O que se passava aqui, com muito do que
por lá passou. Feitas as devidas ressalvas, é certo. As zonas urbanas, sim, de
cuidado no traçado, e nas condições usuais das distinções sociais, e com o progressivo
estabelecimento dos meios do saber, propícios
aos estudos posteriores na Pátria mãe, as zonas do interior, onde se fez
trabalho, onde se criaram escolas primárias, e houve a acção de colonos exploradores
de recursos, com a da Igreja semeadora relevante de doutrina e do saber
primário. Os caminhos-de-ferro e as estradas, embora poucos, foram ligando os
espaços, a barragem de Cahora Bassa foi êxito, de um pobre país, que por cá
teve o povo das aldeias – e não só - iletrado e condicionado num viver de
miséria que o fez emigrar, para se sujeitar, inicialmente, aos bidonvilles da
sua ambição de progresso. De resto, era simpática a relação, de amizade, que o
desporto favoreceria, de respeito, apesar das discrepâncias sociais. Não, não
me esqueço do Armando, que me mandou uma fotografia para Coimbra, estava ele na
Índia, em serviço militar. E do Finias, e da Marta e do Salvador, com os quais
a relação foi de respeito e amizade, na distanciação que por aqui também se
estabelecia, como em toda a parte, aliás, conforme as educações de cada um.
O progresso intelectual foi vagaroso, é
claro. Lá como cá. Realmente, as casas das aldeias por cá, não tinham condições
sanitárias mínimas, nem electricidade sequer…
Mas quem assistiu ao nascimento de um
dos meus filhos foi o Dr. Torres, da Académica, no Hospital Miguel Bombarda,
que me apontou como exemplo de comportamento passivo contrastante, uma sua
compatriota africana, ali ao lado, enquanto eu me esganiçava em lancinantes
manifestações de uma dor inenarrável, como é a do parto. Fez-se pouco, que
sempre pouco fizemos, pequenos que somos, embora tivéssemos semeado obra no
mundo. Enfim, não durou, a obra, e a avalanche dos críticos sobre essa obra é
enorme. E desonesta, naturalmente. Porque esquece as contingências e o viver
tranquilo, contrariamente ao que se passou noutros continentes mais aguerridos.
Todavia, também por cá, foi com a semeadura
dos dinheiros externos que iniciámos o desenvolvimento progressivo, não com o
nosso, que se sumiu no espalhafato de uma mudança desengonçada.
Mas o Dr. Salles é que sabe melhor
traduzir…
HENRIQUE
SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 17.02.22
Quem
conheceu as zonas urbanas de Moçambique antes de 1974 ficou muito provavelmente
encantado e quem voluntariamente viveu fora das cidades também terá hoje
saudades de paisagens, gentes e condições gerais da vida.
Paisagens
soberbas, inesquecíveis; gentes globalmente pacíficas, afáveis, cerimoniosas,
civilizadas; condições confortáveis de vida..
«Vendo
o filme ao contrário», creio que todos – de todas as cores e de todas as etnias
– pensávamos (locais e «reinóis») que a independência era uma ocorrência
natural num futuro não localizável mas para que não se previam turbulências…
mas a História trocou-nos as voltas e a destabilização começou, cresceu, foi
confinada e a vida retomou a tranquilidade anterior.
E
foi nesta tranquilidade na maior parte do território que o grande
desenvolvimento começou: Universidade, barragens, estradas, aeródromos, portos,
substituição de importações, progressiva monetarização da economia… E foi neste
desenvolvimento a ritmo inédito que muitos de nós, «reinóis», colaborámos
activamente. Recordo vários amigos e camaradas de armas que davam aulas nos
cursos nocturnos do nível secundário e mesmo no superior. Eu guardei-me para
depois do serviço militar regressando a Moçambique como civil para o exercício
das minhas habilitações profissionais.
Foi
uma fase empolgante na construção do que ficara durante séculos por fazer tanto
no físico como, sobretudo, no desenvolvimento humano.
Mas
não seria pela vida contemplativa ou de ócio que serviríamos os moçambicanos.
Daí, as autocríticas históricas e análises de estrutura que acabariam por
desenhar muitas políticas dos Governos de Arantes e Oliveira e de Pimentel dos
Santos.
A
primeira crítica foi ao elevadíssimo grau de iliteracia das populações. Daqui resultaram duas decisões estruturais: o
incentivo da formação e recrutamento de professores primários (não tivemos a
força política necessária para levarmos por diante uma adaptação dos programas
à realidade moçambicana e, por absurdo, as crianças do interior, do litoral e
do topo ao fundo do mapa moçambicano tinham que aprender o mesmo que se
ensinava em Portugal); o adensamento da quadrícula de escolas primárias (se os
condicionalismos orçamentais impedissem a construção de edifícios em alvenaria,
pois que as escolas funcionassem em palhotas de pau a pique pois o importante
era que as crianças aprendessem a ler, escrever e contar). E foi tanto o que
ficou por fazer… Mas em Portugal chegámos ao 25 de Abril de 1974 com 25% de
analfabetismo adulto.
