Recordo o tempo do Liceu, de isenção de
propinas a quem tinha médias para isso - julgo que de 11 ou 12 valores as
mínimas - e de se obter bolsa de estudos universitários, desde que nos exames do
7º ano se obtivessem médias de 14 ou mais valores. Forma, não só de reconhecer
méritos, como de contribuir para a formação de gente que, de outra forma, se
ficaria – devido aos baixos vencimentos dos pais - pelo emprego casual, no serviço
público (a que se ascendia por exame) - ou privado. Salazar era poupado, e
ainda bem que o foi, que assim acumulou barras de oiro luzidio, vi na Internet,
de que sobravam algumas, já neste século. Ninguém explica como se gastaram, nem
se sabe se a elas tiveram acesso tantos desses, menos reservados nos gastos, do
que Salazar, mas mais salientes na fama liberal – em função alheia ou própria,
como se tem visto, sem tantos ministros salientes como nesses tempos do tal
ditador sem estátua…
22.02.22
Na sequência dos dois textos anteriores
sob esta mesma epígrafe, fui perguntado sobre o que penso do regime de Salazar.
Laconicamente, respondi como segue:
«Na
minha opinião, o regime do Doutor Salazar era autoritário (como forma de
impedir as discussões parlamentares que ele considerava estéreis e
intermináveis), monástico-ruralista (a “felicidade” virtuosa da pobreza),
conservador (do arcaísmo), inspirado na doutrina social da Igreja (nada tendo a
ver com a Democracia Cristã pois não era democrata). O condicionamento
industrial (só revogado por Maria de Lourdes Pintasilgo) foi o grande
instrumento do antiliberalismo de Salazar.»
* * *
Reparou por certo quem me lê que não
apliquei o erradíssimo adjectivo «fascista». É que Salazar era
autoritário, sem dúvida, mas governava no âmbito de um quadro legal formalmente
divulgado e de aplicação universal; fascismo é a governação ao sabor da vontade
(caprichosa e de improviso) do ditador. A autocracia imobilista
salazarista era, pois, o contrário das aventuras fascistas sob as quais ninguém
sabia a quantas andava. São disto tristes exemplos Lenine, Mussolini, Hitler, Stalin,
Franco (nos seus primeiros tempos), Péron, Mao Tsé Tung, Bocassa… (e Putin e Xi
Jin Pin???)
Salazar
era o contrário do cosmopolita, era socialmente reservado, sedentário, quase
anacoreta, meditativo, não impulsivo, apologista da modéstia patrimonial,
nostálgico do ruralismo da sua Santa Comba natal.
Deste conceito de modéstia e ruralismo
resultava a política da
modéstia do próprio programa de educação. «O povo quer-se ignaro, dócil, na
horta» - crítica algo jocosa, irónica, mas que tudo tinha a ver com quem
não queria que as empregadas domésticas aprendessem a ler.
Apesar de todos os esforços entretanto levados a cabo, o problema do
baixo nível médio da instrução continua a ser uma realidade.
Deste
imobilismo monástico-ruralista fazia parte a prudência aforradora do
entesouramento por contraste do risco inerente ao investimento. O investimento
público foi o permitido pelo equilíbrio das contas do Estado; o investimento
privado foi submetido ao condicionamento industrial para, nomeadamente, limitar
os riscos e evitar prejuízos resultantes de iniciativas menos felizes do que o
desejado.
No entanto, do Governo do Doutor Salazar
recordo alguns Ministros desenvolvimentistas que cito
por ordem cronológica cujas acções mais emblemáticas resumo:
Duarte Pacheco –
Ministro das Obras Públicas – primeira
autoestrada portuguesa de Lisboa ao Estádio Nacional; edificação do «Instituto
Superior Técnico» como hoje o conhecemos; …;
Ferreira Dias – Ministro
da Economia – Plano de Electrificação
Nacional (a começar pela barragem do Castelo do Bode); «Amoníaco Português»;
…;
Adriano Moreira – Ministro
do Ultramar - – revogação do «Acto
Colonial» e do «Estatuto do Indigenato»; lançamento das futuras Universidades
de Luanda e de Lourenço Marques; …;
Arantes e Oliveira – Ministro
das Obras Públicas - construção dos
primeiros troços da autoestrada Lisboa-Porto; construção da «Ponte Salazar»
hoje «25 de Abril» …;
Correia de Oliveira – Ministro
da Economia – medidas estruturais na
economia leiteira, nas culturas cerealíferas, na produção de oleaginosas e na
comercialização de peixe congelado em todo o território continental; …
Eis de quem me recordo sem consultar livros
nem apontamentos.
