Tal atraso espiritual que revelam as
“teorias woke” de hoje, de pura dualidade mesquinha e torpe, tendo em conta
tanta evolução até este século - apesar do retrocesso que a falta de leitura,
talvez, tem provocado entre nós, suplantada pelo comodismo do apontamento
digital e visual, impeditivos, aparentemente, de uma realização própria mais
esforçada, porque propensa à imaturidade e ao desleixo, pelo menos manual,
embora traduzido em imediatez de visibilidade e reconhecimento.
Mas estes textos magistrais, como os de Jaime Nogueira Pinto, deviam ser
apresentados nas edições escolares, como textos indispensáveis para um apoio
moral e científico dos nossos estudantes, ponto de partida para uma reflexão
mais sadia e sem falcatrua mental, na unilateralidade dos seus desígnios.
Os novos maniqueístas
Para todo o que cumpre os preceitos, as
rezas e as devoções da nova Vulgata, a salvação; para todo o que ousa resistir
ou discordar, alcatrão e penas.
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do
Observador
OBSERVADOR, 27
mai. 2023, 00:1825
Como lembrou Carl Schmitt, grande parte dos conceitos políticos
modernos são conceitos religiosos secularizados. De facto, do Rei pela graça de Deus do Ancien
Régime à sacralização rousseauniana da vontade
geral, ou da vontade
do povo; do Sermão da Montanha e da Revelação
de um Pai comum a irmanar a humanidade ao discurso utópico e igualitário
construído a partir da sua laicização, temos muito por onde escolher.
Um
dos traços desta secularização é a transposição para a política, para a acção
política, para a luta política, das categorias absolutas de Bem e de Mal. O
dualismo Luz e Trevas, Deus e Diabo, entraram em força no mundo político com a
cristianização do império romano e a romanização do cristianismo a partir de
Constantino. Como no mundo helénico havia um cosmos e um caos, assim também
na Idade Média passava a haver um
mundo cristão e um mundo pagão, separados pelas fronteiras do Bem e do Mal.
Depois, no século VII, com Maomé e o mundo islâmico, viria outro dualismo.
A evolução no Ocidente foi no sentido da separação progressiva da
religião e da política, do poder espiritual e do poder temporal. Por algum tempo, na luta entre o Papado e
o Império, no coração da Idade Média, quer o Papa, quer o Imperador quiseram
chamar a si os dois gládios. Mas fracassaram e, com o seu fracasso, contribuíram para a autonomia e consolidação do
Estado soberano como forma vencedora de organização do poder
político-territorial nos reinos que floresceram na Europa a partir dos séculos
XV e XVI.
Mani e os Maniqueus
Mani nasceu
na Babilónia no século III. Vinha de uma seita de judeus cristianizados e
inscrevia-se, como profeta, numa linhagem ecléctica que começava em Adão,
passava por Buda e Zoroastro, e chegava a Jesus. Mani queria ser o arauto de uma nova revelação que
fundasse uma religião unificadora de todas as outras. Teve várias visões e a
sua pregação ganhou o favor político do soberano. Mas não acabou bem.
O maniqueísmo é uma forma de gnosticismo: há uma luta eterna entre o
Bem e o Mal, o Espírito e a Matéria, o Reino da Luz e o Reino das Trevas e,
entre estes pólos, não há conciliação nem reconciliação possível. Este mundo é
uma espécie de degredo e de exílio, de onde os bons voltarão ao Paraíso e os
maus entrarão no circuito da reencarnação, passando por sucessivas mutações até
se redimirem.
No mundo tradicional, o maniqueísmo
em relação a ideias, crenças e comportamentos, a separação radical de Bem e
Mal, a exclusão dos dissidentes, a proibição da palavra e da formulação de
alternativa, estiveram do lado do Estado e da Igreja que, por vezes, coincidiam
na linha de poder. A virtude
identificava-se com a ordem e a lei e estas defendiam-se preventivamente,
proibindo e reprimindo. Em nome de Deus e do Rei.
No século XVI, uma geração de
escritores políticos realistas – com Maquiavel
à cabeça, mas também com os seus
contemporâneos e amigos Francesco Guicciardini e Francesco Vettori – trouxe uma análise diferente, não
maniqueia, às coisas políticas. A Itália de então, com as suas repúblicas
independentes, com os seus condottieri passados a senhores das cidades, com os
Estados papais, com o Reino de Nápoles, era um microcosmos de uma Europa que,
apesar de tudo, sempre admitiu valores contraditórios e até progrediu nessa
dialéctica.
Com a Reforma luterana e as
guerras civis subsequentes, nos países
que se dividiram, como a França, ou nas monarquias nórdicas, onde a Reforma
triunfou, voltou a imperar
a ideia de Bem e de Mal absolutos. Os protestantes, onde venciam,
passavam a proibir e a reprimir, fazendo aos católicos o mesmo que os católicos
lhes faziam em Espanha e em Portugal, com a Inquisição. E se
Maria Tudor, a Bloody Mary, perseguira os protestantes, a sua meia-irmã, Isabel
I de Inglaterra, seria igualmente sanguinária na perseguição aos católicos.
