Oxalá que sim. Mas a preocupação está
para ficar. E o espanto. A sacanice impõe-se, desta vez, no mundo ocidental. Temos
andado em euforia amparada, é certo, desde o ano dos cravos, nós, os da velha
Lusitânia. E já nem se fala nas filas de imigrantes, que tanta impressão
causavam, ainda há pouco, com os meninos pequenos a andar, também na fila, nem
nos naufrágios no velho Mediterrâneo ou até lá pela Mancha. Estamos na guerra, depois
das cortesias de ameaças de sanções económicas, apenas para empatar a guerra,
que já está.
Outras coisas? Sim, outras
À hora a que escrevo (quarta-feira)
Putin aceita até um “diálogo honesto” para “resolver problemas pela via
diplomática”. Pela via... quê? Uma prova de longa duração para o Ocidente.
Tensa e intensa.
OBSERVADOR,
24 fev 2022, 00:224
1 Introdução: só se fala dele e ele – Putin – faz medo por mais de uma razão. E se o momento não permite a uma militante do mundo
ocidental nem distrações nem demissões, apesar disso – ou por causa disso?
–. são outras coisas que deixo hoje aqui. Menos ameaçadoras, mais
amáveis. A gravidade dos dias confundi-las-á com distracções. Não são. Evoco
gente que vale a pena ser evocada. Parecer-lhes-á desconcertante e talvez
seja. Mesmo assim.
2 Há
coisas que às vezes vêm ter connosco de forma tão harmoniosa, que damos
connosco subitamente disponíveis para acreditar num qualquer milagre agenciado
não se sabe bem como ou por quais deuses. Foi o caso. Claro que qualquer coisa
que não fossem os embaraços e vexames que nos causam os políticos seria naturalmente
um quase prodígio. Mas posso ser mais comedida e mesmo prosaica: afinal é de livros e palcos e vozes que trata este texto. Claro que o ter-me naturalmente ocorrido o
substantivo prodígio releva também do regresso à vida, á rua, aos foyers, ao
cheiro a papel das livrarias, às tertúlias, ao ruído de vozes, ao cinema, ao
som da cidade. Mas não foi só isso.
3 Podia
começar por falar em coincidências mas nunca me decidi sobre se as há ou não, o
tema permanece-me inconclusivo, mas deve haver: na mesma semana, no mesmo
local, pude assistir entre o pasmo e a glória, a duas performances inesquecíveis.
E o traço de união entre elas não era só o Teatro da Trindade onde ambas
ocorreram: o que as tornou únicas foi o génio. O imenso talento de Diogo Infante
que estreava peça, e sete dias depois, a voz de Camané que ali
interpretava ao vivo o seu último disco, “Horas Vazias”. Mas que horas afinal
tão, tão cheias… Sim, é verdade que gosto de contar. É ainda mais verdade que
gosto de gostar e depois dizer que gostei mas como reagir doutra maneira com
eles os dois ali à mão de semear, Diogo e Camané, diante dos nossos sentidos
maravilhados? Dizer que gostei é pouco. E terrivelmente injusto: ficaria aquém.
4 Diogo Infante é
genialmente versátil. Já o vimos
fazer tudo e tudo melhor que bem. Com o seu talento polifónico entrou em cena
com a leveza de um bailarino e a subtileza de um pescador, no registo da alta comédia
de Noel Coward. O que como bem sabem os que sabem, não é fácil. Encenador e
protagonista (em cena quase permanentemente) Diogo Infante fez do palco um
carrocel de onde personagens, casos, imprevistos e sentimentos entram e saem
com vertigem. O texto é o nó górdio de onde tudo parte para depois, envolto no
verbo só aparentemente frívolo de Noel Coward, esvoaçar por ali, entre a
seriedade, o sorriso e a ambiguidade. Le tout, com consideráveis doses de
elegância e bom gosto. Outros tempos eram aqueles. Diogo Infante brilha e faz
brilhar sobretudo o friso feminino (Ana Brito e Cunha, Rita Salema, Patricia
Tavares, Gabriela Barros, magnificas).
Uma
delícia que o peso destes dias transforma numa espécie de recompensa.
5 Camané
é o melhor. O melhor a cantar, a entoar, a modular, a perceber o
que é o fado, a meter-se dentro dele, fado e intérprete fundidos. É também o
melhor na sua tão própria forma de exigência: no modo como elege poetas e
letristas, escolhe músicos e compositores, selecciona fados, estreia outros.
“Já reparou como o Camané é tão parecido com a Amália?” perguntava-me Ruy
Vieira Nery que também nasceu com o fado no sangue:
“Para
além da maravilhosa voz de ambos, há a mesma sensibilidade, a mesma intuição. E
a simplicidade, a exigência, a delicadeza…”
Há
sim, há. A mesmíssima.
Já
aqui louvei Camané, já aqui o entrevistei, estou a repetir-me, dirá o leitor.
Repito-me porém porque -sorte minha – não tenho outro remédio: Camané é
superlativo. Diogo também. E são-no em português. Na mesma semana dois superlativos, Deo Gratias!
Um
grande regresso à “normalidade” (como “eles” dizem).
6Já
não tinha notícia há décadas: que seria feito dele? Ainda fotografaria?
Mantinha-se em Lisboa?
