No velho argumento “racional” pascalino
de que “o coração tem razões que a razão
desconhece”, o qual, evoluindo em termos de amadurecimento moral, tão
expressivo hoje nos discursos da sensibilidade, descamba, por vezes, também, em
saliência muscular, que as leis físicas da matéria demonstram possuir gabarito vitorioso
nestes tempos essencialmente de afectos e de folclore, com, além disso, muitas tatuagens
de permeio, para uma representatividade de saliência igualmente emotiva e muito
pessoal, essa.
O que é isso de descolonizar o conhecimento? – Parte II
O paradigma identitário afasta a
utilização de ferramentas aperfeiçoadas durante séculos, como o raciocínio
lógico, a procura pela objectividade, o conhecimento como troca de argumentos e
explicações.
PATRÍCIA FERNANDES
Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho e na
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
OBSERVADOR, 31
jul. 2023, 00:181
Em As Identidades Assassinas, o escritor Amin Maalouf procura compreender o fenómeno complexo da
identidade, considerando o crescimento das animosidades civilizacionais que
eram já notórias no final do século XX e que se agravaram no novo século. De acordo com Maalouf, o ressentimento que
certas identidades sentem pela modernidade e pelo Ocidente deve-se ao facto de
este ter avançado muito rapidamente, em resultado das enormes proezas
científicas e tecnológicas da modernidade, enquanto as restantes civilizações
pareciam estagnar – o que gerou um forte conflito entre modernização e
identidade: “Como podemos modernizar-nos sem perder a
nossa identidade?; Como assimilar a cultura ocidental sem renegar a nossa
própria cultura?; Como adquirir o saber-fazer do Ocidente sem ficar à sua
mercê?”
O
avanço tecnológico e científico legitimou, de facto, o
processo de colonização do século XIX,
entendido como a missão dos europeus enquanto projecto civilizador, e deu
origem à oposição entre povos civilizados e povos bárbaros ou primitivos –
embora, e como sempre acontece no trama complexo da vida real, esta visão tenha
convivido com uma romantização dos povos selvagens, muito na tradição de Jean-Jacques Rousseau e do seu elogio, no Segundo Discurso, à liberdade
dos selvagens por oposição às dependências, sociais e materiais, dos civilizados.
Esta
missão civilizadora do Ocidente partia da ideia de que os valores e o conhecimento
europeus eram universais e objectivamente bons, pelo que deveriam ser adoptados
globalmente, não só em termos ético-políticos (e
é por isso que falamos em Declaração Universal dos Direitos Humanos), mas também em termos científicos, com as universidades
a adoptarem os princípios, as teorias e os valores da ciência moderna. A
consequência foi ter-se relegado para as margens outras tradições e formas de
conhecimento – fenómeno que
Boaventura de
Sousa Santos designa como epistemicídio.
Como vimos na Parte I,
é esta mentalidade colonialista que os estudos pós-coloniais pretendem
desconstruir para que se possa afirmar uma descolonização completa – pelo que o argumento identitário exige o
reconhecimento de que a Razão, a Ciência e o Conhecimento são fruto, não de
conquistas humanas universais, mas do Ocidente e da branquitude. Como tal, os
princípios de justiça social exigem
uma revisão conceptual da natureza e conteúdo do conhecimento, bem como dos
seus modos de produção.
As ferramentas do amo
A ideia de revisão conceptual é
regularmente representada pela frase da poetisa Audre Lorde de que as
ferramentas do amo nunca poderão desmantelar a casa do amo: para a visão
identitária, é necessário amadurecer novas formas de falar e pensar para que o
processo de descolonização se efective. E
no que diz respeito ao conhecimento,
isso passaria por abandonar aquilo que Grada Kilomba designa como os três mitos do Ocidente branco: o mito do universal, o mito da
objectividade e o mito da neutralidade.
De acordo com o pensamento
pós-colonial e descolonizador, o conhecimento tem um carácter essencialmente
subjectivo, ou seja, o nosso modo de conhecer depende do modo pessoal como
experienciamos a realidade e não pode, por isso, ser reconduzido a uma experiência
universal. Já abordámos este argumento a propósito do conceito
de lugar de fala
e das chamadas standpoint
theories, ou teorias do ponto de vista, que defendem a ideia de que a nossa posição social condiciona o modo como percepcionamos
e experienciamos a realidade, pelo que a nossa identidade constitui a fonte de
um conhecimento específico.
Partindo deste argumento, o que o
pensamento pós-colonial defende é que 1) não é possível falar em conhecimento universal, na medida em que não
há uma experiência única do mundo e da realidade; 2) se a experiência depende
da nossa identidade também não somos objectivos quando fazemos ciência:
limitamo-nos a formalizar a nossa experiência pessoal; 3) e isto significa que
também não há neutralidade, porque a nossa visão depende dos interesses que são
mais favoráveis à nossa identidade.