Houve mártires dos dois lados.
E assim continuaria a ser, quando às
religiões sucederam as ideologias. Em meia dúzia de meses de
Terror, a Revolução Francesa, feita em nome da Liberdade, perseguiu o Trono e o
Altar, e até o povo crente, e executou na guilhotina mais gente por crimes
políticos do que o Ancien Régime durante todo o século XVIII. Robespierre, melhor
que ninguém, explicou que os reinos da Virtude implicavam e justificavam o
Terror para os não-virtuosos. Os bolcheviques fariam o
mesmo e, mais uma vez, em poucos meses, as Tchecas matariam
mais do que a política czarista – a Okhrana – durante
todo o século XIX. À nossa
escala modesta e de brandos costumes, também o regime democrático conseguiria a
proeza de, em Outubro de 1974, ter mais presos políticos do que aqueles que
estavam nas prisões do Estado Novo no dia 25 de Abril.
Eça de Queiroz, quando imaginava um futuro longínquo (aí
para o século XXVIII) em que os seus pobres netos passariam “ao estado de raça
maldita” e morreriam “nos suplícios”, pagando pelo “gozo que nós,
conservadores, temos hoje de triturar os Messias socialistas”, falava, já não
da laicização política da religião, mas da elevação da filosofia política a
religião e dos seus “santos padres” a Messias – seguidos por fiéis, furiosos e
maniqueus, ávidos de extermínio:
“Talvez
um dia, quando o socialismo for religião do Estado, se vejam em nichos de
templo, com uma lamparina na frente, as imagens dos Santos Padres da revolução:
Proudhon de óculos, Bakounine parecendo um urso sob as suas peles russas, Karl
Marx apoiado ao cajado simbólico do pastor d’almas.”
O maniqueísmo, na forma moderna que assumiu, ainda que se situe para além
de Deus e do Diabo, insiste em traçar linhas vermelhas entre bons e maus que
tendem a exceder em zelo anteriores fanatismos:
quem não pensa de acordo com os cânones correctos – intelectuais, culturais,
éticos ou políticos – é um agente das Trevas e do Mal a liquidar; um doente (um
“fóbico”) a interditar, um obstáculo ao futuro radioso da humanidade, do reino
animal e do planeta que não vale o Co2 que emite.
É
um processo mental indissociável das formas tradicionais de terrorismo,
conservadoras ou revolucionárias, que parte da maldade intrínseca dos
dissidentes do pensamento único, instituído ou a instituir. Os inquisidores
espanhóis do século XVI, os jacobinos do Terror de 93 e os bolcheviques de 17
pensavam assim, e é assim que pensam os seus discípulos – só que, por ainda
vivermos em regimes constitucionais, não podem queimar os hereges,
como os torquemadas, guilhotinar os aristocratas, como os convencionais de
Robespierre, ou enterrar vivos os camponeses contrarrevolucionários, como
alguns tchequistas mais imaginativos.
A minha experiência de católico
pecador com muitos anos de luta política – embora não partidária – ensinou-me
que há boas causas servidas por pessoas “más” e causas más servidas por pessoas
“boas”, e que todos somos um “misto de trevas e brilho” (ainda que a
percentagem de trevas a que resistimos ou a que cedemos não seja de todo
indiferente).
Os maniqueus não pensam assim: escolhem um fim a atingir e, para que
possa justificar todos os meios, transformam-no em verdade “cientificamente” revelada;
elegem um grupo de vítimas e de iluminados, e condenam todos os outros às
trevas.
É de maniqueísmo o tempo que vivemos, um
maniqueísmo que se alimenta da crescente ignorância das elites e do povo; um
maniqueísmo que já não canoniza pensadores, mas “minorias” e comissários. Para todo o que cumpre os preceitos, as rezas e as
devoções que constam da nova Vulgata, a salvação; para todo o
que ousa resistir ou discordar, alcatrão e penas. É este o maniqueísmo que soma
e segue perante o encolher de ombros da maioria crítica, que se limita a dizer
que chegámos ao manicómio.
E chegámos. Ou não fossemos todos sendo,
à vez, diagnosticados como “fóbicos”,
porque patologicamente resistentes aos mais desvairados “progressos”; como
“populistas doentios”, porque obcecados em denunciar o alheamento do bem
público (e o alienamento dos bens públicos); como “iliberais exacerbados”,
porque cegos ao exemplar funcionamento das instituições democráticas; ou
como “racistas abjectos”,
porque só denegrindo alguém podem branquear-se os colarinhos dos comissários do
Bem.
A SEXTA COLUNA POLÍTICA POLITICAMENTE CORRETO SOCIEDADE
COMENTÁRIOS (de 25):
Isabel Amorim: Como sempre muito lúcido como há poucos.
Aterradoramente verdade....
