sábado, 22 de julho de 2023

Um inesperado texto

 

De amplitude científica e literária para contrastar com o primitivismo do linguajar de um chefe que, contra tudo e todos  (estes com bastas excepções, obviamente), leva de vencida o seu mundozinho de arrogância parola e cínica q.b., que nem apetece ilustrar, mau grado o  trabalho intelectual que despendeu o autor do texto, Paulo Ramos, para regalo de quem ame ilustrar-se, contudo. Por mim, agradeço, mas insisto na tese, com um provérbio adaptado à inutilidade da primorosa ponderação: “gastar cera com ruins defuntos”.

António Costa e o sol deCapri

Que dizer quando no contexto de "Um Governo Mais Próximo" (juro!) António Costa nos brindou em hexâmetros dactílicos que “ontem foi ontem, hoje é um novo dia. Olhe para o céu, está tão bonito, adeus”?

PAULO RAMOS Investigador no Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e tradutor

OBSERVADOR, 22 jul. 2023, 00:146

Quando, no Verão de 1972, as vetustas telefonias das avós, protegidas por naperons e bibelots, tremeram ao som do improvável sucesso de Leo Chiosso e Giancarlo del Re, Parole, Parole, muito poucos foram os que – inebriados por imagens de soquetes brancas que deixavam entrever, ao luminescente sol de Capri, joviais tornozelos de colegiais assomando em estribos de Vespas que se afastavam ao som de acordes em technicolor – muito poucos, dizia, terão sido os que conseguiram alcançar, para lá da melancolia juvenil por um amor destroçado, a angústia por, à interrogação de Mina (Parole, parole, parole / Che cosa sei?), Alberto Lupo não conseguir responder senão com o spleen desalentado da modernidade (Soltanto parole tra noi) – mimetismo do diálogo de surdos entre a filosofia e a cultura moderna que a literatura tem, com pontual mas assinalável sucesso, procurado suprir.

À linguagem, o homem foi exigindo o cumprimento cumulativo de várias funções – intérprete do mundo, sedimentação da memória, regulador das paixões – sobre cujas leituras equívocas e esperanças goradas fomos adoçando a nossa fragilíssima relação com o mundo, com os outros e com aquela arcaica bizarria – a verdade – em cujo rasto se foram decantando a poesia, o teatro, a retórica, a democracia e outras miuçalhas de idêntica serventia: começando em Platão e Aristóteles, passando por Descartes e Leibniz até Kant e Hegel, há uma linha ininterrupta que liga parole e verdade cuja fragmentação a modernidade inaugurou.

Na verdade, se é frequente vermos a história da época moderna reduzida à seca enumeração das suas perdas, já não é tão frequente assim vermos assinalada com idêntica frequência o facto de ter sido justamente a consciência dessas rupturas que abriu, por entre a canga daninha, clareiras epistemológicas onde se entrincheiraram os que reclamaram vocalmente a morte de Deus.

Sujeitemos, contudo, a emergência da modernidade à progressiva dissociação entre o mundo da Graça e o da Natureza, o da filosofia e o da teologia, entre o logos e theos, e talvez não nos surpreenda ter sido o discreto e recolhido labor de um monge franciscano do início do século XIV a decretar o desaparecimento de Deus do horizonte intelectual: arrancando Deus aos objectos da razão, William of Ockham proporcionou um vocabulário (parole, parole, parole), muito antes que a decretassem os garbosos bigodes de Weimar, à morte de Deus.

Afirmando que o conhecimento não se ocupa senão daquilo que ele chamava universais (puras abstrações no espírito, conceitos, termos, parole enfim), e que, portanto, a scientia não o é das coisas, mas apenas de signos, de símbolos, William of Ockham abre o caminho para a libertação da linguagem do seu papel meramente referencial, fosse ela a mais literária, (sem a qual talvez não tivesse sido possível a invasão de prosaísmo que o iminente nascimento do romance revelaria) fosse a mais científica, sem o que jamais se teria autonomizado o discurso científico, nomeadamente no auge do pensamento matemático.

Sem Deus, liberto enfim da mordaça da tradição e da moral, o homem pôde então entregar-se, sem culpa nem remorso, ao culto deslumbrado de si mesmo, dos seus ditames, de uma linguagem só sua. Confrontado, como Caim, com o pesadelo da sua solidão dirige então para a ciência os seus anseios de redenção, exigindo-lhe um novo catecismo da salvação e novos mandamentos para uma nova beatitude, uma que às parole não exigisse já a verdade, mas segurança. Kafka, Orwell, Huxley ou os surrealistas muito nos teriam a dizer sobre isso.

