Que provocou , naturalmente, bastas razões contrárias.
O Cónego Jeremias e a legalização da eutanásia
Como disse o Papa Francisco é “muito
triste” que, “no país onde apareceu Nossa Senhora”, tenha sido “promulgada uma
lei para matar”. Também a Conferência Episcopal Portuguesa o “lamenta
profundamente”
P. GONÇALO PORTOCARRERO DE ALMADA Colunista
OBSERVADOR, 20
mai. 2023, 00:1232
“No país onde apareceu Nossa Senhora, foi
promulgada uma lei para matar”
(Papa Francisco, 13-5-2023)
No dia seguinte à
promulgação, pelo Presidente da República (PR), do diploma que legaliza a
eutanásia, fui visitar o Cónego Jeremias. Logo que me viu, comentou:
– O Papa
Francisco disse tudo quando, no passado dia 13, afirmou: “Hoje estou muito
triste porque, no país onde apareceu Nossa Senhora, foi promulgada uma lei para
matar” (JN 13-5-23). Com efeito, no dia 16, foi promulgada pelo PR o
diploma que, a 12, tinha sido confirmado pela Assembleia da República. Que o Parlamento e o PR o tenham feito, nas
vésperas da segunda vinda do Santo Padre ao nosso país, é uma ofensa ao Papa e
uma vergonha para Portugal!!
– Em democracia, Senhor Cónego, há que respeitar a
vontade do povo …
–Pois há, mas estes democratas, sempre com o 25 de Abril
na boca e o cravo ao peito, não permitiram ouvir o povo, com a desculpa de que
não se referendam direitos fundamentais. Se não se
referendam, então não os referendem eles, sobretudo em questões de consciência,
que a todos dizem respeito, para a qual os deputados não foram mandatados pelos
eleitores e em que, portanto, não nos representam!
– Como votaram os
diferentes partidos?
– A quase
totalidade dos deputados presentes do PS – 107 em 111 – 8 do PSD e todos
os deputados da Iniciativa Liberal, do Bloco de Esquerda, do PAN e do Livre
votaram a favor da eutanásia. Todos são culpados, mas o PS, na medida em que tomou esta iniciativa legislativa e tem
maioria absoluta, foi o principal responsável por esta lei anticristã contra a
dignidade e a inviolabilidade da vida humana.
– A
Constituição da República Portuguesa (CRP), no Artigo 24º, nº 1, declara que“a
vida humana é inviolável”…
– Essa é outra! Somos
todos muito democratas e muito legalistas, mas quando se trata de um preceito
constitucional que não interessa, em termos políticos, faz-se da Constituição
gato sapato. O PR, que faz questão de dizer, para umas coisas, que jurou a lei
fundamental e que, por isso, a não pode deixar de cumprir; para outras, pelo
contrário, ignora o que na CRP está explicitamente dito, sem qualquer dúvida.
– Sim, mas o
Presidente fez o que pôde e até vetou o diploma …
– Pois vetou,
mas nunca foi capaz de invocar a garantia e o princípio constitucional da
inviolabilidade da vida humana! Suscitou umas questiúnculas secundárias, mas
fugiu sempre à questão essencial. Também se
queixou de os católicos não se manifestarem sobre este tema, quando ele é
que nunca o fez, nem sequer na campanha para a reeleição presidencial, quando
devia esse esclarecimento aos eleitores. Finalmente percebeu-se porquê:
como é, como agora se viu, partidário da eutanásia, sabia que, se o tivesse
dito então, poderia não ser reeleito.
– Também pode ser
que, em princípio, seja contra a eutanásia, mas tenha considerado que não havia
condições políticas para se opor à sua promulgação.
– Se um princípio não é princípio da acção,
de que é, então, princípio?! De nada! Os princípios conhecem-se pelas acções: os honestos não são os que
prezam a honestidade, mas os que a praticam nos seus actos. Portanto, ou o PR é
contra a eutanásia e agiu contra a sua consciência, o que seria uma hipocrisia;
ou é a favor e, por isso, promulgou o diploma que a legaliza. Como não quero
crer que seja hipócrita, só pode ser a favor da eutanásia. Aliás, nunca disse
que o não era…
– Não estava
obrigado, pela Constituição, à promulgação, depois de o diploma ter sido
confirmado, sem alterações, pela Assembleia da República?
– É de um
rematado farisaísmo ignorar o que a CRP diz sobre a inviolabilidade da vida
humana, para depois idolatrizar o preceito, meramente técnico, que estabelece o
prazo para a promulgação das leis. Mas não é novidade, porque já Jesus tinha
dito: “Ai de vós, escribas e fariseus
hipócritas, que pagais a dízima da hortelã, do endro e do cominho, e desprezais
os pontos mais graves da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade! (…)
Condutores cegos, que filtrais um mosquito e engolis um camelo!”(Mt 23,
23-24)!
– Acha então que o PR poderia não
ter promulgado a lei que legaliza a eutanásia?
