A
ficção cinematográfica em minimização da realidade, a realidade de drones
minúsculos parecendo ficção, os Estados Unidos em foco sempre. Um formidável
libelo contra a insensibilidade e a desumanização – ou antes infantilização-
nestas lutas absurdas pelo poder - financeiro, ou da criatividade - sem dogmas
sequer morais. Uma análise realista bem pertinente, a deste excelente texto do escritor
e argumentista Alexandre Borges.
I - Barbie e a bomba atómica
Tudo desapareceu na dita nuvem
cor-de-rosa, onde J. Robert Oppenheimer é só mais um boneco ao lado de Ken, e a
possibilidade da bomba H um novo acessório para a casa da Barbie.
ALEXANDRE BORGES Escritor e
argumentista
OBSERVADOR, 27
jul. 2023, 00:191
A vida é um hashtag. Ou cabe num e
se propaga por milhões ou desaparece rapidamente entre os pixels da existência
como se nunca tivesse vindo ao mundo.
A estreia simultânea de dois dos
filmes mais caros do ano, motivada por guerras de contraprogramação entre
estúdios, resultou num frankenstein mediático chamado #barbenheimer. Com direito
a verbete na Wikipédia e tudo, que o define, e bem, como “um fenómeno da internet”, essa nova forma de existir num estado algures entre o gasoso e coisa
nenhuma e, porém, capaz de erguer e derrubar heróis e vilões como nunca antes
na História.
A forma como isto começou não deixa de
ser curiosa e, até certo ponto, de alguma justiça poética: a Universal já tinha
programado a estreia de “Oppenheimer”, o novo filme de Christopher Nolan acerca do criador da bomba atómica, para
dia 20 de Julho de 2023, quando a
Warner, que Nolan abandonou aqui há uns
anos, anunciou “Barbie” para a mesmíssima data. O
processo natural seria que um roubasse espaço mediático ao outro, que se
fizessem concorrência e que, no fim, na hora de escolher o que fazer com o seu
dinheiro e o seu tempo, o espectador optasse por ver um em detrimento do outro
– e que vencesse o melhor (o melhor comunicador, como é óbvio. Porque,
nas guerras mediáticas, ser ou não o melhor intrinsecamente, não importa nada).
Na prática, funcionou tudo
exactamente ao contrário: a estreia de um alavancou a de outro. Juntos foram
mais do que a soma das partes. A discussão nas redes sociais acabou por enrolar
os contendores numa só coisa, como uma bola de plasticina, a que chamou
“Barbenheimer”: a intenção de ir ver os dois filmes no mesmo dia. Os
exibidores, sedentos de recuperar público depois dos dois anos devastadores da
pandemia e do furor das plataformas de streaming que chegou a anunciar a morte
prematura das salas de cinema, surfaram, inteligentemente, a onda e puseram em
campo campanhas a favor da sessão
dupla, hábito
perdido há, à vontade, duas boas gerações. No fim, até os actores de ambos os
filmes já alinhavam na trend e alimentavam a questão subsequente: qual a ordem mais adequada para assistir às
fitas. Entre nós, por exemplo, a página da cadeia Cinema City ainda
incentiva à compra dos bilhetes para ambos os títulos chamando-lhe
“movimento”: “junta-te ao movimento BARBENHEIMER”.
E,
de repente, já ninguém parecia estar a dar-se conta do absurdo que tinha
instalado.
É claro que a grande conversa em curso
fala de dois filmes “opostos”, mas eles não são opostos; são coisas de ordens
completamente diferentes. Mas, nesta grande sopa sincrética em que vivemos, em
que tudo é reduzido a um título, legenda, hashtag, foto, loop visual de
três segundos ou emoji, já ninguém repara que está a comparar uma
boneca de plástico ao acontecimento mais mortal da História.
