domingo, 13 de fevereiro de 2022

DDT


Wikipédia, a enciclopédia livre:  «DDT (sigla de diclorodifeniltricloroetano) é o primeiro pesticida moderno, tendo sido largamente usado durante e após a Segunda Guerra Mundial para o combate aos mosquitos vectores de doenças como malária e dengue». Vale a pena ler o extenso texto sobre o pesticida, glosado há anos em graciosa rábula, em trocadilho hiperbólico, que remete a sigla para as suas origens mortíferas.

Jaime Nogueira Pinto, na sua temeridade de historiador de impecável postura de seriedade e conhecimento, não usa a sigla, mas aproveita-se da metáfora aliterativa para significar a sua condenação, em caso recente de ostracismo político de António Costa. Um texto que nos enche as medidas, pela clareza de uma argumentação irrefutável, que merecia ser divulgado e analisado na comunicação social.

O título deste meu comentário remete para o pesticida. Como trocadilho, naturalmente.

 “Donos disto tudo”

O que distingue uma democracia liberal de outros regimes é aceitar, na competição legal pelo poder, todos os partidos votados pelos cidadãos. Mesmo os iliberais.

JAIME NOGUEIRA PINTO, Colunista do Observador

OBSERVADOR, 11 fev 2022

O regime ou sistema democrático não é uma espécie de religião laica, com a transferência directa da infalibilidade do Deus do Ancien Régime – que pela Sua graça tornava sagradas as dinastias – para o conjunto dos cidadãos eleitores. É uma forma de governo que procura um modelo consensual, pacífico e ordeiro de institucionalizar a escolha dos representantes de uma comunidade nacional, de um povo.

A sua legitimidade não vem, assim, de uma qualquer superioridade ético-política, mágica ou misteriosa, de conteúdo revolucionário ou conservador; vem do facto de se socorrer de um processo histórico que, alicerçado na aceitação de determinadas regras de jogo e com base em princípios de liberdade de opinião e de respeito pela opinião dos outros, procura tornar governável o Estado. Como as opiniões são diferentes – excepto quanto à aceitação da prevalência da opinião maioritária – não pode haver descriminação de opiniões.

Os valores políticos, as normas de orientação colectiva, as regras sobre o público e o privado, o respeito pela vida, os usos e costumes permitidos ou punidossão a expressão dos programas ou projectos políticos que os partidos admitidos a concurso, dentro da Constituição, propõem ou põem em discussão e levam a votos. Querer pôr este princípio em questão, é pôr em questão o regime democrático, é viciar o jogo, desencorajar a participação e corromper o sistema.

Vem isto a propósito da indignação, real ou simulada, em painéis de debate e discussão televisivos, contra um partido-pária que ousou apresentar como lema “Deus, Pátria, Família e Trabalho” – coisas, aparentemente, malditas, escandalosas e proscritas, por terem sido já o apanágio do “fascismo” doméstico do Estado Novo de Salazar.

Sobre a inutilidade da História das Ideias Políticas

A discussão sobre o “fascismo” do Estado Novo é uma discussão que não vale muito a pena ter, num caldo político, intelectual e social em que, por resignação, ignorância ou táctica, se aceita a palavra como sinónimo do antigo regime ou se esgrime como insulto indiferenciado.

De qualquer forma, o Manuel Lucena, que dava importância a coisas como a História das Ideias Políticas, tinha um argumento interessante e importante sobre o assunto, que talvez valha a pena aqui repetir: o Estado Novo tinha aspectos do fascismo-regime mas pouco ou nada tinha que ver com o  fascismo-ideologia nem com o fascismo-movimento, até porque nascera da Ditadura Militar, e não de um movimento político revolucionário que disputara o poder nas ruas com comunistas e socialistas, fazendo depois da Marcha Sobre Roma um pacto com as forças conservadoras da sociedade italiana.