Quando no contexto das iniciativas de Um Governo Mais Próximo (juro!)  António Costa nos brindou em hexâmetros dactílicos que “ontem foi ontem, hoje é um novo dia. Olhe para o céu, está tão bonito, adeus”, não foi aquela sua extravagante toleima em se considerar engraçado que impressionou; nem sequer aquele seu ar serventuário e feliz de empregado do mês do Leroy Merlin. O que impressiona é o vazio de qualquer coisa remotamente parecida com o esboço de uma ideia que se pudesse argumentar, contrapor, refutar. O que impressiona é aquele seu mundo interior completamente vácuo e despovoado das noções de vínculo, de comunidade e de esperança que a linguagem política deveria servir. O que impressiona é a distância desmaiada a que se encontra já a pureza inefável do veloz tornozelo daquela colegial que, em 72, connosco partilhava o sol de Capri. O que impressiona é este Verão de acumulados descontentamentos e indigências que nos leva a, reconhecidos e servis, agradecer penhoradamente esta penúria, tão familiar e tão doméstica, barrada a quartos de margarina e lambuzada de Capri-Sonne. De laranja, que é mais barato.

GOVERNO    POLÍTICA    ANTÓNIO COSTA

COMENTÁRIOS:

Pedro de Freitas Leal: Um artigo muito divertido! Obrigado.                 António Sennfelt: Magnífico texto de grande erudição e enorme ironia! Muito obg ao autor por nos oferecer alguns minutos de boa leitura! PS: "os bigodes de Weimar" assentam perfeitamente na careca de Nietzsche.               João Floriano: Crónica muito interessante que me fez viajar até Capri a um certo hotel chamado Qui se sana e que começou por não ser hotel e ao período maravilhoso e dourado da canção italiana: Gianni Morandi, Rita Pavone, Jimmy Fontana e tantos outros. Uma crónica inspiradissima em alguém que não merecia. Quando ouvimos Parole, parole na voz de Delon e Dalida, sentimos prazer, saudade, nostalgia. Quando ouvimos Costa aquilo é apenas paleio não parole. Discordo da interpretação de Paulo Ramos sobre o vazio de ideias e de conceitos no pedido de Costa à jornalista: «Olhe para o céu! tão azul, Adeus!» Não confundamos a economia dos termos com a pobreza da mensagem que seria mais ou menos esta. «Vai dar uma curva ao bilhar grande e não me lixes porque eu tenho mais com que me ocupar!». Atendendo a que se trata de um primeiro-ministro, a mensagem não poderia ser mais rica na sua falta de conteúdo. Muitas vezes menos é mais. Este é um dos casos. Estou agora a lembrar-me que uma canção também dessa altura poderia ajustar-se a AC como uma luva de licra de renda se ajusta à mão: «Non son degno di Te, non son degno di la maggioranza assoluta che mi hai dato», adaptação do sucesso de Gianni Morandi.                 António Sennfelt > João Floriano: Bom comentário! Quanto ao Sr. Costa parece-me que as suas palavras são apenas parole para parolos!            João Floriano > António Sennfelt: Seria má educação da minha parte se não respondesse a esta sua tão simpática apreciação até porque já é a segunda vez que acontece. Ontem foi com os óculos rosa barbie. Há aqui pessoas que se destacam pelos conhecimentos, pelo comportamento impecável, pela autoridade. O senhor é certamente uma dessas pessoas com as quais seria grande atrevimento da minha parte pensar que estamos no mesmo nível. Eu estou muito abaixo de si e de outros comentadores excelentes com os quais tenho aprendido e muito. Mas não lhe passe pela cabeça que estou num exercício de humildade. Sei perfeitamente quais são as minhas mais-valias e por que razão eu fico tão bem no meio de pessoas de inteligência e cultura superior. É o mesmo efeito que tem saber combinar jóias verdadeiras com uma bijuteria. Se o talento para isso for genuíno, conseguem-se combinações surpreendentes. Ou por exemplo no meio de uma sala decorada em impecável estilo clássico aparecer uma peça completamente fora do contexto. Fica uma maravilha e os bons designers de interiores sabem isso como ninguém. Muitos de vós, mentes brilhantes, são perfeitos camaleões que assumem várias identidades e conseguem mudar o estilo de uma para a outra. Tenho uma genuina admiração por essa capacidade. Eu não consigo e nem quero tentar. Limito-me a ter uma originalidade e imaginação acima da média, o que prova que a humildade não é o meu forte. Os meus melhores cumprimentos.                   António Sennfelt > João Floriano: Caro João Floriano. Muito obg pelas suas palavras, mas não estou de acordo consigo quando alude ao "nível"! Os seus comentários caracterizam-se sempre por um grande equilíbrio, equanimidade e bom senso! E nada mais é exigível a nós, simples mortais, sempre com mais defeitos do que virtudes! Cumprimentos!

 

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