Do
ponto de vista financeiro, o fenómeno compensou, sem dúvida. Nos primeiros
quatro dias de exibição, os dois títulos já tinham facturado em conjunto mais de 500 milhões
de euros a nível global. Em
Portugal, lideraram o fim-de-semana com maior receita de bilheteira de sempre –
um feito, sobretudo neste tempo em que, como dizíamos, as salas de cinema lutam
pela sobrevivência. Mas algo deve estar errado connosco quando já não
reparamos na gravidade de comparar “as premissas de poder mudar o mundo para
sempre e ser o melhor dia de sempre”, ou escrever que “uma nuvem rosa
e laranja invadiu os cinemas portugueses”, como diz em comunicado a Cinemundo,
distribuidora dos dois filmes entre nós. Saberá quem escreveu isto do que está a falar quando fala dessa
nuvem laranja?
No
relativismo absurdo a que chegámos, a História deixou de valer o que quer que
seja, os factos têm o mesmo peso que as opiniões e a “cultura” é um imenso
caldo aquoso onde elevámos as histórias de Super-Heróis à dimensão de
Shakespeare. Só assim
se explica que uma boneca, literalmente um brinquedo para crianças, seja
elevada a suposto ícone da luta pela igualdade de género, e as bombas atómicas,
que reduziram a pó duas cidades, tiraram a vida a mais de 200 mil pessoas e
contaminaram as gerações futuras com tudo o que há de disponível no terrível
arsenal humano, da radiação ao terror perpétuo, colocadas num pacote a que
o New York Times chamou (sim, não foi só a Cinemundo) “o último
fim-de-semana feliz em muitos meses”, referindo-se, em pano de fundo, à greve
dos argumentistas e actores que tem parado a indústria do audiovisual nos
Estados Unidos.
Não se admirem que as pessoas já não saibam distinguir a realidade
da ficção. Nem o importante do superficial. Nem o tipo de gente ou caminho
político que escolhem para decidir o destino dos seus países. Perdemos qualquer
espécie de referência moral, cultural e, agora, até intelectual. Deixámos de
saber pensar. Não somos capazes de ler dois parágrafos seguidos. Tudo é um
fenómeno pop, uma trend, uma discussão do momento, um brinquedo que tiramos da
montra e atiramos ao lixo assim que nos fartamos dele ou outro mais brilhante
surge no campo de visão. Somos crianças do tipo mais trágico: das que não vão
crescer.
Nada contra “Barbie”, dirigida e
interpretada por gente muito capaz. Mas
filmes como o de Nolan não são meros blockbusters de Verão, porque nem todo o
objecto artístico – aliás, em princípio, nenhum objecto artístico – serve para
entreter, mas tocar, perturbar, fazer reflectir. E, nos dias que vivemos, em que a guerra
nuclear voltou a ser possível a qualquer momento, é inacreditável que os
intervenientes tenham deixado reduzir a pó qualquer espécie de utilidade
pedagógica que o filme pudesse ter. Tudo desapareceu na dita nuvem cor-de-rosa,
onde J. Robert Oppenheimer é só mais um boneco ao lado de Ken, e a
possibilidade da bomba H um novo acessório para a casa da Barbie.
Ficamos à espera dos próximos “fenómenos de internet” semelhantes.
Quem sabe uma sessão dupla sobre o ursinho Puff e os crimes de guerra da
Rússia, “Winnie the Putin”, ou uma revisitação de Bambi, antes dum mergulho na
“onda” do Holocausto, “#Bambitler”? São ideias.
CULTURA CINEMA BARBIE
BOMBA ATÓMICA ARMAMENTO NUCLEAR DEFESA
SOCIEDADE
COMENTÁRIO:
Tiago Palhoto: A obtusidade da humanidade atingiu proporções épicas. Excelente artigo.
II “Tópicos” do dia
A Leste, tudo de
novo em cada dia que passa, na esperança do fim do pesadelo.
OBSERVADOR,
27/7/23
Em directo/ EUA: principal esforço da contraofensiva
avança
Fontes do Pentágono revelaram ao NYT que centenas de reforços estão a
ser enviados para o campo de batalha, muitos deles treinados pelos aliados da
Ucrânia e equipados com armas ocidentais.
Que drones minúsculos são estes que a Ucrânia usa?
O novo pacote de ajuda dos Estados Unidos à Ucrânia inclui drones
Black Hornet. O país já os estava a usar desde o apoio do Reino Unido e
Noruega. Pesam apenas 33 gramas e cabem na palma da mão.
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