domingo, 21 de maio de 2023

Um texto digno de uma pessoa digna


Que provocou , naturalmente, bastas razões contrárias.

O Cónego Jeremias e a legalização da eutanásia

Como disse o Papa Francisco é “muito triste” que, “no país onde apareceu Nossa Senhora”, tenha sido “promulgada uma lei para matar”. Também a Conferência Episcopal Portuguesa o “lamenta profundamente”

P. GONÇALO PORTOCARRERO DE ALMADA Colunista

OBSERVADOR, 20 mai. 2023, 00:1232

 “No país onde apareceu Nossa Senhora, foi promulgada uma lei para matar”
(Papa Francisco, 13-5-2023)

No dia seguinte à promulgação, pelo Presidente da República (PR), do diploma que legaliza a eutanásia, fui visitar o Cónego Jeremias. Logo que me viu, comentou:

– O Papa Francisco disse tudo quando, no passado dia 13, afirmou: “Hoje estou muito triste porque, no país onde apareceu Nossa Senhora, foi promulgada uma lei para matar” (JN 13-5-23). Com efeito, no dia 16, foi promulgada pelo PR o diploma que, a 12, tinha sido confirmado pela Assembleia da República. Que o Parlamento e o PR o tenham feito, nas vésperas da segunda vinda do Santo Padre ao nosso país, é uma ofensa ao Papa e uma vergonha para Portugal!!

– Em democracia, Senhor Cónego, há que respeitar a vontade do povo …

–Pois há, mas estes democratas, sempre com o 25 de Abril na boca e o cravo ao peito, não permitiram ouvir o povo, com a desculpa de que não se referendam direitos fundamentais. Se não se referendam, então não os referendem eles, sobretudo em questões de consciência, que a todos dizem respeito, para a qual os deputados não foram mandatados pelos eleitores e em que, portanto, não nos representam!

– Como votaram os diferentes partidos?

– A quase totalidade dos deputados presentes do PS – 107 em 111 – 8 do PSD e todos os deputados da Iniciativa Liberal, do Bloco de Esquerda, do PAN e do Livre votaram a favor da eutanásia. Todos são culpados, mas o PS, na medida em que tomou esta iniciativa legislativa e tem maioria absoluta, foi o principal responsável por esta lei anticristã contra a dignidade e a inviolabilidade da vida humana.

– A Constituição da República Portuguesa (CRP), no Artigo 24º, nº 1, declara que“a vida humana é inviolável”…

– Essa é outra! Somos todos muito democratas e muito legalistas, mas quando se trata de um preceito constitucional que não interessa, em termos políticos, faz-se da Constituição gato sapato. O PR, que faz questão de dizer, para umas coisas, que jurou a lei fundamental e que, por isso, a não pode deixar de cumprir; para outras, pelo contrário, ignora o que na CRP está explicitamente dito, sem qualquer dúvida.

– Sim, mas o Presidente fez o que pôde e até vetou o diploma …

– Pois vetou, mas nunca foi capaz de invocar a garantia e o princípio constitucional da inviolabilidade da vida humana! Suscitou umas questiúnculas secundárias, mas fugiu sempre à questão essencial. Também se queixou de os católicos não se manifestarem sobre este tema, quando ele é que nunca o fez, nem sequer na campanha para a reeleição presidencial, quando devia esse esclarecimento aos eleitores. Finalmente percebeu-se porquê: como é, como agora se viu, partidário da eutanásia, sabia que, se o tivesse dito então, poderia não ser reeleito.

– Também pode ser que, em princípio, seja contra a eutanásia, mas tenha considerado que não havia condições políticas para se opor à sua promulgação.

Se um princípio não é princípio da acção, de que é, então, princípio?! De nada! Os princípios conhecem-se pelas acções: os honestos não são os que prezam a honestidade, mas os que a praticam nos seus actos. Portanto, ou o PR é contra a eutanásia e agiu contra a sua consciência, o que seria uma hipocrisia; ou é a favor e, por isso, promulgou o diploma que a legaliza. Como não quero crer que seja hipócrita, só pode ser a favor da eutanásia. Aliás, nunca disse que o não era

– Não estava obrigado, pela Constituição, à promulgação, depois de o diploma ter sido confirmado, sem alterações, pela Assembleia da República?

– É de um rematado farisaísmo ignorar o que a CRP diz sobre a inviolabilidade da vida humana, para depois idolatrizar o preceito, meramente técnico, que estabelece o prazo para a promulgação das leis. Mas não é novidade, porque já Jesus tinha dito: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que pagais a dízima da hortelã, do endro e do cominho, e desprezais os pontos mais graves da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade! (…) Condutores cegos, que filtrais um mosquito e engolis um camelo!”(Mt 23, 23-24)!

– Acha então que o PR poderia não ter promulgado a lei que legaliza a eutanásia?

