De facto, os golpes com influência no
Estado, pelo menos cá por casa, têm um cariz mais obscuro, nada espectacular,
de arranjinho pessoal, no segredo das contrapartidas, só descobertos mais tarde,
implicando absorção pessoal das economias estatais, se forem do Estado, já que
há densa variedade de golpes, mais do foro judiciário, mas que, segundo se diz,
por aqui também mal funciona, a não ser para os Jeans Valjeans habituais.
Mas as lições de Bruno Cardoso dos Reis sobre o golpe
de Prigozhin são elucidativas, se bem que não suficientes ainda para
as decisões finais. Putin continua impávido e sereno, grande golpista, ele próprio,
cavalgando – metaforicamente apenas - no dorso dos seus subordinados obedientes.
A Ucrânia que se cuide dos golpes do Putin, que ele é que tem o facalhão para
os golpes, embora no esconso dos seus aposentos estatais ou pessoais - bem reais,
esses tais.
As lições do golpe falhado de Prigozhin
Golpes falhados são ainda mais
invisíveis do que os vitoriosos. Provavelmente o golpe falhado de Prigozhin
será despromovido a mera revolta. Fundamental é não
subestimar a seriedade da ameaça a Putin.
BRUNO CARDOSO REIS Historiador
e especialista em segurança internacional
OBSERVADOR, 30 jun. 2023, 00:18
Os golpes de Estado estão novamente a
multiplicar-se. Foram 26 de 2008-2018, o número mais baixo desde 1945. Desde
2018 já foram pelo menos 27, incluindo este golpe falhado de Prigozhin. Mas
será mesmo um golpe? E isso tem alguma importância?
Não há golpistas
Prigozhin agora diz que,
afinal, não quis dar um golpe. E Putin agora diz que tudo não passou de um
mísero motim. Se ficássemos pelas declarações dos protagonistas
não teríamos praticamente golpes de Estado. Raramente alguém afirma
orgulhosamente ser um golpista. Os golpes de Estado não são uma grande
fonte de legitimidade. É por isso que um primeiro golpe dá frequentemente
origem a círculo vicioso de mais golpes. Se alguém toma o poder pela força,
porque é que outros não o fariam? É também por isso que um golpe triunfante é
muitas vezes promovido a revolução. Em Portugal, o 28 de Maio de 1926
foi promovido a Revolução Nacional. Na Rússia, o golpe bolchevique, de finais
de 1917, foi promovido a Revolução de Outubro.
Também os golpes falhados tendem a deixar de o ser. Um líder que derrota um golpe muitas vezes prefere
não alardear a seriedade do desafio que enfrentou e, por isso, despromove
o sucedido a mero motim, vaga
rebelião, simples quartelada. Os
golpistas derrotados também têm, muitas vezes, interesse em negar que estar
envolvidos numa tentativa de tomar o poder pela força, até para evitar punições
mais severas. Fazer análise não é simplesmente aceitar a última coisa que
dizem os protagonistas.
Recordo que Prigozhin tinha, até à invasão da Ucrânia, processado
por calúnia várias jornalistas ocidentais, negando ser o dono do Grupo Wagner. Putin
afirmava: “já disse a
respeito do Grupo Wagner que o Estado russo não tem nada a ver com isso”. Esta semana afirmou: “o financiamento de
tudo no Grupo Wagner foi totalmente do Estado”. Recordo que Prigozhin recusou falar com Putin e estava imparável segundo o
presidente da Bielorrússia que lhe ligou para abrir negociações. Ele declarou durante a tentativa de golpe
que a Rússia “terá um novo líder em breve”. Recordo que Putin continua
publicamente a falar de traição e declarou que esta era “a mais dura batalha
para o futuro” da Rússia. Faria
sentido dizer isso se tudo não passasse de um motim sem importância e destinado
a falhar? É um facto que
Prigozhin comandava dezenas de milhares de veteranos armados, que rapidamente
tomou o principal centro de comando militar russo neste momento, e que lançou
uma coluna armada até 200 km da capital. Se isto não é uma tentativa de golpe
então o que é?
O que é um golpe?
Com todos os grandes fenómenos
políticos há debate e controvérsia quanto à sua definição. A tendência é para delimitar os golpes de
Estado em função do alvo, dos seus actores e dos meios. A
definição mais consensual é que um golpe não
pode ficar pela vaga conspiração, tem de passar à fase de uma tentativa aberta
por sectores das elites civis e/ou militares de mudar pela força o executivo e
até o regime político. Distinguem-se de meros motins ou
insubordinações militares, pois estes têm objectivos mais limitados –
desobedecer a uma ordem específica, protestar pela falta de soldo, má comida,
etc. Distinguem-se também de rebeliões armadas, muito
mais amplas em termos de número de protagonistas e de duração, basicamente
sinónimas de guerras civis ou insurreições.