O Estado Novo resultara, primeiro, do fracasso dos seus antecessores, que tinham imposto um jugo oligárquico de 16 anos num quadro teoricamente liberal e “democrático”, mas que a violência tornara monopolista; depois, de uma vaga europeia autoritária, condicionada pela ameaça comunista; finalmente, de um contrato entre os militares, sem projecto político próprio, com Salazar, que tinha um projecto político. Há pontos comuns entre o projecto salazarista e o fascismo – o nacionalismo, o anti-parlamentarismo, o autoritarismo –, mas o fascismo (apesar da Concordata de Latrão) tinha um espírito nietzschiano, pagão, e era estatocrático, sendo o Partido, o PNF, um elemento essencial no poder e do poder. Bem ao contrário, o salazarismo era nacional-conservador e social-católico. Não pretendia, pela política, mudar a sociedade, mas antes mantê-la como estava. Pertencia à direita conservadora, enquanto o fascismo pertencia à direita revolucionária. Os fascistas – e Mussolini em particular – queriam, pelo menos ideológica e idealmente, “viver perigosamente”; Salazar queria que os portugueses vivessem habitualmente.

Assim também a União Nacional, ainda que fosse a única organização de cariz político permitida no Estado Novo, funcionava como uma mera plataforma para a selecção e apresentação de candidatos à Assembleia Nacional; era uma organização que, como tal, não riscava quase nada nas decisões políticas e à qual os ministros não tinham de pertencer. Ver o Estado Novo como um regime totalitário de partido único – como o hitlerismo, o fascismo italiano ou o comunismo soviético – é não ver ou falsear a realidade.

Deus, Pátria, Família, Liberdade, Igualdade, Fraternidade

“Deus, Pátria, Liberdade e Família” é uma divisa de Afonso Augusto Moreira Pena, o 6º Presidente do Brasil, entre 1906 e 1909. Pena era natural de Minas Gerais e distinguiu-se no movimento abolicionista. Foi várias vezes ministro durante o Império e um dos introdutores na República de um certo espírito tecnocrático e industrialista. Não terá sido propriamente um fascista, ou sequer um proto-fascista.

Deus, Pátria, Liberdade e Família”, na versão de Pena, “Deus, Pátria e Família”, na versão salazarista, ou “Deus, Pátria, Família e Trabalho” na versão de André Ventura, são enunciados de valores políticos, nacionais e conservadores que, com esta enumeração ou outra, estão presentes na maioria dos ideários conservadores europeus e euroamericanos. Estes e outros valores proclamados – tais como Liberdade, Igualdade e Fraternidade ou Laicismo, Humanidade, Progresso, Socialismo (que têm uma bem mais longa e sangrenta história totalitária e de manipulação) – tanto podem ser defendidos autoritariamente, em ditadura, como podem ser defendidos democraticamente, em democracia.

Quando já não é proibido proibir

Achar que Deus, Pátria e Família é “fascista”, mesmo na pouco esclarecida qualificação do regime português, só pode resultar de ignorância ou táctica. Achar que, a partir de um centro enviesado à esquerda que se autoproclama democraticamente imaculado, podem traçar-se diabólicas linhas vermelhas para um lado e angélicos arco-íris inclusivos para o outro, é mau sinal. Achar que, independentemente da votação obtida, há um partido e um conjunto de eleitores que devem ser, à partida, excluídos da possibilidade consagrada pela praxe constitucional de ver eleito um candidato, “seja ele quem for”, a vice-presidente do Parlamento é, pela lógica do regime, indefensável. Achar natural que esse mesmo partido fique a um canto da Assembleia com orelhas de burro enquanto os “partidos de bem” avançam, cantando e rindo, para as “conversas em família” com o primeiro-ministro que quer falar com todos, é uma prática de discriminação aleatória que tem tudo para correr mal.

É esta narrativa e esta prática ideologicamente enviesada para aguentar no poder e defender os interesses dos que se assumem como “mais iguais que os outros” que começa a levantar cada vez mais dúvidas a cada vez mais pessoas. Afinal, o que distingue a democracia liberal dos outros regimes é a aceitação e integração, nas suas regras de jogo, de todas e quaisquer forças políticas que, independentemente dos valores que defendam, actuem pelas vias pacíficas e de acordo com as leis constitucionais e civis. Mesmo as iliberais.

Não creio, por isso, que o presente policiamento ideológico e as “linhas vermelhas” com que se procura segregar um partido e os seus eleitores vão sequer beneficiar quem está no poder e muito menos o regime. Limitam-se a expor sob uma luz cada vez mais crua a exemplar democraticidade dos que se acham “donos disto tudo”.