No
ensino secundário, a malha era muito mais larga pois só havia liceus (alunos
maioritariamente brancos à semelhança do que acontecia em Portugal cuja
população liceal era oriunda sobretudo de famílias instaladas no conforto) ou
escolas técnicas (sobretudo alunos não brancos, à semelhança do que acontecia
em Portugal cuja maioria dos alunos na via profissionalizante era oriunda de
famílias laboriosas) nas capitais de Distrito. Manifestamente insuficiente mas
em tudo semelhante ao que acontecia em Portugal. Não vingou o cabimento
orçamental para intensificar a formação agrária mas sobraram verbas na formação
de torneiros mecânicos. Contudo, ainda se deu início ao funcionamento em
Inhambane do Centro de Formação Profissional das Comunicações onde se começaram
a ministrar os cursos que as escolas técnicas não dispunham (lembro-me de várias
especialidades na electrónica). O sonho era o de tudo aquilo poder vir a
ser um Instituto Superior Técnico a integrar na Universidade de Moçambique..
Mas ficou-se pelo sonho. E se é sempre penoso interromper sonhos, neste caso
ainda foi pior para a maioria não-branca que frequentava os cursos iniciados e
não ministrados até final.
Naquela
primeira metade da década de 70 do séc. XX, a maioria da população escolar
universitária era branca.
Faltava
fazer a democratização do acesso ao ensino e foi com o objectivo primordial de
se fazer a tele-escola e a promoção do português como língua de comunicação
inter-étnica que se tomou a decisão de cobrir todo o território por televisão.
Feito o projecto, tudo pronto para se lançar os concursos para o equipamento e eis
que de Lisboa chega o veto pois a RTP tinha equipamento (obsoleto, claro) de
que se queria livrar. Passado pouco tempo, aconteceu o 25 de Abril de 1974
e este foi outro sonho interrompido.
Vizinho
do «apartheid» sul africano, o regime português de Moçambique orgulhava-se do
seu não racismo mas, há que reconhecer que o desenvolvimentismo foi tardio e
que por isso mesmo os benefícios outorgados aos pretos também tardaram. O
racismo real fazia-se pelo poder de compra: não passava pela cabeça de
ninguém barrar o acesso a qualquer local ou situação com base na cor da pele.
Bastava que se tivesse poder de compra e o acesso era livre a toda a parte e a
todas as circunstâncias. Mas a pirâmide social não branca tinha uma
amplíssima base e um topo afuniladíssimo mas, mesmo assim, alcançando níveis
tão elevados como a homóloga branca. Nós, os desenvolvimentistas, não
tivemos tempo de corrigir esta situação pela via da instrução e da formação
profissional. Esta foi uma falha retumbante da nossa administração colonial –
não muito diferente, aliás, do que se passava em Portugal.
Uma
nota final que pode parecer menor tem a ver com a escassez de saneamento básico
nas cidades em que prevaleciam as fossas em vez dos colectores com todo o
inerente impacto ambiental. Sim, é verdade, um índice lastimável. Mas na
Avenida da República, em Lisboa, as fossas assépticas só foram ligadas a
colectores no início dos anos 80 do séc. XX e no país menos urbano, poucas eram
as casas que tinham casas de banho.
O
atraso era específico e generalizado, as políticas desenvolvimentistas foram
tardias e nós, os seus executantes, fomos corridos e, infelizmente,
seguiu-se-nos o dilúvio em Portugal e Colónias.
Fevereiro de 2022
Tags:
história
COMENTÁRIOS:
Miguel Magalhães 17.02.2022: Gostei desta descrição do esforço português para o
desenvolvimento em Moçambique, e inerente falta de meios para o implementar.
Anónimo 18.02.2022 07:15: Ao ler o texto não podia tar mais de acordo
mas lamento k o Moçambique k conheci e k ainda hoje amo k ficará sempre no meu
coração teja apesar do pouco k se fez e também do pouco k fizeram os k vieram
depois de nós teja a passar pela avassaladora devastação k os daesh fazem e nós
tão longe e o mundo cego surdo e mudo para o que lá se passa Isabel
Pedrosa
Antonio Fonseca 18.02.2022 16:28: Tudo o que o Sr. Doutor escreve aqui faz-me lembrar da
situação em Goa antes da invasão indiana. Creio que se deixou passar uma
oportunidade ímpar para lançar os alicerces de um Mundo de Portugalidade - uma
comunidade de língua, cultura, economia, organização política - uma parceria em
evolução, com contornos que seriam estabelecidos e refinados à base da
experiência adquirida no percurso desta concepção inédita, um continuum da
gesta dos Descobrimentos, abrindo, cinco séculos passados, novas vistas para a Humanidade.
