Trata-se da tragédia de uma farsa
contínua, por cá, na indiferença – ou desconhecimento – desses de lá, apesar do
Fidel de quem tanto se falou, e agora do Canel, que com os nossos jantou, na
clandestinidade da nossa ditadura maliciosamente encoberta, para desprezo e
envilecimento dos de cá, pelos patrões – e padrões – da nossa subserviência –
nossa para com estes que nos dirigem, destes tais nossos dirigentes, para com
as chefias já bem clássicas – (em antiguidade , que remonta ao Fidel e ao seu amigalhaço
Guevara dos nossos tempos menos maduros) – desses outros, hoje recebidos não em
apoteose mas em discretos jantares da nossa toleima e perfídia, que só um Alberto Gonçalves tem o condão de referir e de ilustrar
com os seus doestos esclarecedores e arrasadores.
À mesa com o assassino
Em matéria de veneração protocolar de
comunistas, Portugal inaugurou recentemente uma tradição que, suspeitava-se,
não terminaria com o célebre Lula da Silva.
ALBERTO GONÇALVES Colunista do Observador
OBSERVADOR, 15 jul. 2023, 00:212
O presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, está em Portugal a convite
do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa. Durante
a estadia, será, ou já foi, recebido oficialmente em Belém, na Assembleia da
República e na Câmara de Lisboa. Parece que haverá, ou houve, um jantar no
Palácio da Cidadela dedicado, cito, à “honra” do indivíduo, com a participação
do primeiro-ministro daqui.
O sr. Díaz-Canel não é
uma pessoa honrada. É o chefe em funções de um regime
sanguinário, que há sessenta e tal anos mata, prende e tortura os seus
“cidadãos”, de facto cobaias de mais uma experiência de “socialismo real”. Para
todos os efeitos, o sr. Díaz-Camel é um criminoso, que carrega sem
arrependimento ou vergonha o lastro dos fuzilamentos, dos campos de
“reeducação”, do sofrimento de dissidentes políticos, homossexuais e crentes
religiosos. Os que escaparam aos extremos do horror, e não ascenderam às
cúpulas do Partido Comunista ou fugiram para Miami, vivem no moderado horror da
miséria, entre as ruínas dos edifícios espanhóis, mutações de Chevrolets,
salários de 40 dólares, censura e lojas vazias. A rumba e o rum e o sol não
compensam o resto.
Os
promotores da visita do sr. Díaz-Canel também não se distinguem pela honradez.
É verdade que o prof. Marcelo prestou vassalagem a Fidel logo no início do seu
primeiro mandato. E que o actual PS integra as hordas de transtornados que
estampam na t-shirt e no coração a carranca do “Che”, um renomado psicopata. E
que, numa decisão cúmplice com a propaganda de Havana, o ministério da Saúde
acaba de anunciar a importação de 300 “médicos” cubanos, de facto escravos sem
experiência, conhecimentos ou utilidade. E que, em matéria de veneração
protocolar de comunistas, Portugal inaugurou recentemente uma tradição que,
suspeitava-se, não terminaria com o célebre Lula da Silva.
Ainda assim, caio na
infantilidade de me espantar com o exercício. E de não conseguir imaginar que
tipo de conversa os nossos insignes representantes possam manter com um
espécime do calibre do sr. Díaz-Canel. Do que se fala à mesa com torcionários?
Falarão do tempo ou, para usar o jargão em vigor, das alterações climáticas?
Duvido que falem da guerra na Ucrânia, já que, conforme acontece com os
“médicos”, Cuba tem vendido “soldados”, sinónimo de infelizes conscritos, para
lutarem – e morrerem – ao lado das tropas russas. Como típicos portugueses, talvez falem de
comida, assunto em que o sr. Díaz-Canel se revelou especialista quando, em
2020, explicou que a fome cubana se resolveria através do consumo intensivo de
massa de pizza (a aquecer em micro-ondas) e limonada. Qual será a ementa do
jantar em Cascais?
A principal questão, porém, é: para
que serve isto? Para nada, excepto a afirmação simbólica das escolhas tomadas
pelos bandos que mandam em nós, e a que nós jovialmente obedecemos. Nos
finais de 2015, a época histórica em que o dr. Costa derrubou o muro que
separava a esquerda leninista do poder, escrevi diversas vezes (demasiadas,
segundo alguns) sobre a inevitável caminhada do país rumo aos delírios do
Caribe “revolucionário”, uma caminhada apenas limitada, ou disfarçada, pelas
obrigações “europeias” e a mendicidade caseira. Hoje,
boa parte dos cargos ditos de responsabilidade em Portugal estão ocupados por
criaturas que, por fanatismo ideológico ou indiferença, não teriam escrúpulos
em tratar-nos com a elevação com que o “fidelismo”, o “chavismo” ou os cultos
tropicais afins tratam os respectivos súbditos. Aliás, já não falta muito.
O radical desprezo dos governantes
pelo bem-estar da população é similar. Os apetites pelo controlo da informação
não diferem na natureza. A tendência instantânea para a repressão e a asfixia
económica e social é partilhável. O prazer na humilhação é comum. A diferença,
ou aquilo que parcialmente nos impede de ser a vacina cubana que Kissinger há
meio século prescreveu, é, além do verniz de civilidade imposto pelas esmolas
alemãs, a adesão voluntária dos oprimidos à opressão. Em Cuba, o regime necessita de impor o
“progressismo” pela força. Cá, o “progresso” tem avançado sob a legitimação, e
ocasionalmente a aclamação, popular. É provável que os cubanos não aguentassem
condições tão desumanas caso não tivessem uma arma apontada à cabeça. Por
enquanto, os portugueses vêm empobrecendo e o único objecto que lhes apontam é,
de longe a longe, o boletim de voto.
Não ignoro a distância que vai da calamidade cubana à crescente
penúria lusitana. Ignoro o ponto a partir do qual a penúria se revelará
insuportável a este povo dócil e subordinado. E, pior, ignoro se esse dia
chegará. Até ver, não chegou: na vasta maioria, o povo teima em aceitar com
mansidão as doses reforçadas de velhacaria que a oligarquia lhe despeja em cima
sem que alguém se lembre de chamar ao arranjo uma ditadura. Se calhar, é disso
que, no meio de fartas gargalhadas, os sobas portugueses e cubanos falaram à
mesa. O sr. Díaz-Canel veio ensinar e veio aprender.
DITADURA SOCIEDADE CUBA AMÉRICA MUNDO
COMENTÁRIOS
Maria Paula Silva: Eu, como não vejo televisão,
nem sabia que o homem cá estava e a ser recebido com pompa(s) e circunstância.
Fiquei, literalmente, de boca aberta quando comecei a ler esta excelente
crónica. E Marcelo a ser Marcelo, o
"palhacinho de serviço". Fica, cada vez mais, muita
coisa nebulosa e difícil de compreender... Obrigada, AG.
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