De bem sentida homenagem.
O Paulo dava-me os livros que tinha em duplicado
O Paulo [Tunhas] tinha tantos livros mas
tantos livros que não admira que os duplicasse. Mas admirava-me mais que não os
duplicasse muito mais e que soubesse tão bem que livros tinha.
ALEXANDRA ABRANCHES Professora
do Departamento de Filosofia da Universidade do Minho
OBSERVADOR, 01 mai. 2023, 00:1515
O Paulo tinha muitos defeitos. Se mais
se menos do que toda a gente, não sei. Não sou contabilista. Tenho pena de não
ser contabilista. Podia agora saber o exacto número de horas que passei ao
telefone com o Paulo, o telefone fixo, a dizer mal e bem de tudo e todos. E a
quantidade de horas que passei no meio dos livros do Paulo, a falar de livros.
Mais a quantidade de horas que passei com o Paulo a ouvir música, a ser
informada detalhada, minuciosamente das virtudes divinas da cantora que no
momento lhe arrebatava as paixões.
O Paulo foi de propósito a França
assistir a um concerto da Patricia Petibon, com acesso à estrela meio
disfarçado de jornalista, e levou um pequeno texto cuidadosamente trabalhado
para lhe entregar, um texto com humor mas intensidade suficiente para
impressionar qualquer Patrícia. Disse-me que ela lhe sorriu de uma maneira
especial e só pode ser verdade. O Paulo preparou-se meses para um encontro de
segundos com uma diva da ópera. Um olhar da Patricia Petitbon deu ao Paulo
alento para cinquenta histórias de amor arrebatado e felicidade para sempre,
escrita nas estrelas, nos maços de tabaco, nas leis da história, nas certezas
optimistas, na luz da farmácia do outro lado da rua ou nas letras da estação
dos correios da esquina.
Tinha muitas paixões, o Paulo, porque
tinha muita imaginação. Podia saber o número delas, mas não sei. Um número
suficientemente alto para dar mais horas de conversa em muitos almoços e
jantares. Muitas horas e muitas gargalhadas porque, já sugeri acima, o Paulo
ria-se imenso. Sabia identificar o ridículo com a paixão monotemática de um
entomologista, com a diferença de que o Paulo não era monotemático.
Há que acrescentar a todas estas as
horas que passei a fazer de chauffer, porque o Paulo não guiava. O Paulo
não tinha carta. O Paulo era um homem de táxis e amigos. Várias vezes fui eu o
amigo disponível para levá-lo à Foz do Neiva, o lugar de veraneio do Paulo. Não
conseguiu convencer-me a gostar de lampreia, ou a aceitar que em Hobbes não
existe um direito de resistência e que em Hume os sentimentos calmos são a
mesma coisa que a razão. Então preciso de somar as horas passadas a discordar,
porque também foram muitas.
O Paulo dava-me os livros que tinha em
duplicado. Porque o Paulo tinha tantos livros mas tantos livros que não admira
que os duplicasse. Mas admirava-me mais que não os duplicasse muito mais e que
soubesse tão bem que livros tinha. Para mal do meu interesse próprio porque,
como disse, o Paulo dava-me os livros que tinha em duplicado.
Vou deixar a soma por aqui. Ainda é
muito cedo e o choque ainda é muito grande. Muitas horas ficariam de fora se
continuasse. Muitas horas só virão juntar-se à soma nos dias, meses, anos daqui
em diante. E agora que, ao contrário do que devia ser, não vai existir nem mais
um minuto, preciso de recolhê-las todas. Até ao último segundo que demora uma
diva olhar de relance para um filósofo enamorado.
FILOSOFIA CULTURA LIVROS LITERATURA
COMENTÁRIOS:
Peter Leash: Obrigado pela partilha. Era, de certeza, um homem bom
e especial
Maria Paula Silva: Que amizade tão bonita! Que homenagem tão bonita! Um
texto bonito que revela uma profunda sensibilidade. Abraço.
Henrique Valente: Bonita homenagem. Uma ou duas semanas antes de
falecer um colega do observador fez lhe o seguinte elogio “ nos dias maus o
Paulo Tunhas é dos melhores cronistas em Portugal”. Ficam os textos para o
imortalizar, algo a que poucos de nós poderão ambicionar.
Maria José Varela: Texto tão
inteligente e tão bonito.
MARIA JOÃO FERNANDES: https://observador.pt/opiniao/uma-felicidade-patricia-petibon/amp/ Ocasião
para voltar a agradecer.
Carlos Chaves > MARIA JOÃO FERNANDES: Obrigado
pelo endereço, esta magnífica crónica tinha-me escapado, e vou seguir o
conselho que o Paulo Tunhas nela deixou.
Francisco Almeida > MARIA
JOÃO FERNANDES: Agradeço o "link" pois não conhecia essa
crónica. Crónica que me deixou maravilhado pois só poderia ter sido escrita por
um homem profundamente apaixonado. Infelizmente mais nada posso aproveitar para
além do texto, Há muito que ultrapassei a idade das paixões e há muito que
fiquei surdo.
Cupid Stunt: Gostei bastante 🙂
Carlos Chaves: Que bonito e emocionante texto, Alexandra Abranches
obrigado pela partilha.
Seknevasse: Excelente texto. Conheci-o apenas atraves do
Observador, mas acho que foi uma brilhante inteligencia, sabia pensar!
Uma razao mais para assinar o jornal. Gosto desta: "Tinha muitas paixões,
o Paulo, porque tinha muita imaginação." parece obvio, mas não é, até se
ler...
Joaquim Almeida: Texto tão
bonito em memória de um exemplar amante da sabedoria, luminoso e sereno.
Meio Vazio: Passe a
banalidade, o leitor do Observador fica bem mais pobre; apaga-se prematura e
infelizmente um dos cinco motivos que têm justificado a minha permanência por
aqui. Que descanse em paz.
Nuno Salgueiro: Um texto
belíssimo para um ser humano especial.
Cisca Impllit > Nuno
Salgueiro: Sim.
Ivan Simões: Muita força neste momento! Sem o conhecer e a ler
todas as semanas, sinto um vazio.
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