Este raciocínio está no cerne do
pensamento pós-colonial, como podemos ver no manifesto do movimento Rhodes Must Fall.
É
absurdo que pessoas brancas tenham alguma coisa a dizer sobre se a estátua deve
permanecer ou não, pois elas nunca poderão empatizar com a violência profunda
que é exercida sobre a psique dos estudantes negros. A nossa dor e nossa raiva
estão no centro da razão pela qual a estátua está a ser questionada, logo esta
dor e esta raiva devem ser respondidas de um modo que apenas nós podemos
definir.
A consequência aqui defendida está em
sintonia com a ideia de experiência subjectiva do mundo: só aqueles que são
alvo de violência podem compreender verdadeiramente essa violência e por isso
apenas estes podem decidir que actos são necessários para terminar/corrigir
essa violência. E tratando-se de uma experiência subjectiva, as emoções assumem
um lugar central na discussão pública: raiva e dor substituem as obsoletas
ferramentas racionais centradas em argumentos e factos. Assim,
continua o manifesto:
Deve
ser sublinhado que a pressão para o diálogo acerca da estátua reflecte a
normalização perturbadora da colonização e da supremacia branca na UCT. Que a
presença de Rhodes seja vista como debatível mostra que a gestão [da
universidade] não leva seriamente em consideração a terrível violência
realizada contra as pessoas negras histórica e presentemente.
Importa reforçar a conclusão da
perspectiva subjectiva: se tudo depende da nossa experiência pessoal, então o
diálogo e o debate tornam-se inaceitáveis.
A impossibilidade de diálogo
Esta parece-me ser a mais perigosa consequência do argumento identitário: ele esvazia
a possibilidade de diálogo. E não digo isto naquele sentido hoje quase trivial
de que a sociedade está muito polarizada e as lutas culturais (que são
identitárias) impedem o diálogo. Digo-o
em sentido académico, não esquecendo que o fito dos movimentos pós-coloniais é
descolonizar as universidades. Vejamos porquê.
O trabalho académico, independentemente
da área a que nos referimos, traduz-se essencialmente num jogo de dar e pedir
razões (para roubar
a expressão de Wilfrid Sellars) sobre um determinado assunto. Essas razões
podem ter um caráter mais quantitativo, como acontece nas chamadas ciências
duras, e traduzir-se numa linguagem mais rígida, até numérica; ou podem ter um
caráter mais qualitativo, e ganhar forma numa linguagem mais literária. Mas o jogo é o mesmo desde a Antiguidade,
como Hannah Arendt chama a atenção em Verdade e Política:
“A
procura desinteressada da verdade tem uma longa história; a sua origem precede,
de modo característico, todas as nossas tradições teóricas e científicas,
incluindo a nossa tradição do pensamento filosófico e político. Penso que é
possível fazê-la remontar ao
momento em que Homero decidiu cantar as ações dos Troianos não menos que a dos
Aqueus, e celebrar a glória de Heitor, o adversário e o vencido, não menos que
a glória de Aquiles, o herói do seu povo. Isso nunca tinha acontecido antes […
e] é a raiz daquilo a que se chama objectividade – essa paixão curiosa,
desconhecida fora da civilização ocidental, pela integridade intelectual a
qualquer preço. Sem ela nenhuma ciência teria podido existir.”
Esta paixão pela integridade
intelectual foi aperfeiçoando o jogo
de pedir e dar razões, avaliando a força dos argumentos. O problema,
quando passamos para uma perspetiva identitária, é que a avaliação deixa de ser
feita à força dos argumentos para passar a ser feita à autoria dos
argumentos. E quando fazemos esta passagem, aquele jogo deixa de
ser possível. Utilizarei dois exemplos para tornar esta ideia clara.
O
primeiro resulta de uma linha de trabalho recorrente no domínio
identitário que é a exploração
do racismo quotidiano, como Grada Kilomba faz em Memórias da Plantação. De acordo
com esta perspectiva, os actos de racismo dependem de uma validação meramente
subjectiva da vítima, não se exigindo qualquer prova que possa ser avaliada
externamente. A consequência é que, se alguém objectar que não se tratou de uma
situação de racismo ou questionar a interpretação que foi dada ao
acontecimento, esse acto de objecção ou questionamento é entendido ele mesmo
como um acto de racismo. Não há como avaliar a força dos argumentos, uma vez
que o juízo tem uma validação meramente pessoal e aí só releva a autoria.