Faltou-nos Visão e Coragem de Sonhar. António
Fonseca
Anónimo 18.02.2022 17:14: Começo por dizer que compreendo muito bem o
grito de alma da nossa querida Isabel Pedroso no seu comentário ao teu ao post,
este recheado de ideias e de factos. O sentimento que parece transparecer - não
sei se o captei bem - é que fizemos, mas com atraso, que foi uma luta contra o
tempo, mas que infelizmente ficámos aquém do que seria desejável e necessário,
em termos de desenvolvimento de Moçambique. Não te esqueças, Henrique, que
durante séculos não demos a atenção devida ao desenvolvimento das Colónias. A
História está cheia de factos e de opiniões da elite portuguesa, pelo menos até
ao século XIX, que bem o demonstram, inclusive perpassando a ideia de venda das
Colónias. Um ex-governador de Tete e Quelimane, Delfim José de Oliveira, chegou
a dizer que se Portugal não podia ou não queria olhar com mais amor para
Moçambique, então que renunciasse, enquanto podia fazê-lo com alguma vantagem,
aos direitos que tinha à sua tutela, segundo consta do 1º volume de “Quase
Memórias”, de Almeida Santos. Também Oliveira Martins, ainda segundo o mesmo
autor, defendeu em diversos momentos que nos libertássemos do encargo colonial,
na impossibilidade de uma efectiva exploração e ocupação, estando esta, como
sabemos, na origem do Mapa Cor-de-Rosa e do respetivo Ultimato. Eça, por
diversas vezes, defendeu a ideia de venda da Colónias, mas Eça, segundo
Agostinho da Silva, em “Reflexão”, não entendeu Portugal na sua História
(página 121). Henrique, dá o salto para o “nosso” tempo, e constata que apenas
com Adriano Moreira, como Ministro o Ultramar (1961/3), foi revogado o
indecoroso Estatuto do Indigenato (os assimilados) e, consequentemente, o
Código do Trabalho Rural. Só então, e juridicamente, todos passaram a
ser iguais perante a Lei, independentemente da etnia. D. Sebastião
Resende, bispo da Beira, segundo consta do livro de Adriano Moreira “A espuma
do Tempo”, tendo a premonição que não teriam efeito imediato aquelas medidas,
perguntou ao Ministro do Ultramar a que velocidade ia ser revogado o Estatuto
do Indígena. Sabemos igualmente a dificuldade que o Prof. Adriano
Moreira teve em fazer aprovar os Estudos Gerais Universitários, em Angola e em
Moçambique, e inicialmente estes só leccionavam os três primeiros anos, sendo
os últimos dados nas Universidade da Metrópole, isto é, só estas é que passavam os respetivos diplomas. Ainda em
março de 1971 (1971, repito), o Prof, Antunes Varela dizia que a criação
daqueles Estudos tinham sido um erro pois estavam a diplomar adversários de
Portugal (págs. 365/6, da obra citada do Prof. Adriano Moreira). (O Prof. Varela
parecia desconhecer o que se passava nas Casas do Império…) Era este
enquadramento com que os fazedores e os partidários do desenvolvimento
moçambicano se confrontavam. Como sabes, dei aulas noturnas de “Noções de
Comércio” e de “Contabilidade” na Escola Comercial de Nampula. Aí, como
em qualquer Escola, encontrei alunos bons, regulares e maus, obviamente,
independentemente da cor da pele, mas lá, como cá, os alunos que tinham mais
dificuldade eram aqueles que tinham menos condições para estudar. Entendi bem
isso, quando me prontifiquei, de forma totalmente desinteressada, a dar aulas
suplementares aos de menor aproveitamento. Recusaram, pois não tinham mais
tempo disponível. As aulas regulares, o trabalho e a família preenchiam o tempo
todo. Ainda hoje ouço o bruaá quando na última aula de Contabilidade, antes do
exame final, lhes disse que tinha dado praticamente a matéria de contabilidade
comercial prática de Económicas. Pouquíssimos chumbaram, e houve um 18!... Sim,
Henrique, houve desenvolvimento, não tanto quanto seria desejável, não só pelo
nível com que se partiu, mas também pelas vicissitudes da guerra colonial (e,
posteriormente, civil) e também por algumas mentalidades que pontificavam no
Portugal político. Em outubro/69, os aviões da TAP ficavam na Beira, pois a
pista de Lourenço Marques era insuficiente (até se dizia que Moçambique tinha o
maior aeroporto do mundo – a pista na Beira e a gare em Lourenço Marques).
Passado pouco tempo esse constrangimento desapareceu. A barragem de Cahora
Bassa é um marco arrojado, só para citar mais um exemplo, o mais representativo,
a terminar. Forte abraço. Carlos
Traguelho
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