terça-feira, 2 de maio de 2023

Um bonito Requiem

 

De bem sentida homenagem.

O Paulo dava-me os livros que tinha em duplicado

O Paulo [Tunhas] tinha tantos livros mas tantos livros que não admira que os duplicasse. Mas admirava-me mais que não os duplicasse muito mais e que soubesse tão bem que livros tinha.

ALEXANDRA ABRANCHES Professora do Departamento de Filosofia da Universidade do Minho

OBSERVADOR, 01 mai. 2023, 00:1515

O Paulo tinha muitos defeitos. Se mais se menos do que toda a gente, não sei. Não sou contabilista. Tenho pena de não ser contabilista. Podia agora saber o exacto número de horas que passei ao telefone com o Paulo, o telefone fixo, a dizer mal e bem de tudo e todos. E a quantidade de horas que passei no meio dos livros do Paulo, a falar de livros. Mais a quantidade de horas que passei com o Paulo a ouvir música, a ser informada detalhada, minuciosamente das virtudes divinas da cantora que no momento lhe arrebatava as paixões.

O Paulo foi de propósito a França assistir a um concerto da Patricia Petibon, com acesso à estrela meio disfarçado de jornalista, e levou um pequeno texto cuidadosamente trabalhado para lhe entregar, um texto com humor mas intensidade suficiente para impressionar qualquer Patrícia. Disse-me que ela lhe sorriu de uma maneira especial e só pode ser verdade. O Paulo preparou-se meses para um encontro de segundos com uma diva da ópera. Um olhar da Patricia Petitbon deu ao Paulo alento para cinquenta histórias de amor arrebatado e felicidade para sempre, escrita nas estrelas, nos maços de tabaco, nas leis da história, nas certezas optimistas, na luz da farmácia do outro lado da rua ou nas letras da estação dos correios da esquina.

Tinha muitas paixões, o Paulo, porque tinha muita imaginação. Podia saber o número delas, mas não sei. Um número suficientemente alto para dar mais horas de conversa em muitos almoços e jantares. Muitas horas e muitas gargalhadas porque, já sugeri acima, o Paulo ria-se imenso. Sabia identificar o ridículo com a paixão monotemática de um entomologista, com a diferença de que o Paulo não era monotemático.

Há que acrescentar a todas estas as horas que passei a fazer de chauffer, porque o Paulo não guiava. O Paulo não tinha carta. O Paulo era um homem de táxis e amigos. Várias vezes fui eu o amigo disponível para levá-lo à Foz do Neiva, o lugar de veraneio do Paulo. Não conseguiu convencer-me a gostar de lampreia, ou a aceitar que em Hobbes não existe um direito de resistência e que em Hume os sentimentos calmos são a mesma coisa que a razão. Então preciso de somar as horas passadas a discordar, porque também foram muitas.

O Paulo dava-me os livros que tinha em duplicado. Porque o Paulo tinha tantos livros mas tantos livros que não admira que os duplicasse. Mas admirava-me mais que não os duplicasse muito mais e que soubesse tão bem que livros tinha. Para mal do meu interesse próprio porque, como disse, o Paulo dava-me os livros que tinha em duplicado.

Vou deixar a soma por aqui. Ainda é muito cedo e o choque ainda é muito grande. Muitas horas ficariam de fora se continuasse. Muitas horas só virão juntar-se à soma nos dias, meses, anos daqui em diante. E agora que, ao contrário do que devia ser, não vai existir nem mais um minuto, preciso de recolhê-las todas. Até ao último segundo que demora uma diva olhar de relance para um filósofo enamorado.

FILOSOFIA    CULTURA    LIVROS    LITERATURA

COMENTÁRIOS:

Peter Leash: Obrigado pela partilha. Era, de certeza, um homem bom e especial 

Maria Paula Silva: Que amizade tão bonita! Que homenagem tão bonita! Um texto bonito que revela uma profunda sensibilidade. Abraço.

Henrique Valente: Bonita homenagem. Uma ou duas semanas antes de falecer um colega do observador fez lhe o seguinte elogio “ nos dias maus o Paulo Tunhas é dos melhores cronistas em Portugal”. Ficam os textos para o imortalizar, algo a que poucos de nós poderão ambicionar.

Maria José Varela: Texto tão inteligente e tão bonito.

MARIA JOÃO FERNANDES: https://observador.pt/opiniao/uma-felicidade-patricia-petibon/amp/ Ocasião para voltar a agradecer.

Carlos Chaves > MARIA JOÃO FERNANDES: Obrigado pelo endereço, esta magnífica crónica tinha-me escapado, e vou seguir o conselho que o Paulo Tunhas nela deixou.  

Francisco Almeida > MARIA JOÃO FERNANDES: Agradeço o "link" pois não conhecia essa crónica. Crónica que me deixou maravilhado pois só poderia ter sido escrita por um homem profundamente apaixonado. Infelizmente mais nada posso aproveitar para além do texto, Há muito que ultrapassei a idade das paixões e há muito que fiquei surdo.

Cupid Stunt: Gostei bastante 🙂

Carlos Chaves: Que bonito e emocionante texto, Alexandra Abranches obrigado pela partilha. 

Seknevasse: Excelente texto. Conheci-o  apenas atraves do Observador, mas acho que foi uma  brilhante inteligencia, sabia pensar! Uma razao mais para assinar o jornal. Gosto desta: "Tinha muitas paixões, o Paulo, porque tinha muita imaginação." parece obvio, mas não é, até se ler...

Joaquim Almeida: Texto tão bonito em memória de um exemplar amante da sabedoria, luminoso e sereno. 

Meio Vazio: Passe a banalidade, o leitor do Observador fica bem mais pobre; apaga-se prematura e infelizmente um dos cinco motivos que têm justificado a minha permanência por aqui. Que descanse em paz.

Nuno Salgueiro: Um texto belíssimo para um ser humano especial.

Cisca Impllit > Nuno Salgueiro: Sim.

Ivan Simões: Muita força neste momento! Sem o conhecer e a ler todas as semanas, sinto um vazio.

 

Nenhum comentário: