domingo, 28 de maio de 2023

Não deixa de espantar


Tal atraso espiritual que revelam as “teorias woke” de hoje, de pura dualidade mesquinha e torpe, tendo em conta tanta evolução até este século - apesar do retrocesso que a falta de leitura, talvez, tem provocado entre nós, suplantada pelo comodismo do apontamento digital e visual, impeditivos, aparentemente, de uma realização própria mais esforçada, porque propensa à imaturidade e ao desleixo, pelo menos manual, embora traduzido em imediatez de visibilidade e reconhecimento.

Mas estes textos magistrais, como os de Jaime Nogueira Pinto, deviam ser apresentados nas edições escolares, como textos indispensáveis para um apoio moral e científico dos nossos estudantes, ponto de partida para uma reflexão mais sadia e sem falcatrua mental, na unilateralidade dos seus desígnios.

Os novos maniqueístas

Para todo o que cumpre os preceitos, as rezas e as devoções da nova Vulgata, a salvação; para todo o que ousa resistir ou discordar, alcatrão e penas.

JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador

OBSERVADOR, 27 mai. 2023, 00:1825

Como lembrou Carl Schmitt, grande parte dos conceitos políticos modernos são conceitos religiosos secularizados. De facto, do Rei pela graça de Deus do Ancien Régime à sacralização rousseauniana da vontade geral, ou da vontade do povo; do Sermão da Montanha e da Revelação de um Pai comum a irmanar a humanidade ao discurso utópico e igualitário construído a partir da sua laicização, temos muito por onde escolher.

Um dos traços desta secularização é a transposição para a política, para a acção política, para a luta política, das categorias absolutas de Bem e de Mal. O dualismo Luz e Trevas, Deus e Diabo, entraram em força no mundo político com a cristianização do império romano e a romanização do cristianismo a partir de Constantino. Como no mundo helénico havia um cosmos e um caos, assim também na Idade Média passava a haver um mundo cristão e um mundo pagão, separados pelas fronteiras do Bem e do Mal. Depois, no século VII, com Maomé e o mundo islâmico, viria outro dualismo.

A evolução no Ocidente foi no sentido da separação progressiva da religião e da política, do poder espiritual e do poder temporal. Por algum tempo, na luta entre o Papado e o Império, no coração da Idade Média, quer o Papa, quer o Imperador quiseram chamar a si os dois gládios. Mas fracassaram e, com o seu fracasso, contribuíram para a autonomia e consolidação do Estado soberano como forma vencedora de organização do poder político-territorial nos reinos que floresceram na Europa a partir dos séculos XV e XVI.

Mani e os Maniqueus

Mani nasceu na Babilónia no século III. Vinha de uma seita de judeus cristianizados e inscrevia-se, como profeta, numa linhagem ecléctica que começava em Adão, passava por Buda e Zoroastro, e chegava a Jesus. Mani queria ser o arauto de uma nova revelação que fundasse uma religião unificadora de todas as outras. Teve várias visões e a sua pregação ganhou o favor político do soberano. Mas não acabou bem.

O maniqueísmo é uma forma de gnosticismo: há uma luta eterna entre o Bem e o Mal, o Espírito e a Matéria, o Reino da Luz e o Reino das Trevas e, entre estes pólos, não há conciliação nem reconciliação possível. Este mundo é uma espécie de degredo e de exílio, de onde os bons voltarão ao Paraíso e os maus entrarão no circuito da reencarnação, passando por sucessivas mutações até se redimirem.

No mundo tradicional, o maniqueísmo em relação a ideias, crenças e comportamentos, a separação radical de Bem e Mal, a exclusão dos dissidentes, a proibição da palavra e da formulação de alternativa, estiveram do lado do Estado e da Igreja que, por vezes, coincidiam na linha de poder. A virtude identificava-se com a ordem e a lei e estas defendiam-se preventivamente, proibindo e reprimindo. Em nome de Deus e do Rei.

No século XVI, uma geração de escritores políticos realistas – com Maquiavel à cabeça, mas também com os seus contemporâneos e amigos Francesco Guicciardini e Francesco Vettoritrouxe uma análise diferente, não maniqueia, às coisas políticas. A Itália de então, com as suas repúblicas independentes, com os seus condottieri passados a senhores das cidades, com os Estados papais, com o Reino de Nápoles, era um microcosmos de uma Europa que, apesar de tudo, sempre admitiu valores contraditórios e até progrediu nessa dialéctica.

Com a Reforma luterana e as guerras civis subsequentes, nos países que se dividiram, como a França, ou nas monarquias nórdicas, onde a Reforma triunfou, voltou a imperar a ideia de Bem e de Mal absolutos. Os protestantes, onde venciam, passavam a proibir e a reprimir, fazendo aos católicos o mesmo que os católicos lhes faziam em Espanha e em Portugal, com a Inquisição. E se Maria Tudor, a Bloody Mary, perseguira os protestantes, a sua meia-irmã, Isabel I de Inglaterra, seria igualmente sanguinária na perseguição aos católicos. Houve mártires dos dois lados.

E assim continuaria a ser, quando às religiões sucederam as ideologias. Em meia dúzia de meses de Terror, a Revolução Francesa, feita em nome da Liberdade, perseguiu o Trono e o Altar, e até o povo crente, e executou na guilhotina mais gente por crimes políticos do que o Ancien Régime durante todo o século XVIII. Robespierre, melhor que ninguém, explicou que os reinos da Virtude implicavam e justificavam o Terror para os não-virtuosos. Os bolcheviques fariam o mesmo e, mais uma vez, em poucos meses, as Tchecas matariam mais do que a política czarista – a Okhrana – durante todo o século XIX. À nossa escala modesta e de brandos costumes, também o regime democrático conseguiria a proeza de, em Outubro de 1974, ter mais presos políticos do que aqueles que estavam nas prisões do Estado Novo no dia 25 de Abril.

Eça de Queiroz, quando imaginava um futuro longínquo (aí para o século XXVIII) em que os seus pobres netos passariam “ao estado de raça maldita” e morreriam “nos suplícios”, pagando pelo “gozo que nós, conservadores, temos hoje de triturar os Messias socialistas”, falava, já não da laicização política da religião, mas da elevação da filosofia política a religião e dos seus “santos padres” a Messias – seguidos por fiéis, furiosos e maniqueus, ávidos de extermínio:

“Talvez um dia, quando o socialismo for religião do Estado, se vejam em nichos de templo, com uma lamparina na frente, as imagens dos Santos Padres da revolução: Proudhon de óculos, Bakounine parecendo um urso sob as suas peles russas, Karl Marx apoiado ao cajado simbólico do pastor d’almas.”

O maniqueísmo, na forma moderna que assumiu, ainda que se situe para além de Deus e do Diabo, insiste em traçar linhas vermelhas entre bons e maus que tendem a exceder em zelo anteriores fanatismos: quem não pensa de acordo com os cânones correctos – intelectuais, culturais, éticos ou políticos – é um agente das Trevas e do Mal a liquidar; um doente (um “fóbico”) a interditar, um obstáculo ao futuro radioso da humanidade, do reino animal e do planeta que não vale o Co2 que emite.

É um processo mental indissociável das formas tradicionais de terrorismo, conservadoras ou revolucionárias, que parte da maldade intrínseca dos dissidentes do pensamento único, instituído ou a instituir. Os inquisidores espanhóis do século XVI, os jacobinos do Terror de 93 e os bolcheviques de 17 pensavam assim, e é assim que pensam os seus discípulos – só que, por ainda vivermos em regimes constitucionais, não podem queimar os hereges, como os torquemadas, guilhotinar os aristocratas, como os convencionais de Robespierre, ou enterrar vivos os camponeses contrarrevolucionários, como alguns tchequistas mais imaginativos.

A minha experiência de católico pecador com muitos anos de luta política – embora não partidária – ensinou-me que há boas causas servidas por pessoas “más” e causas más servidas por pessoas “boas”, e que todos somos um “misto de trevas e brilho” (ainda que a percentagem de trevas a que resistimos ou a que cedemos não seja de todo indiferente).

Os maniqueus não pensam assim: escolhem um fim a atingir e, para que possa justificar todos os meios, transformam-no em verdade “cientificamente” revelada; elegem um grupo de vítimas e de iluminados, e condenam todos os outros às trevas.

É de maniqueísmo o tempo que vivemos, um maniqueísmo que se alimenta da crescente ignorância das elites e do povo; um maniqueísmo que já não canoniza pensadores, mas “minorias” e comissários. Para todo o que cumpre os preceitos, as rezas e as devoções que constam da nova Vulgata, a salvação; para todo o que ousa resistir ou discordar, alcatrão e penas. É este o maniqueísmo que soma e segue perante o encolher de ombros da maioria crítica, que se limita a dizer que chegámos ao manicómio.

E chegámos. Ou não fossemos todos sendo, à vez, diagnosticados como “fóbicos”, porque patologicamente resistentes aos mais desvairados “progressos”; como “populistas doentios”, porque obcecados em denunciar o alheamento do bem público (e o alienamento dos bens públicos); como “iliberais exacerbados”, porque cegos ao exemplar funcionamento das instituições democráticas; ou como “racistas abjectos”, porque só denegrindo alguém podem branquear-se os colarinhos dos comissários do Bem.

A SEXTA COLUNA   POLÍTICA   POLITICAMENTE CORRETO   SOCIEDADE

COMENTÁRIOS (de 25):

Isabel Amorim: Como sempre muito lúcido como há poucos. Aterradoramente verdade....                  Pedro de Freitas Leal: Muito profundo e cheio de ensinamentos. Jaime, o meu sentido obrigado!             Rui Lima: De uma qualidade que não acontece no nosso dia a dia está para la da espuma dos dias, que fique por muitos anos , também tenho o prazer do o ler na revista “ Crítica XXI , que aconselho .               A Sameiro: Que pena que isto não seja lido por muita gente! Um belo "naco" de prosa!               Eduardo L: Excelente! Infelizmente, dada a ignorância que grassa, não estou certo de que muita gente se dê conta da profundidade e actualidade deste artigo. Exemplos recentes de pensamento único, certo e errado, bem e mal: covidismo, alterações climáticas, wokismo, conflito na Ucrânia. Quem ousar sequer emitir uma opinião ou mesmo um relato de factos que não esteja de acordo com a narrativa oficial, o Bem, é imediatamente catalogado de apologista do Mal. E assim vamos andando em direção a regimes totalitários. 

 

Simplesmente Maria 8 h: Grandes ensinamentos Senhor Professor. De facto esta espécie nunca mais foi feliz desde o momento em que descobriu que não domina o incomensurável. Por isso se tornou medrosa e religiosa.

Manuel Gonçalves: 9 h Excelente exposição.                  vitor Manuel 10 h: Aterrador e verdadeiro. Também bolcheviques nada caucasianos assassinaram milhares de portugueses guineenses, enterrando-os vivos com o apoio implícito da canalha Sinistra.                  José Miranda: Excelente!               Carlos Grosso: Os meus alunos vão às minhas aulas aprender matemática. Alguns aprendem-na espontaneamente, outros são "levados" a aprender. Quer uns quer outros, depois da aula, ficam satisfeitos, excetuando alguma parte infinitesimal que não se faz notar. Eu venho, espontaneamente, às aulas de JNP e termino-as com enorme gosto em ter aprendido ou reforçado conhecimentos e pensamentos. Obrigado, Professor.                  Alberto Pereira: Mais uma lição. É a Universidade de Sábado.                Hipo Tanso 14 h : Artigo que tresanda a sabedoria, estudo, inteligência e reflexão. JNP sobressai no panorama do jornalismo nacional ao recusar a abordagem superficial que parece ter-se tornado norma.             José Carvalho: O maniqueísmo é uma doença, antiga e moderna, da humanidade. Está presente nos múltiplos exemplos assinalados neste excelente artigo, mas também - e até - nas discussões futebolísticas: a minha ideologia é a única que conduz à felicidade; o meu partido sempre terá o meu voto; o meus deus é o único e o resto é lixo; o meu país é o mais belo do mundo; o meu clube é o melhor e os penalties contra nós são sempre inventados pelo árbitro. Há que ser consciente desta doença para dar passo a um mundo de tolerância e respeito pelos outros.                Maria Nunes: 16 h JNP, obrigada por mais um brilhantissimo artigo.                   GateKeeper 16 h: Muito, muito, mesmo muito BOM, caro JNP. O fim de "outra Era" da longa História da Humanidade está a finar-se, a olhos vistos. "Bem e Mal" esboroam-se nas fotos, quase indistintos aos nossos olhos, cheios do virtual & artificial, focados nos ecrãs da nossa desgraça.

Coronavirus corona: Excelente crónica. Poderíamos acrescentar o puritanismo cátaro que seguiu essa mesma linha de pensamento. A igreja católica foi sempre uma trave mestra que impede que reavaliemos para fanatismos puritanos.                Diogo: Será possível num país na União Europeia irromper uma revolução? E será possível num país da NATO (com o enorme crescimento de importância que a Rússia lhe deu) irromper uma revolução? E se sim quais as probabilidades de êxito, tendo em conta que a maior parte dos países onde se nota muito mais efervescência estão amarrados a dívidas privadas e públicas brutais?              TIM DO Á > diogo: Esse é o ponto. Se algum país da UE ainda é independente. Ou do Ocidente. Excluindo os EUA, que são a fonte da tirania liberal "bem pensante" da ditadura Woke, os novos donos da verdade e do mundo, com a colaboração militante da esquerda, que se tornou caviar. Em Portugal, excepto o Chega, todos os partidos estão amarrados ao totalitarismo norte americano Woke.         J. Lopes > diogo: Entendo o raciocínio e o pensamento, mas as dívidas nunca impediram esses processos, o que as torna improváveis, ou não, são os que as controlam, ou os que sempre enriqueceram com as revoluções e guerras. Um deles dizia: " investe quando o sangue correr nas valetas..."                Maria Clotilde Osório: Resumo brilhante de um final de ciclo. Ou da prova de que não teremos o "fim da História"               Américo Silva: Muito pertinente a sua crónica. A igreja acumulou muito saber fora da fé, como o culto da prudência, que hoje desperdiça mergulhada em questões internas e bagatelas, não é bom agir sem pensar, mas tudo nos convida a ligeireza e precipitação, das redes sociais à comunicação em geral

 

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