A SEXTA COLUNA   CRÓNICA   OBSERVADOR   DEMOCRACIA   SOCIEDADE   ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA   POLÍTICA

COMENTÁRIOS:

Clarisse Seca: Sem dúvida, julgam-se os donos disto tudo. Uma aberração democrática do Dr. Costa e escola esquerdista do pensamento único.             Maria Emília Santos Santos: Excelente trabalho! O problema é as pessoas tornarem-se deputados sem primeiro andarem na escola! Não lêem, não estudam e depois querem ser deputados! Para quê, se não sabem agir? Todos aqueles epítetos que lhes assentam bem a eles, usam-nos para classificar os de quem não gostam! Mas afinal que pretende esta gente, tão cheia de "sabedoria"? Apetece perguntar:  Pobre país, que volta a ser governado por ditadores inclassificáveis! Creio que por este andar, teremos eleições antes do tempo!  Salazar tinha a PIDE e o Parlamento Português em pleno século XXI, na era das feministas e do LGBTs tem agora a maioria PS e um belo  Apartheid!...            A. Carnide: Muito bem 👏        Paulo Cardoso: Este Senhor é uma das (poucas) razões, pela qual mantenho a assinatura do Observador. Nada mais tenho a dizer sobre o artigo.            Censurado Censurado: Realmente o primeiro desígnio do país devia ser tentar perceber melhor o lema Deus Pátria e Família hoje. No doubt! E amanhã talvez a gradação do fascismo do Botas. E o segundo tentar perceber o que quer o chega. Se é que quer alguma coisa. E quem não pensar assim só pode ser DDT.          Alberto Rei: em primeiro, grande análise histórica e esclarecimento do propalado fascismo português. Hoje insulta-se em qualquer lado alguém de fascista a torto-e-a-direito. Aqui no Observador é recorrente, e de nazi e tal. Aqui têm um texto para aprender. Duvido que queiram, mas fica a recomendação. Por outro lado, uma chamada de atenção aos que se julgam donos disto tudo. O catavento, como sempre, anda mudo e calado. Grande JNP     