O segundo exemplo faz-nos regressar à polémica
em torno da leitura de Os Maias, de Eça de Queiroz, realizada
por Vanusa Vera-Cruz Lima em 2021. Propondo-se
ler a obra a partir de uma lente pós-colonial, a doutoranda identificou uma
série de passagens racistas e recomendou a utilização de notas pedagógicas
pelos professores na sua lecionação. O mundo da análise e crítica
literárias pode ser bastante fervoroso (até em Portugal) e, por esse motivo,
não é surpreendente que a sua posição e sugestão tenham sido sujeitas a
críticas e objecções. Trata-se, na verdade, do processo habitual de discussão
literária (e que replica o domínio académico): as ideias são lançadas no espaço
público e sujeitas a críticas (todos nós acompanhamos o trabalho permanente de
João Pedro Marques) – é o tal jogo de pedir e dar razões. Mas a resposta de Vanusa, num seminário sobre a descolonização do cânone literário,
é de título diferente: desvalorizou as críticas não por serem argumentos
fracos, mas porque “as pessoas que me criticaram têm cor e têm classe, com
muito privilégio”. A possibilidade de trocar argumentos fica assim esvaziada,
pois o que releva é a autoria.
(O facto de Vanusa ter reconhecido,
naquele mesmo seminário e com uma candura estarrecedora, que só tinha lido
um (1) livro de Eça levanta toda uma outra série de reflexões que se
prendem com o conceito de mérito, mas isso ficará para outro momento.)
Assim, o paradigma identitário (e
quanto de Thomas Kuhn se aplica
aqui?) afasta a possibilidade de utilizarmos as ferramentas que foram aperfeiçoadas
durante séculos, como o
raciocínio lógico, a procura pela objetividade, o conhecimento como troca de
argumentos e explicações. Em contrapartida, deveremos valorizar as emoções e a
interpretação pessoal e subjectiva para validar as experiências da realidade,
sem que elas sejam sujeitas a discussão, dúvida, contraditório. Afinal, como Grada Kilomba
diz, “explicar é fomentar uma ordem colonial.” Mas
quando não podemos conversar sobre as coisas, o que resta é violência e é por
isso que a fresta que o paradigma identitário nos abre para o seu mundo é tão
assustadora.
PS: Entrevistei o poeta e crítico
literário Eduardo Pitta na Festa da Poesia de Matosinhos, em janeiro de 2022.
Cheguei nervosa, com medo daquele nome grande da crítica literária que parecia
conhecer todos os grandes nomes e com medo de não conseguir dizer até ao fim, e
sem corar, o poema “Nunca me tinhas dito: um quarto assim”. Mas o Eduardo foi
uma simpatia e a lição que me marcou não foi literária, mas outra, ainda maior:
discordando dos exageros sanitários que a pandemia ainda impunha, disse-me: “não
se pode viver com medo”. Nesta frase
estava, na verdade, toda a sua obra e toda a sua biografia, como contada em Um rapaz a arder. Era um espírito livre e corajoso e espero
que tenha vivido até ao último momento sem medo de viver.
O mês de agosto será de descanso, para
que nos possamos dedicar a leituras mais ligeiras e chegar a setembro
intelectualmente mais revigorados para os exigentes desafios filosóficos dos
nossos dias. Desejo a todos os leitores umas boas férias!
FILOSOFA
POLÍTICA POLÍTICA RACISMO DISCRIMINAÇÃO SOCIEDADE COLONIALISMO…
COMENTÁRIOS:
Luis Miguel: O que estas pessoas querem é Poder e domínio. Querem
poder descriminar e assumir o controlo das sociedades ocidentais, Enquanto as pessoas estiverem disponíveis para aceitar
todo o tipo de disparates, sempre que alguém abana com a bandeira do racismo,
descriminação, dores do passado… mesmo que totalmente injustificadas e fora da
realidade, mas mesmo assim aceitarem a crítica e deixarem de dar e defender a
sua opinião, então isto só pode caminhar para o nosso próprio abismo. Quando
estas pessoas assumirem o Poder, tenham medo. Vejam o que se passa em várias
cidades americanas e no Reino Unido. Vejam o que se passa em várias
Universidades desses dois países. A descriminação, a violência, o racismo
contra pessoas brancas foi normalizado nesses Países, ditos evoluídos. Por isso
falem, discutam, denunciem, defendam os vossos interesses, não aceitem todo o
lixo que diariamente nos é atirado aos olhos.
Paulo Silva: Juntemos
o ressentimento do desvalido e do 'bom selvagem’ à ambição desmesurada dos que
querem transformar o mundo, (para dele se vingarem), e teremos todos os Karl
Marx, os Franz Fanons e os Boaventuras desta terra…
nota: o ênfase deste artigo na ‘subjectividade’ remete-me para um dos textos (1964) da intelectual de esquerda norte-americana, Susan Sontag, onde nos exorta a sentir mais do que a interpretar, (isto é, a racionalizar); como está em osmose com o ar dos tempos.
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