo.

Estava cunhada, por conseguinte, a expressão “cortina de ferro”, a qual correspondia a uma divisória entre influências e que se tornaria uma verdadeira “Linha de Contacto”, a partir da constituição dos dois blocos militaresOTAN, em Abril de 1949, e Pacto de Varsóvia, em Maio de 1955. Também deve sublinhar-se que, no contexto da vitória dos Aliados, os EUA passavam a ser uma potência militar europeia – por sinal, a maior potência militar europeia (200.000 efectivos na Alemanha, ao terminar a Guerra Fria, contra os 36.000, no presente).

Bem no centro da Europa, a Áustria iria ficar fora das duas alianças. O país, depois de separado da Alemanha, a que fora anexado em 1938, seria, na sua condição de potência vencida, ocupado pelas quatro potências aliadas (EUA, Reino Unido, França e URSS), sendo dividido em outras tantas zonas de ocupação, tal como sucedera com a Alemanha (V. mapa seguinte). Como, adiante, iremos referir a actual crise no leste da Europa, chamo, desde já, a atenção do leitor para o facto de a Ucrânia, “anexada” à URSS, também foi, como a Áustria, uma “potência vencida”, só que da Guerra Fria.

MAPA: CORTINA DE FERRO

Em 15 de Maio de 1955, dia seguinte ao anúncio da formação do Pacto de Varsóvia, as quatro potências ocupantes da Áustria assinaram o Tratado do Estado Austríaco, pelo qual o país se tornava independente, na condição de não aderir a nenhum dos blocos militares então constituídos. Embora a declaração de neutralidade da Áustria não constasse do texto original, essa condição seria acrescentada pelo próprio Parlamento austríaco durante o debate sobre o Tratado. Seguir-se-ia, naturalmente, a retirada das forças ocupantes, tendo o contingente soviético saído do país em Setembro de 1955 e as últimas tropas aliadas em Outubro do mesmo ano. A Áustria ficava, assim, na situação intermédia que a geografia sugeria: neutral, mas confinando com o bloco soviético (Checoslováquia e Hungria), com o bloco ocidental (Itália e Alemanha) e, ainda, com a desalinhada Jugoslávia e a neutra Confederação Helvética.

Entretanto, já estava em desenvolvimento o clima de tensão Leste-Oeste, que ficaria na história do século XX com a designação de Guerra Fria. Um dos momentos mais críticos dessa hostilidade ocorreria no Verão de 1961. A meio da noite de 13 de Agosto, a polícia da Alemanha Oriental fechou as fronteiras com Berlim Ocidental com barreiras de arame farpado e deram início à construção do muro que separaria, daí em diante, as zonas aliadas da zona controlada pelo governo comunista. Depois, uma estrutura permanente de barreiras de arame farpado e torres de vigilância seria construída ao longo de toda a fronteira da República Democrática da Alemanha (RDA) com a República Federal da Alemanha (RFA), dando à expressão Cortina de Ferro uma inesperada representação física. Com a ascensão de Mikhail Gorbachev ao cargo de secretário-geral do PCUS (Partido Comunista da União Soviética), em 1985, iniciou-se um processo de reestruturação da URSS que, rapidamente, daria lugar a um movimento de rotura, acompanhado de duas consequências geopolíticas de enorme significado: internamente, com movimentações que levariam ao apeamento do poder do PCUS e à desagregação do próprio Estado Soviético; externamente, na revolta dos países satélites da URSS e na sua aproximação aos modelos políticos ocidentais. Depois de, em 23 de Outubro de 1989, ter sido proclamada a nova República da Hungria, na noite de 9 para 10 de Novembro dá-se a simbólica “queda” do Muro de Berlim. Os acontecimentos precipitam-se. No próprio dia 10, regista-se, na Bulgária, a queda do regime de Todor Jivkov; uma semana depois, em 17, é a vez da Revolução de Veludo, com a declaração do fim do regime comunista na Checoslováquia. Refira-se, entretanto, que à data destes acontecimentos, logo seguidos das negociações para a reunificação da Alemanha, a presença militar da URSS em território germânico era da ordem dos 380.000 homens, valor sensivelmente equivalente ao que sempre existira no contexto da Guerra Fria, isto é, num dispositivo preparado para os primeiros dias de uma guerra quente.