Pedro de Freitas Leal: Muito profundo e cheio de ensinamentos. Jaime, o meu
sentido obrigado! Rui
Lima: De uma qualidade
que não acontece no nosso dia a dia está para la da espuma dos dias, que fique
por muitos anos , também tenho o prazer do o ler na revista “ Crítica XXI , que aconselho . A Sameiro: Que pena que isto não seja lido
por muita gente! Um belo "naco" de prosa! Eduardo L: Excelente! Infelizmente, dada a ignorância que grassa,
não estou certo de que muita gente se dê conta da profundidade e actualidade
deste artigo. Exemplos
recentes de pensamento único, certo e errado, bem e mal: covidismo, alterações
climáticas, wokismo, conflito na Ucrânia. Quem ousar sequer emitir uma opinião
ou mesmo um relato de factos que não esteja de acordo com a narrativa oficial,
o Bem, é imediatamente catalogado de apologista do Mal. E assim vamos andando
em direção a regimes totalitários.
Simplesmente
Maria 8 h: Grandes
ensinamentos Senhor Professor. De facto esta espécie nunca mais foi feliz desde o
momento em que descobriu que não domina o incomensurável. Por isso se tornou
medrosa e religiosa.
Manuel Gonçalves: 9 h Excelente exposição. vitor Manuel 10 h: Aterrador
e verdadeiro. Também bolcheviques nada caucasianos assassinaram milhares de
portugueses guineenses, enterrando-os vivos com o apoio implícito da canalha
Sinistra. José
Miranda: Excelente! Carlos Grosso:
Os meus alunos vão às minhas aulas
aprender matemática. Alguns
aprendem-na espontaneamente, outros são "levados" a aprender. Quer uns quer outros, depois da aula, ficam
satisfeitos, excetuando alguma parte infinitesimal que não se faz notar. Eu venho, espontaneamente, às aulas de JNP e termino-as
com enorme gosto em ter aprendido ou reforçado conhecimentos e pensamentos. Obrigado, Professor. Alberto Pereira: Mais uma lição. É a Universidade de Sábado. Hipo Tanso 14 h : Artigo
que tresanda a sabedoria, estudo, inteligência e reflexão. JNP sobressai no
panorama do jornalismo nacional ao recusar a abordagem superficial que parece
ter-se tornado norma. José
Carvalho: O maniqueísmo é uma doença, antiga e
moderna, da humanidade. Está presente nos múltiplos exemplos assinalados neste
excelente artigo, mas também - e até - nas discussões futebolísticas: a minha ideologia é a única
que conduz à felicidade; o meu partido sempre terá o meu voto; o meus deus é o único e o resto é lixo; o meu
país é o mais belo do mundo; o meu clube é o melhor e os penalties contra nós
são sempre inventados pelo árbitro. Há que ser consciente desta doença para dar
passo a um mundo de tolerância e respeito pelos outros. Maria Nunes:
16 h JNP, obrigada
por mais um brilhantissimo artigo. GateKeeper 16 h: Muito, muito, mesmo muito BOM, caro JNP. O fim de
"outra Era" da longa História da Humanidade está a finar-se, a olhos
vistos. "Bem e Mal" esboroam-se nas fotos, quase indistintos aos
nossos olhos, cheios do virtual & artificial, focados nos ecrãs da nossa
desgraça.
Coronavirus corona: Excelente
crónica. Poderíamos acrescentar o puritanismo cátaro que seguiu essa mesma
linha de pensamento. A igreja católica foi sempre uma trave mestra que impede
que reavaliemos para fanatismos puritanos. Diogo: Será possível num país na União Europeia irromper uma
revolução? E será possível num país da NATO (com o enorme crescimento de
importância que a Rússia lhe deu) irromper uma revolução? E se sim quais as
probabilidades de êxito, tendo em conta que a maior parte dos países onde se
nota muito mais efervescência estão amarrados a dívidas privadas e públicas
brutais?
TIM DO Á > diogo: Esse é o ponto. Se algum país da UE ainda é
independente. Ou do Ocidente. Excluindo os EUA, que são a fonte da tirania
liberal "bem pensante" da ditadura Woke, os novos donos da verdade e
do mundo, com a colaboração militante da esquerda, que se tornou caviar. Em Portugal, excepto o Chega, todos os partidos estão
amarrados ao totalitarismo norte americano Woke. J. Lopes > diogo: Entendo
o raciocínio e o pensamento, mas as dívidas nunca impediram esses processos, o
que as torna improváveis, ou não, são os que as controlam, ou os que sempre
enriqueceram com as revoluções e guerras. Um deles dizia: " investe quando o sangue correr
nas valetas..." Maria
Clotilde Osório: Resumo
brilhante de um final de ciclo. Ou da prova de que não teremos o "fim da
História"
Américo Silva: Muito
pertinente a sua crónica. A igreja acumulou muito saber fora da fé, como o
culto da prudência, que hoje desperdiça mergulhada em questões internas e bagatelas,
não é bom agir sem pensar, mas tudo nos convida a ligeireza e precipitação, das
redes sociais à comunicação em geral
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