Este,
o desenvolvimento que Salazar ia autorizando e quando achava que o trabalho
estava concluído, despedia o Ministro com um simples cartão de visita a
agradecer a colaboração prestada.
Continuo hoje, passados mais de 50 anos,
a crer que Salazar tinha medo do desenvolvimento e só pactuava com o que era
imprescindível: grupos industriais «Melo» e «Champalimaud» que supriam necessidades básicas da nossa economia
em regime de substituição de importações. O sistema corporativo ia «gerindo»
os excedentes de iniciativa que surgissem. Noto também que Salazar se viu
obrigado a pactuar com realidades desenvolvimentistas que já existiam antes
dele. Refiro-me, entre outras, a empresas seguradoras e bancos fundados lá pelo
séc. XIX (nomeadamente pelo Conde do Farrobo) que desempenhavam relevantes e
inegáveis serviços.
Sempre temendo que a concorrência
desgastasse recursos, a lógica económica assentou na produção de diamantes e
café robusta em Angola, algodão, chá, sisal e açúcar em Moçambique, óleos
alimentares na Guiné, cacau em São Tomé, café arábica em Timor e algum peixe em
Cabo Verde. De Goa, Salazar esperava médicos para os
Quadros do Ministério do Ultramar. E tudo quanto saísse desta matriz, bulia com
a calma salazarista e arriscava um «não».
Convenhamos que todo o cenário era
estático, incapaz de corresponder às aspirações de quem tivesse origens menos
humildes que Salazar, não tivesse sido seminarista, quisesse constituir família
a que quisesse criar vida de conforto, tivesse horizontes mais largos do que os
da Calçada da Estrela, tivesse a coragem de lidar com o risco. Ou seja, nem
todos os opositores a Salazar eram de esquerda.
Eis por que saudei a chegada do Professor Marcelo Caetano à chefia
do Governo.
Fevereiro de 2022
Tags: História
COMENTÁRIOS:
Anónimo 23.02.2022 10:58: Viva, Parabéns por síntese lúcida, correta,
bem conseguida! Abraço. Elias Quadros
Anónimo 23.02.2022 14:27: No ano passado ou em 2020, a propósito dum post teu,
citei vários autores e historiadores tentando demonstrar que, em geral, eles
inclinavam-se para que o regime salazarista não tinha sido fascista, pelo menos,
à imagem do italiano. Sobre a tua lista dos ministros desenvolvimentistas, duas
coisas saltam logo à vista: número reduzido e, sabendo-se quem foram, período
curto de governamentação, salvo os casos do Eng. Arantes e Oliveira e do Dr.
Correia de Oliveira, o que diz muito… Acerca deste último, importa realçar um
aspecto que te olvidaste de pôr no curriculum: foi um dos principais obreiros
por Portugal ter sido membro fundador da EFTA. À tua lista, acrescentava dois
nomes, o que não obsta a que ela continue a ser parca: Professores
Marcello Caetano e Daniel Barbosa. O
primeiro por, como Ministro da Presidência (1955-58), ter tido a seu cargo o
Plano de Fomento (1953-58) orientado para a construção de infraestruturas e de
ter sido também o impulsionador da transformação do Fundo de Fomento em Banco
de Fomento Nacional, o qual entrou em funções em janeiro de 1960, havendo sido
seu Governador, de 1965 a 74, exactamente o Prof. Daniel Barbosa. Este
foi Ministro da Economia em 1947/8, havendo tido a responsabilidade de
dinamizá-la, com a importação de bens de consumo e de capital que Portugal
necessitava. O meu pai dizia-me que ele ficou conhecido, carinhosamente,
pelo Daniel das farturas. Infelizmente, Henrique, Salazar, quanto a mim, dava
mais atenção à manutenção do equilíbrio de forças, de sensibilidades, de
protagonismo dentro do seu Governo, do que do mérito dos respetivos governantes. Creio que o Prof. Ferreira Dias, não obstante todo seu gabarito e mérito de ter dado
um impulso à eletrificação do País, não esteve muito tempo. O Prof. Marcello Caetano saiu em 1958 para
“equilibrar” a saída do general Santos Costa; o Eng. Duarte Pacheco, que
foi “buscar” Salazar a Coimbra, esteve inicialmente de 1932 a 36, saindo com a
acusação de ser liberal e de ser “rival” doutra figura grada do regime – Pedro
Thetónio Pereira -, o qual foi então promovido a Ministro do Comércio. Mas
uma vez que este foi para Espanha, já o primeiro pode regressar ao Governo em
1938, tendo a sua brilhante carreira terminado de forma trágica, como sabemos. Abraço. Carlos Traguelho
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