José Miranda: Durante uma viagem de comboio, Pasteur ia calmamente rezando o terço. Um viajante, bastante mais jovem, criticou -o pela sua desactualizada crendice. Então, propôs-se recomendar-lhe alguns livros, para que se actualizasse. Pasteur deu-lhe um cartão com a morada para receber a lista dos referidos livros. Alguns dos comentadores estão em relação ao JNP, como o jovem para o Pasteur. O jovem envergonhou-se, mas estes fazem gala da sua ignorância.          José Paulo C Castro: "Deus, Pátria, Liberdade e Família" era o lema original. Muito antes do Fascismo, com que não tem nada a ver. Um lema conservador e nacionalista. Salazar inspirou-se nele mas fez cair a Liberdade, que não lhe interessava promover muito, por causa dos revolucionários de então. Redefiniu o lema para fazer face aos inimigos políticos. Ventura inspira-se no de Salazar e junta-lhe Trabalho, porque o considera prioritário face à Liberdade, numa aproximação ao eleitorado de esquerda. Os woke vomitam o lema com nojo, por estar lá Deus e Família. Os globalistas vomitam-no também por estar lá Pátria. Ventura definiu o lema, também, para identificar os inimigos políticos específicos. Mas quis recuperar o eleitorado do Trabalho... É assim que devemos entender este assunto. Deixar de o entender como os 'donos' querem defini-lo. É libertador.      Rita Salgado: Artigo muito esclarecedor, como sempre. Estes 4 anos de Kosta e Cia preveem-se do pior!             Carminda Damiao: Como sempre excelente artigo.           Paulo Silva: Caro JNP, interessante artigo que expõe os fundamentos liberais do funcionamento do jogo democrático, garantindo a todos, iliberais inclusive, a participação; desde que cumpram as regras do jogo. Mas nada disto será estranho aos portugueses pois têm partidos anti-sistema e iliberais - PCP ou BE - perfeitamente integrados no sistema político sem problema algum. Sucede que o senso comum tende a achar que Democracia e “ditadura da maioria” são a mesma coisa. Como as maiorias qualificadas neste país são tendencialmente de um lado, desde o início tudo ficou fácil para esse lado… e difícil para o outro. Mas foi para evitar os malefícios dessa ideia feita, que desprotege as minorias, que surgiram as constituições. Infelizmente a nossa Constituição foi ferida de morte e fere a Democracia. Quando o legislador da Lei fundamental se pôs a promover ideologias, condenando outras, deu uma estocada na democraticidade do regime nascido do derrube do salazarismo. Tudo ficou distorcido no plano da equidade política e o resultado está à vista nesta perseguição abusiva e sistemática ao recém-nascido «Chega!». Para apresentar e discutir, ou combater, as Ideologias, é que existem os partidos que o fazem nos locais próprios, sujeitos ao escrutínio da sociedade e dos cidadãos. Senão para quê os partidos e as instituições parlamentares?…               Simplesmente Maria: Jaime Nogueira Pinto é uma excepção lúcida e inteligente na actual convergência opinativa dos média ditos de direita. Defendem eles que o Chega é um aliado do PS cujo objectivo é tornar o PSD irrelevante perpetuando assim o poder socialista. São, ao que tudo indica, os defensores do apetecível centro morno onde tudo está no seu lugar e nos seus lugares.          : Para o António Costa e companhia a democracia é importante mas só quando dá jeito (quando é politicamente correcto)! Decidiram julgar e marginalizar a vontade expressa pelo VOTO de 400.000 pessoas, catalogadas como cidadãos de segunda ou terceira categoria sem direitos! Atitudes anti-democráticas, censura, autoritarismo, preconceito e intolerância! É o renascimento do totalitarismo, agora só falta criar uma polícia política!           João Afonso: Comparando com o antigo regime, este sai a perder. E não é porque a ditadura tenha qualquer superioridade moral sobre o regime democrático, que não tem, mas porque aquele era mais justo, honesto e verdadeiro. Oficialmente o salazarismo praticava a censura, e as provas eram claras. nunca foram arbitrárias, obscuras ou insondáveis. Oficialmente a nossa democracia não tem censura, mas ela existe e é praticada no espaço mediático e nas instituições da República, levada a cabo por gente encoberta, não identificada, sem que os seus intentos sejam escrutináveis. Este facto é um dos que mais corrói o regime. O outro é a corrupção que infectou praticamente todas as entidades do Estado, incluindo a própria Justiça.          Edmund Burk: Jaime Nogueira Pinto é das poucas pessoas esclarecidas e racionais da sociedade portuguesa onde domina o sentimento primitivo de manada ou clubite.          Joaquim Almeida: Excelente revisão da matéria. Esta birrinha autoritária  dos esquerdas, com adesão de inocentes úteis tão estimados pelo assassino Estaline, mostram bem as reais convicções  totalitárias  dos pseudo-democratas, reaccionários das excomunhões laicas. Nem a Constituição nem o Regimento são explícitos a distribuir pelos  4 maiores  os 4 vice-presidentes ; mas os usos  regimentais consolidados em quatro décadas da Assembeia não valem nada?               Alberto Pires > Joaquim Almeida: Bem atirada. Quase que se poderia dizer que é um preceito consuetudinário.... Na falta de leis específicas ou de situações omissas na Lei, prevalecem os usos e costumes. Era assim na antiga Roma (que não eram tão selvagens e impreparados como nos querem fazer crer). David Pinheiro: "Deus, pátria e família" a malta ainda aceita, mesmo que com bastantes reservas. Agora "Trabalho"??? Mas onde é que o Ventura tem a cabeça? Metade da população nem trabalha. E na outra metade que trabalha, metade preferia não trabalhar. PS: Se calhar enganei-me e não é metade da metade que não quer trabalhar. Talvez seja 80% da metade... Mas foi o que me ocorreu...          José Miguel Pereira > David Pinheiro: Credo, "trabalho"? Isso vem do latim tripalium, que era um instrumento de tortura.               Acg: Um bom texto esclarecedor da História, infelizmente há hoje em Portugal quem não a conheça e emita opinião apenas pelo que ouviu dizer. Falta dizer que o fascismo, o nazismo e o estalinismo têm todos a mesma matriz socialista, os três derivaram de partidos socialistas, sublimando a sua ideologia. Melhor mesmo, aconselho veementemente, é estudar o fenómeno Mussolini, na Itália, analisar a bagunça que lá se vivia, os "facci di combattimento" e "Squadristi", acreditando nessa utopia conhecida como marxismo e depois perorar sobre o assunto. Todavia recomendo uma conclusão: isso foi há 100 anos, na década 20 do séc. XX, estamos década de 20 do séc. XXI, muita ciência, investigação, conhecimento, avanço social, económico e politico passaram por debaixo das pontes, não podemos fazer mero copy paste. Por fim, JNP enche-me as medidas enquanto professor deciência politica e cidadão, agradeço-lhe muito.………………………………………………………………………………………………

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