quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Quanto a mim

 

Recordo o tempo do Liceu, de isenção de propinas a quem tinha médias para isso - julgo que de 11 ou 12 valores as mínimas - e de se obter bolsa de estudos universitários, desde que nos exames do 7º ano se obtivessem médias de 14 ou mais valores. Forma, não só de reconhecer méritos, como de contribuir para a formação de gente que, de outra forma, se ficaria – devido aos baixos vencimentos dos pais - pelo emprego casual, no serviço público (a que se ascendia por exame) - ou privado. Salazar era poupado, e ainda bem que o foi, que assim acumulou barras de oiro luzidio, vi na Internet, de que sobravam algumas, já neste século. Ninguém explica como se gastaram, nem se sabe se a elas tiveram acesso tantos desses, menos reservados nos gastos, do que Salazar, mas mais salientes na fama liberal – em função alheia ou própria, como se tem visto, sem tantos ministros salientes como nesses tempos do tal ditador sem estátua…

REFLEXÃO COLONIAL - 3

 22.02.22

Na sequência dos dois textos anteriores sob esta mesma epígrafe, fui perguntado sobre o que penso do regime de Salazar. Laconicamente, respondi como segue:

«Na minha opinião, o regime do Doutor Salazar era autoritário (como forma de impedir as discussões parlamentares que ele considerava estéreis e intermináveis), monástico-ruralista (a “felicidade” virtuosa da pobreza), conservador (do arcaísmo), inspirado na doutrina social da Igreja (nada tendo a ver com a Democracia Cristã pois não era democrata). O condicionamento industrial (só revogado por Maria de Lourdes Pintasilgo) foi o grande instrumento do antiliberalismo de Salazar.»

* * *

Reparou por certo quem me lê que não apliquei o erradíssimo adjectivo «fascista». É que Salazar era autoritário, sem dúvida, mas governava no âmbito de um quadro legal formalmente divulgado e de aplicação universal; fascismo é a governação ao sabor da vontade (caprichosa e de improviso) do ditador. A autocracia imobilista salazarista era, pois, o contrário das aventuras fascistas sob as quais ninguém sabia a quantas andava. São disto tristes exemplos Lenine, Mussolini, Hitler, Stalin, Franco (nos seus primeiros tempos), Péron, Mao Tsé Tung, Bocassa… (e Putin e Xi Jin Pin???)

Salazar era o contrário do cosmopolita, era socialmente reservado, sedentário, quase anacoreta, meditativo, não impulsivo, apologista da modéstia patrimonial, nostálgico do ruralismo da sua Santa Comba natal.

Deste conceito de modéstia e ruralismo resultava a política da modéstia do próprio programa de educação. «O povo quer-se ignaro, dócil, na horta» - crítica algo jocosa, irónica, mas que tudo tinha a ver com quem não queria que as empregadas domésticas aprendessem a ler.

Apesar de todos os esforços entretanto levados a cabo, o problema do baixo nível médio da instrução continua a ser uma realidade.

Deste imobilismo monástico-ruralista fazia parte a prudência aforradora do entesouramento por contraste do risco inerente ao investimento. O investimento público foi o permitido pelo equilíbrio das contas do Estado; o investimento privado foi submetido ao condicionamento industrial para, nomeadamente, limitar os riscos e evitar prejuízos resultantes de iniciativas menos felizes do que o desejado.

No entanto, do Governo do Doutor Salazar recordo alguns Ministros desenvolvimentistas que cito por ordem cronológica cujas acções mais emblemáticas resumo:

Duarte Pacheco – Ministro das Obras Públicasprimeira autoestrada portuguesa de Lisboa ao Estádio Nacional; edificação do «Instituto Superior Técnico» como hoje o conhecemos; …;

Ferreira DiasMinistro da EconomiaPlano de Electrificação Nacional (a começar pela barragem do Castelo do Bode); «Amoníaco Português»; …;

Adriano MoreiraMinistro do Ultramar - – revogação do «Acto Colonial» e do «Estatuto do Indigenato»; lançamento das futuras Universidades de Luanda e de Lourenço Marques; …;

Arantes e OliveiraMinistro das Obras Públicas - construção dos primeiros troços da autoestrada Lisboa-Porto; construção da «Ponte Salazar» hoje «25 de Abril» …;

Correia de OliveiraMinistro da Economiamedidas estruturais na economia leiteira, nas culturas cerealíferas, na produção de oleaginosas e na comercialização de peixe congelado em todo o território continental; …

Eis de quem me recordo sem consultar livros nem apontamentos.