Descobri-o
numa notícia aqui mesmo: António Homem
Cardoso publicava um
livro. Interessei-me, os seus créditos, a fama, a aura de notável retratista
abonam o seu talento: são ”500 Retratos
da Minha Vida” (editora By
the Book, prefácio de António Barreto) que nos falam de quem somos, da história
que vivemos, do tempo que passou. Num preto e branco imperial há rostos e mãos,
corpos, olhares, gestos, atitudes, “cenografias”, que são a melhor assinatura
dos retratados, em páginas de excelentíssima qualidade retratística e técnica –
papel, impressão, edição.
O
autor avisa-nos que vamos “encontrar alguns grandes retratos, outros
assim-assim. Outros nem por isso. Tal como a vida, o retratista tem dias bons,
maus e péssimos”.
A
minha nula competência na matéria não me fez o mesmo aviso. Sorvi o livro. E
encontrei-lhe outro mérito: fazia falta uma obra assim. São precisos
grandes frescos sobre as sociedades, mostrá-las através de uma lente inspirada
é uma outra forma de as dar a ver.
Há
músicos, artistas, intelectuais, escritores, pintores, actores, arquitectos,
jornalistas, empresários, políticos, escritores. Papas e bispos, fadistas e
vinhateiros. Académicos e revolucionários. Do antigo regime e da democracia. Há
muita gente. Há sobretudo Portugal.
7E
porque os últimos são os primeiros, eis um português de primeira. Deveria
talvez dizer um sobredotado mas há quem lide mal com grandes adjectivos ou logo
desconfie (do sobredotado e de mim). E no entanto, de uma coisa estou certa: o médico António José Barros Veloso é isso mesmo que é.
Percebeu
cedo que a curiosidade é um motor potentíssimo e foi-o mantendo sempre a
trabalhar. Vindo através dela a desaguar em caminhos improváveis num clínico
que fizera do exercício da medicina a sua vocação primordial: o jazz –
é um excelente pianista que toca não poucas vezes no Hot Club e por outros
lugares onde o reclamam; a azulejaria, paixão mais tardia na qual se tornou reputado
especialista, com obra publicada; já aposentado mas como se ainda tivesse
trinta anos e de certa forma teve-os sempre, abraçou a História da Ciência onde
tem obra publicada, animada pela mesma curiosidade, a mesma verve, a mesma
energia. Apetece perguntar se num ser humano podem coabitar várias vocações?
Olhando para ele, sim: soube tratar bem esse dom. E lendo a sua história através
do diálogo mantido em recente livro com Margarida Almeida Bastos
(“António José Barros Veloso, Uma Vida, Vários Mundos”, By the Book)
percebe-se tudo isso ainda melhor: ele e os seus dons.
8Epílogo: Após ter invadido e desmembrado um país independente Putin
anunciou que “está disponível para dialogar”, mas “sem comprometer os
interesses do país”. Fala quem pode e tem poder. Mais: à hora a que escrevo
(quarta-feira à tarde), Putin aceita até um “diálogo honesto” para “resolver
problemas pela via diplomática”. Pela via… quê?
Uma
prova de longa duração para o Ocidente. Tensa e intensa.
CRÓNICA OBSERVADOR VLADIMIR
PUTIN RÚSSIA MUNDO UCRÂNIA EUROPA FOTOGRAFIA
COMENTÁRIOS:
João Floriano: .......... e
à hora que escrevo este comentário, as tropas russas já invadiram a
Ucrânia, a diplomacia falhou redondamente e vamos a ver se as sanções dão algum
resultado. Dizem que a economia russa está dependente da Europa e que
também tem muito a perder. Penso que os grandes oligarcas russos terão
mais influência sobre Putin do que o tal povo que tem um salário mínimo de
menos de 200 euros. Quanto à crónica de hoje, não apreciei. Pareceu-me
mais uma crónica sobre cultura. Não me emociono com o fado, não conheço António
Homem Cardoso e no caso da MJA prefiro «as mesmas coisas do costume»:
comentário político. Uma palavra para Diogo Infante: sem dúvida um actor
excelente. Américo
Silva O sonho comanda a vida, o capital
satura. Nem todas podem sonhar com jogadores de futebol, e com os LGBT+ ou o
Biden se calhar não vale a pena sonhar, coitadas, resta-lhes sonhar com o
Putin. josé
maria: Pois, também acho que o Putin é um
indivíduo desprezível, mas aproveito para colocar uma questão à MJA : se os
russos implantassem mísseis em Cuba ou na Ilha de Ratmanov,mapontados ao
território americano, o que é que os EUA deveriam fazer ? Aplicar sanções
económicas à Rússia? E se a Ucrânia, aderindo à Nato, apontasse os mísseis
directamente à Rússia, que solução diplomática a MJA proporia? Os bons estão
sempre do lado do Ocidente ? João
Floriano > josé maria: Já aconteceu em 1962 com a crise dos misseis. Na
prática Rússia e Estados Unidos estão a 4km de distância no Alasca. O
comentário do José Maria tem muitos SES. Neste momento nenhum dos SES cenários
apontados se concretizou. O que de facto está a acontecer é uma agressão
russa à Ucrânia e eu não consigo ver nada de bom nisso. Há culpas de ambos
os lados: quando os vizinhos se engalfinham, diz-me a experiência que as culpas
são repartidas. O meu senso comum diz-me que a guerra não vai beneficiar em
nada qualquer dos lados. Pode acontecer que Putin queira assumir uma posição de
força que lhe permita agora sentar-se em vantagem à mesa da diplomacia.
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