Por fim, já nos derradeiros momentos do processo de derrocada da URSS, em 29 de Agosto de 1991, o Soviete Supremo – o parlamento da URSS – suspende todas as actividades do partido comunista. Em 25 de Dezembro, às 19h32, a bandeira da foice e do martelo é arriada do Kremlin, dando lugar ao pavilhão branco, azul e vermelho, anterior à revolução de 1917. Não era a bandeira da OTANcomo réplica da bandeira soviética a ondular sobre o edifício do Reichstag, em 1945 – porque não houvera uma derrota militar combatente, mas o desastre político era de dimensões gigantescasa maior catástrofe geopolítica do século XX, como se lhe haveria de referir Vladimir Putin, em Abril de 2005 – e essencialmente auto-infligida. No entanto, se eram evidentes as mudanças no cenário político, a GEOGRAFIA continuaria a ser a mesma.

FOTO: Bandeira soviética a ondular sobre o edifício do Reichstag, em 1945

Em 2005, “a maior catástrofe geopolítica do século XXjá se havia reflectido num movimento de protecção gerado pelo ressentimento e pelo medo que os países anteriormente sob dominação soviética transferiram geograficamente para a Rússia. O primeiro passo fora dado, em 1990, com a unificação da RFA, a que correspondeu a integração na OTAN do território da antiga RDA. Seguiu-se, por uma lógica de proximidade geográfica, a adesão de três países da Europa Central, ex- membros do Pacto de VarsóviaRepública Checa, Hungria e Polónia –, em Março de 1999.

Todavia, o maior alargamento – e aquele que mais viria a ferir o orgulho da Rússia – verificar-se-ia em Março de 2004, através da adesão de três ex-repúblicas da URSS (Estónia, Letónia e Lituânia), a que se acrescentaram, na mesma ocasião, a Bulgária, a Roménia, a Eslováquia e a Eslovénia. As adesões subsequentes, relativas a países da península balcânica, já não acarretam, para Moscovo, o mesmo tipo de reservas, dada a sua menor proximidade das fronteiras da Rússia. Na figura seguinte, além da representação dos novos membros da OTAN, é assinalada, em duas linhas amarelas, a posição da Cortina de Ferro e da nova “Linha de Contacto”, como é vista de Moscovo, a qual, até que surja melhor designação, baptizei de Cortina Liberal. O espaço entre estas duas linhas representa, portanto, a perda de influência geopolítica que sustenta a insatisfação de Vladimir Putin.

Refira-se, entretanto, que nesse período de retracção do ‘império russo’, os sucessivos governos de Moscovo foram confortados com diversas garantias verbais de altas figuras da política europeia e americana, garantias essas que, não constando de nenhum tratado (1)  e não tendo sido cumpridas, se transformaram em imposturas políticas. Deve sublinhar-se esta circunstância, porque nos pode fazer compreender que da actual situação de crise não poderá sair-se, pacificamente, sem um tratado que estabeleça uma nova arquitectura de segurança europeia. Arquitectura essa em que, por vontade da Rússia, os EUA deveriam estar ausentes. É no contexto geopolítico do alargamento de 2004 que se vão desenvolver os conflitos que localmente opõem a Ucrânia à Rússia e cujo risco de rotura se agravou durante o Outono de 2021.

(1) A Carta de Paris para uma Nova Europa, assinada por países-membros da OTAN e do Pacto de Varsóvia no âmbito da Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa (CSCE), em Novembro de 1990, além de ser anterior ao colapso da URSS, não se aproxima de um tratado sobre “esferas de influência” nem da formação de novos blocos militares.

A actual crise – que já tinha alguns antecedentes preocupantes – subiu de tom, em 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia. Seguidamente, eclodiu uma rebelião no leste da Ucrâniaregião de Donbas, maioritariamente russófona –, que seria apoiada pela Rússia e que, vista de Kiev, é considerada como mais uma violação de fronteiras e, de Moscovo, como guerra civil ucraniana. Nos últimos três meses, temos assistido a uma escalada de ameaças entre a Rússia, por um lado, e os EUA e a OTAN, por outro, com a particularidade de ter desaparecido da discussão a violação de fronteiras no Donbas e na Crimeia (e, anteriormente, na Geórgia), uma clara vitória da diplomacia russa. A Rússia, movimentando grandes efectivos militares junto da fronteira com a Ucrânia – incluindo a realização de exercícios na Bielorrússia – não esconde que pretende afastar a Cortina Liberal para oeste, sendo muito perspícua na apresentação das suas reivindicações. Em 17 de Dezembro de 2021, o ministério russo dos Negócios Estrangeiros tornou público dois projectos de documento contendo as exigências do governo de Moscovo para o abrandamento da tensãoum endereçado aos EUA e outro à OTAN –, aos quais era requerida uma resposta escrita. As principais reivindicações do governo de Moscovo implicariam:

Garantia do não-alargamento da OTAN a mais países do leste europeu;

Retirada de tropas e equipamentos estrangeiros dos países que se tornaram membros da OTAN nos alargamentos de 1997 e 2004;

• Deslocamento para posições mais afastadas da Rússia dos sistemas de mísseis de longo e médio alcance;

Que os EUA renunciassem a toda a cooperação militar com a Ucrânia e outros antigos países soviéticos que não são membros da OTAN.

Com a sensação de impasse negocial em que a crise russo-ucraniana se encontra quando concluo este texto, receio bem que nenhuma das partes logrará alcançar TODOS os objectivos geopolíticos do seu agrado. Tanto poderemos acordar, num próximo dia, com a loucura de uma guerra europeia, como poderemos continuar, por longos meses, a ler notícias sobre as negociações e as ameaças mútuas a que temos assistido desde Novembro de 2021. Nesta segunda eventualidade, e, tendo em consideração:

• Que nem os EUA nem os membros da OTAN estão interessados em enviar tropas para a Ucrânia para combater uma eventual invasão da Rússia;

• Que os países europeus – designadamente os que constituem a União Europeia – têm demonstrado uma notória incapacidade e falta de vontade para reduzir a dependência estratégica dos EUA;

• Que a Europa Ocidental, em termos energéticos, se encontra muito dependente da Rússia;

• Que a prioridade estratégica dos EUA está orientada para a região do Indo-Pacífico;

• Que o governo ucraniano não está interessado na aplicação dos acordos de Minsk (2);

• Que nem os EUA nem os membros da OTAN têm, presentemente, interesse no ingresso da Ucrânia (e da Geórgia) nesta organização...

...a saída do actual impasse poderá fazer-se mediante a celebração de um novo Tratado de Segurança Europeia, no qual, À SEMELHANÇA DO QUE SUCEDEU COM A ÁUSTRIA, após a 2.a Guerra Mundial...

A Ucrânia (e a Geórgia) aceite(m) o estatuto de país neutral

• Os EUA, a OTAN e a Rússia reconheçam a neutralidade da Ucrânia

• As fronteiras da Ucrânia sejam respeitadas pelos outros signatários, com a retirada de forças russas do Donbas e da Crimeia

• Se estabeleça um critério de posicionamento de sistemas de mísseis de longo e médio alcance que satisfaça as partes interessadas

• Seja reconhecido pelas potências signatárias que a neutralidade da Ucrânia, tal como a da Áustria, lhe não retira o direito a ingressar, querendo, na União Europeia O Tratado teria um explícito período de validade (20 anos, por exemplo), findo o qual seria revisto ou prorrogado. Estes acordos poderiam ser monitorizados em diferentes fóruns – entre eles a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) ou o Diálogo de Estabilidade Estratégica EUA-Rússia e o Conselho NATO-Rússia – procurando o progressivo retorno a um clima de confiança.

(2)Assinado em 5 de Setembro de 2014, sob os auspícios da OSCE, o Protocolo de Minsk implicava, da parte do governo de Kiev, a aprovação de uma lei sobre a descentralização do poder, nomeadamente no que respeitaria ao "regime provisório de governação local em certas zonas dos Oblasts (regiões) de Donetsk e Lugansk".

David Martelo – 6 de Fevereiro de 2022

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