– Claro que sim! Mas, se dúvidas houvesse, muitos dos nossos melhores juristas afirmaram-no publicamente, como os Professores Paulo Otero, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Mafalda Miranda Barbosa, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; e Jorge Bacelar Gouveia, da Universidade Nova de Lisboa. Também o Desembargador Pedro Vaz Patto, Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, o Dr. José Ribeiro e Castro, a Dra. Teresa de Melo Ribeiro e muitos outros. Que fique claro que o PR promulgou porque quis: não foi obrigado e, juridicamente falando, podia não o ter feito.

– Não em virtude da Constituição …

Também em virtude da CRP, que consagra explicitamente o direito à objecção de consciência:“É garantido o direito à objecção de consciência, nos termos da lei.” (Artº 41, nº 6). Todos têm este direito, o Chefe de Estado também. Como nesta questão foi dada, aos deputados do PS e do PSD, liberdade de voto, agiram em função da sua própria consciência. Não seria razoável, portanto, que o PR, que tem uma legitimidade política própria, superior à de qualquer deputado, fosse o único cidadão que não pudesse invocar um direito fundamental reconhecido a todos pela Constituição!

– Sim, mas se não promulgasse a eutanásia, outro o faria em seu nome, como aconteceu na Bélgica, quando o Rei Balduíno se recusou a promulgar a lei do aborto.

– Quando, a 18-3-2001, disseram isso a Johannes Rau, o então Presidente da República Federal Alemã respondeu que isso era “a expressão da capitulação ética”! (Aceprensa, 30-5-2001). Mesmo que o PR, como o Rei Balduíno, não possa impedir a promulgação de uma tão aberrante lei, podia e devia dar testemunho de respeito pela vida humana e de coerência cristã, como esperavam os seus eleitores, que agora se sentiram traídos ou, pelo menos, defraudada a confiança nele depositada.

– No entanto, o Presidente sacudiu a água do capote, dizendo que tinha jurado cumprir a CRP e, por isso, tinha que promulgar a lei da eutanásia

– Insisto: é uma contradição apelar à Constituição, para justificar o cumprimento de uma sua norma, violando a Constituição numa sua garantia fundamental! Se os deputados querem legalizar o homicídio a pedido, tenham a honestidade de reformar a CRP, como no Observador escreveu recentemente José Ribeiro e Castro (Requiem pelo artigo 24º, 15-5-2023). Esta atitude política lembra a duplicidade dos fariseus, que não tiveram inconveniente em pedir a morte do inocente Jesus, mas não entraram no pretório de Pôncio Pilatos, para não se contaminarem … (Jo 18, 28).

– Quer isso dizer que um cristão não está obrigado a cumprir o que jurou?

– Claro que está, excepto se o que se lhe pede é um crime! Herodes jurou, à filha da amante, que lhe daria o que ela lhe pedisse, mesmo que fosse a metade do seu reino. Quando esta, instigada pela mãe, pediu a cabeça de João Baptista, Herodes não estava obrigado a cometer esse crime (Mt 14, 1-12). Nem podia, depois, dizer que não era moralmente responsável pela morte do mártir, à conta do juramento que tinha feito e que se limitou a cumprir! Isto não é política, em que, como é óbvio, não me meto, mas moral!

– Não é esse um caso extremo?

– Não, porque esse foi também o exemplo de todos os cristãos coerentes, como o Rei Balduíno e o Presidente da República de Malta, que se recusaram a legalizar aborto, bem como São Tomás More que, por isso, é o padroeiro dos políticos verdadeiramente católicos. Pelo contrário, os governantes e militares nazis desculparam-se das atrocidades que cometeram, dizendo que a isso estavam obrigados, por dever de ofício e pelo seu juramento de fidelidade a Hitler! Em termos éticos, ninguém está obrigado a obedecer nesses casos; está, até, em consciência, obrigado a desobedecer, como alguns fizeram, com grande heroísmo.

– E agora, Senhor Cónego, que nos resta??

– Como disse o Papa Francisco, é “muito triste” que, “no país onde apareceu Nossa Senhora”, tenha sido “promulgada uma lei para matar”. Também a Conferência Episcopal Portuguesa, em nota de 17-5-23, “lamenta profundamente” a legalização da eutanásia e do suicídio assistido, em virtude de uma lei que deixou a vida humana “desprotegida” e constitui “um grave atentado ao seu valor e dignidade”.

Resta-nos rezar e esperar que uma nova maioria revogue esta lei injusta. Mas, entretanto, há que lamentar quantos venham a ser, por este meio, legalmente mortos, por culpa dos deputados que aprovaram esta lei, dos juízes do TC que não declararam a sua inconstitucionalidade e do PR que, ao promulgar este diploma, o fez seu. Também há que lamentar que médicos sem escrúpulos possam vir a aplicar esta lei, violando o juramento de Hipócrates, como outros violaram a Constituição e, o que é mais grave, o 5º Mandamento da Lei de Deus: “Não matarás!” (Ex 20, 13; Mt 5, 21). Todos – sobretudo o PS e o PR – serão moralmente responsáveis pelas mortes medicamente provocadas: que terrível responsabilidade diante de Deus e da História!

 

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