A definição deve ser clara, mas não
pode ser demasiado restritiva. Devemos pensar num golpe de estado
como parte de um espectro amplo. E que vai
do simples pronunciamento militar com uma exigência de mudança pela hierarquia
militar em que “apenas” se ameaça com o uso da força se não for cumprida, até
aos golpes militares que resultam em sangrentos confrontos, e que se falharem
produzem a fragmentação das forças armadas e se transformam numa guerra civil.
Aliás, basta recuar até ao século XIX para termos vários exemplos de
golpes, falhados ou não, que visavam forçar uma mudança de política ou de
alguns políticos, mas não necessariamente do Chefe de Estado ou do regime. Ainda hoje se discute no Brasil quem e
quando se decidiu que o golpe de 1889 seria, afinal, para derrubar a monarquia
de D. Pedro II e não apenas o governo do Visconde de Ouro Preto. Também tivemos vários exemplos disso em
Portugal durante a Monarquia Constitucional. Mesmo no 28 de maio de 1926 não ficou
logo claro se o golpe visava afastar o Presidente da República, Bernardino
Machado.
Um estranho desfecho?
Este foi um golpe que apenas falhou in extremis. Se não
reconhecermos isso, não iremos perceber devidamente o que sucedeu e as suas
implicações. Esta foi a mais séria ameaça ao poder de Putin nos 23
anos desde que assumiu a presidência em 2000. O
homem forte da Rússia manda a oposição desarmada de Alexei Nalvny,
que apelida de traidor, durante anos para a prisão nos novos Gulags. Mas confrontado com a oposição bem armada de
Prigozhin negoceia um compromisso que lhe permite escapar, pelo menos para já,
e, provavelmente assim será enquanto este último se mantiver armado.
É verdade que a Prigozhin faltou uma alternativa política claramente
formulada a Putin. Não digo de
mudança democrática, que não seria credível tendo em conta que ele representa
alguns dos piores aspectos do regime. Mas podia ter tentando criar uma
plataforma com base no ultranacionalismo russo crítico da evolução da guerra na
Ucrânia. Nessa dimensão, pelo menos, o golpe foi claramente
improvisado. Putin
pode consolar-se com a ideia de que não emergiu uma alternativa clara a ele, ou
grandes fracturas no interior da elite do regime. O esforço de eliminação de
alternativas é algo que ele levou a cabo muito eficazmente.
Então porque negociou Putin com
Prigozhin? Porque
não estava seguro de poder conter com tropa suficientemente empenhada em morrer
por ele e suficientemente eficaz a matar por ele. E porque terá considerado
indispensável acabar rapidamente com este golpe. Era demasiado arriscado para o
seu regime, e quanto mais tempo durasse maior seria o risco de afectar
seriamente o esforço de guerra na Ucrânia.
As lições
Deixei claro que estou convencido de que esta é uma “batalha perdida”. Os golpes falhados são geralmente ainda
mais invisíveis do que os golpes vitoriosos. Provavelmente o golpe falhado de
Prigozhin será despromovido a
mera revolta. O fundamental é não subestimar a seriedade da
ameaça a Putin, seja qual for o nome que lhe demos. Muito é incerto, mas
já é claro que esta tentativa de golpe é mais um exemplo do desastroso fracasso
de Putin na invasão da Ucrânia. E da dificuldade que ele tem em melhorar a
eficácia das suas forças militares sem com isso colocar em questão as bases do
seu regime. É difícil o Kremlin promover o mérito e a
iniciativa no campo de batalha quando o regime depende da prevalência de redes
de lealdade pessoal, de interesses corruptos e da obediência cega ao líder.
Também é claro que, em vez de
rapidamente fazer cair o regime de Kiev, a invasão russa quase faz cair o
próprio regime de Putin.
Isto não quer dizer que a queda de Putin ou a vitória da Ucrânia
sejam agora certas ou iminentes. É verdade que o golpe demorou pouco tempo para
produzir grande efeitos na frente de batalha. Mas colocou em questão o empenho
futuro de dezenas de milhares de veteranos aguerridos, dos poucos que
conseguiram alguns avanços nestes meses de combate. Veremos
quantos mercenários Wagner irão para a Bielorrússia e o que farão por lá. Veremos
se alguns ficarão na Rússia e em que termos se integrarão nas tropas regulares.
Mas é difícil que daqui não resulte algum enfraquecimento do potencial bélico
russo. O aparente reforço de Shoigu, que veremos se se
confirma, também não será muito auspicioso para o desempenho militar russo. Certo
também é que Putin ficou, para já, com a sua imagem de autocrata fortemente
abalada. Isso pode ser perigoso. Putin precisa de fazer prova de força, interna
e externamente. O que significa que pode apostar numa escalada perigosa, a
começar pela Ucrânia, talvez pela central
nuclear de Zaporizhia. O que devem fazer a Ucrânia e o
Ocidente? A principal lição de tudo isto é que Putin só respeita e só negoceia
com quem mostra ter força.
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