– Claro que sim! Mas, se dúvidas
houvesse, muitos dos nossos melhores juristas afirmaram-no publicamente, como os Professores Paulo Otero,
da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Mafalda Miranda Barbosa, da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; e Jorge Bacelar Gouveia, da
Universidade Nova de Lisboa. Também o Desembargador Pedro Vaz Patto, Presidente
da Comissão Nacional Justiça e Paz, o Dr. José Ribeiro e Castro, a Dra. Teresa
de Melo Ribeiro e muitos outros. Que fique claro que o PR promulgou porque
quis: não foi obrigado e, juridicamente falando, podia não o ter feito.
– Não em virtude
da Constituição …
– Também em virtude da CRP, que consagra explicitamente o direito à objecção
de consciência:“É garantido o direito à objecção de consciência, nos termos da
lei.” (Artº 41, nº 6). Todos têm este direito, o Chefe de Estado também.
Como nesta questão foi dada, aos deputados do PS e do PSD, liberdade de voto,
agiram em função da sua própria consciência. Não seria razoável, portanto, que
o PR, que tem uma legitimidade política própria, superior à de qualquer
deputado, fosse o único cidadão que não pudesse invocar um direito fundamental
reconhecido a todos pela Constituição!
– Sim, mas se
não promulgasse a eutanásia, outro o faria em seu nome, como aconteceu na
Bélgica, quando o Rei Balduíno se recusou a promulgar a lei do aborto.
– Quando, a 18-3-2001, disseram isso a Johannes Rau, o
então Presidente da República Federal Alemã respondeu que isso era “a expressão
da capitulação ética”! (Aceprensa, 30-5-2001). Mesmo que o PR, como o Rei
Balduíno, não possa impedir a promulgação de uma tão aberrante lei, podia e
devia dar testemunho de respeito pela vida humana e de coerência cristã, como
esperavam os seus eleitores, que agora se sentiram traídos ou, pelo menos,
defraudada a confiança nele depositada.
– No entanto,
o Presidente sacudiu a água do capote, dizendo que tinha jurado cumprir a CRP
e, por isso, tinha que promulgar a lei da eutanásia …
– Insisto: é uma contradição apelar à Constituição,
para justificar o cumprimento de uma sua norma, violando a Constituição numa
sua garantia fundamental! Se os deputados querem legalizar o homicídio a
pedido, tenham a honestidade de reformar a CRP, como no Observador escreveu
recentemente José Ribeiro e Castro (Requiem
pelo artigo 24º, 15-5-2023). Esta atitude política
lembra a duplicidade dos fariseus, que não tiveram inconveniente em pedir a
morte do inocente Jesus, mas não entraram no pretório de Pôncio Pilatos, para
não se contaminarem … (Jo 18, 28).
– Quer isso dizer que um cristão não está obrigado a
cumprir o que jurou?
– Claro que está, excepto se o que se lhe pede é um
crime! Herodes jurou, à filha da amante, que lhe daria o que ela lhe pedisse,
mesmo que fosse a metade do seu reino. Quando esta, instigada pela mãe, pediu a
cabeça de João Baptista, Herodes não estava obrigado a cometer esse crime (Mt
14, 1-12). Nem podia, depois, dizer que não era moralmente responsável pela
morte do mártir, à conta do juramento que tinha feito e que se limitou a
cumprir! Isto não é política, em que, como é óbvio, não me meto, mas moral!
– Não é esse um
caso extremo?
– Não, porque esse foi também o exemplo de todos os
cristãos coerentes, como o Rei Balduíno e o Presidente da República de Malta,
que se recusaram a legalizar aborto, bem como São Tomás More que, por isso, é o
padroeiro dos políticos verdadeiramente católicos. Pelo contrário, os
governantes e militares nazis desculparam-se das atrocidades que cometeram,
dizendo que a isso estavam obrigados, por dever de ofício e pelo seu juramento
de fidelidade a Hitler! Em termos éticos, ninguém está obrigado a obedecer
nesses casos; está, até, em consciência, obrigado a desobedecer, como alguns
fizeram, com grande heroísmo.
– E agora, Senhor
Cónego, que nos resta??
– Como disse o Papa Francisco, é “muito triste” que, “no
país onde apareceu Nossa Senhora”, tenha sido “promulgada uma lei para matar”.
Também a Conferência Episcopal Portuguesa, em nota de 17-5-23, “lamenta
profundamente” a legalização da eutanásia e do suicídio assistido, em virtude
de uma lei que deixou a vida humana “desprotegida” e constitui “um grave
atentado ao seu valor e dignidade”.
Resta-nos rezar e
esperar que uma nova maioria revogue esta lei injusta. Mas, entretanto, há que
lamentar quantos venham a ser, por este meio, legalmente mortos, por culpa dos
deputados que aprovaram esta lei, dos juízes do TC que não declararam a sua
inconstitucionalidade e do PR que, ao promulgar este diploma, o fez seu. Também
há que lamentar que médicos sem escrúpulos possam vir a aplicar esta lei,
violando o juramento de Hipócrates, como outros violaram a Constituição e, o
que é mais grave, o 5º Mandamento da Lei de Deus: “Não matarás!” (Ex
20, 13; Mt 5, 21). Todos – sobretudo o PS e o PR – serão
moralmente responsáveis pelas mortes medicamente provocadas: que terrível
responsabilidade diante de Deus e da História!
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