Este, o desenvolvimento que Salazar ia autorizando e quando achava que o trabalho estava concluído, despedia o Ministro com um simples cartão de visita a agradecer a colaboração prestada.

Continuo hoje, passados mais de 50 anos, a crer que Salazar tinha medo do desenvolvimento e só pactuava com o que era imprescindível: grupos industriais «Melo» e «Champalimaud» que supriam necessidades básicas da nossa economia em regime de substituição de importações. O sistema corporativo ia «gerindo» os excedentes de iniciativa que surgissem. Noto também que Salazar se viu obrigado a pactuar com realidades desenvolvimentistas que já existiam antes dele. Refiro-me, entre outras, a empresas seguradoras e bancos fundados lá pelo séc. XIX (nomeadamente pelo Conde do Farrobo) que desempenhavam relevantes e inegáveis serviços.

Sempre temendo que a concorrência desgastasse recursos, a lógica económica assentou na produção de diamantes e café robusta em Angola, algodão, chá, sisal e açúcar em Moçambique, óleos alimentares na Guiné, cacau em São Tomé, café arábica em Timor e algum peixe em Cabo Verde. De Goa, Salazar esperava médicos para os Quadros do Ministério do Ultramar. E tudo quanto saísse desta matriz, bulia com a calma salazarista e arriscava um «não».

Convenhamos que todo o cenário era estático, incapaz de corresponder às aspirações de quem tivesse origens menos humildes que Salazar, não tivesse sido seminarista, quisesse constituir família a que quisesse criar vida de conforto, tivesse horizontes mais largos do que os da Calçada da Estrela, tivesse a coragem de lidar com o risco. Ou seja, nem todos os opositores a Salazar eram de esquerda.

Eis por que saudei a chegada do Professor Marcelo Caetano à chefia do Governo.

Fevereiro de 2022

 Tags: História

COMENTÁRIOS:

 Anónimo  23.02.2022  10:58: Viva, Parabéns por síntese lúcida, correta, bem conseguida! Abraço. Elias Quadros

 Anónimo  23.02.2022  14:27: No ano passado ou em 2020, a propósito dum post teu, citei vários autores e historiadores tentando demonstrar que, em geral, eles inclinavam-se para que o regime salazarista não tinha sido fascista, pelo menos, à imagem do italiano. Sobre a tua lista dos ministros desenvolvimentistas, duas coisas saltam logo à vista: número reduzido e, sabendo-se quem foram, período curto de governamentação, salvo os casos do Eng. Arantes e Oliveira e do Dr. Correia de Oliveira, o que diz muito… Acerca deste último, importa realçar um aspecto que te olvidaste de pôr no curriculum: foi um dos principais obreiros por Portugal ter sido membro fundador da EFTA. À tua lista, acrescentava dois nomes, o que não obsta a que ela continue a ser parca: Professores Marcello Caetano e Daniel Barbosa. O primeiro por, como Ministro da Presidência (1955-58), ter tido a seu cargo o Plano de Fomento (1953-58) orientado para a construção de infraestruturas e de ter sido também o impulsionador da transformação do Fundo de Fomento em Banco de Fomento Nacional, o qual entrou em funções em janeiro de 1960, havendo sido seu Governador, de 1965 a 74, exactamente o Prof. Daniel Barbosa. Este foi Ministro da Economia em 1947/8, havendo tido a responsabilidade de dinamizá-la, com a importação de bens de consumo e de capital que Portugal necessitava. O meu pai dizia-me que ele ficou conhecido, carinhosamente, pelo Daniel das farturas. Infelizmente, Henrique, Salazar, quanto a mim, dava mais atenção à manutenção do equilíbrio de forças, de sensibilidades, de protagonismo dentro do seu Governo, do que do mérito dos respetivos governantes. Creio que o Prof. Ferreira Dias, não obstante todo seu gabarito e mérito de ter dado um impulso à eletrificação do País, não esteve muito tempo. O Prof. Marcello Caetano saiu em 1958 para “equilibrar” a saída do general Santos Costa; o Eng. Duarte Pacheco, que foi “buscar” Salazar a Coimbra, esteve inicialmente de 1932 a 36, saindo com a acusação de ser liberal e de ser “rival” doutra figura grada do regime – Pedro Thetónio Pereira -, o qual foi então promovido a Ministro do Comércio. Mas uma vez que este foi para Espanha, já o primeiro pode regressar ao Governo em 1938, tendo a sua brilhante carreira terminado de forma trágica, como sabemos. Abraço. Carlos Traguelho


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