De amplitude
científica e literária para contrastar com o primitivismo do linguajar de um
chefe que, contra tudo e todos (estes com
bastas excepções, obviamente), leva de vencida o seu mundozinho de arrogância
parola e cínica q.b., que nem apetece ilustrar, mau grado o trabalho intelectual
que despendeu o autor do texto, Paulo Ramos, para regalo de quem ame ilustrar-se, contudo. Por mim, agradeço, mas insisto
na tese, com um provérbio adaptado à inutilidade da primorosa ponderação: “gastar cera
com ruins defuntos”.
António Costa e o sol deCapri
Que dizer quando no contexto de "Um Governo Mais
Próximo" (juro!) António Costa nos brindou em hexâmetros dactílicos que “ontem
foi ontem, hoje é um novo dia. Olhe para o céu, está tão bonito, adeus”?
PAULO RAMOS Investigador
no Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
e tradutor
OBSERVADOR, 22 jul. 2023, 00:146
Quando, no Verão
de 1972, as vetustas telefonias das avós, protegidas por naperons e bibelots,
tremeram ao som do improvável sucesso de Leo Chiosso e Giancarlo del Re, Parole,
Parole, muito poucos foram os que – inebriados por imagens de soquetes
brancas que deixavam entrever, ao luminescente sol de Capri, joviais tornozelos
de colegiais assomando em estribos de Vespas que se afastavam ao som de acordes
em technicolor – muito poucos, dizia, terão sido os que conseguiram
alcançar, para lá da melancolia juvenil por um amor destroçado, a angústia por,
à interrogação de Mina (Parole, parole, parole / Che cosa sei?),
Alberto Lupo não conseguir responder senão com o spleen desalentado da
modernidade (Soltanto parole tra noi) – mimetismo do diálogo de surdos
entre a filosofia e a cultura moderna que a literatura tem, com pontual mas
assinalável sucesso, procurado suprir.
À linguagem, o
homem foi exigindo o cumprimento cumulativo de várias funções – intérprete do
mundo, sedimentação da memória, regulador das paixões – sobre cujas leituras
equívocas e esperanças goradas fomos adoçando a nossa fragilíssima relação com
o mundo, com os outros e com aquela arcaica bizarria – a verdade – em cujo
rasto se foram decantando a poesia, o teatro, a retórica, a democracia e outras
miuçalhas de idêntica serventia: começando em Platão e Aristóteles, passando
por Descartes e Leibniz até Kant e Hegel, há uma linha ininterrupta que liga parole
e verdade cuja fragmentação a modernidade inaugurou.
Na verdade, se
é frequente vermos a história da época moderna reduzida à seca enumeração das
suas perdas, já não é tão frequente assim vermos assinalada com idêntica
frequência o facto de ter sido justamente a consciência dessas rupturas que
abriu, por entre a canga daninha, clareiras epistemológicas onde se
entrincheiraram os que reclamaram vocalmente a morte de Deus.
Sujeitemos, contudo, a emergência da modernidade à
progressiva dissociação entre o mundo da Graça e o da Natureza, o da filosofia
e o da teologia, entre o logos e
theos, e talvez não nos
surpreenda ter sido o discreto e recolhido labor de um monge franciscano do
início do século XIV a decretar o desaparecimento de Deus do horizonte
intelectual: arrancando Deus aos objectos
da razão, William of Ockham proporcionou um vocabulário (parole, parole, parole), muito antes
que a decretassem os garbosos bigodes de Weimar, à morte de Deus.
Afirmando que o conhecimento não se ocupa senão
daquilo que ele chamava universais
(puras abstrações no espírito, conceitos, termos, parole enfim), e que, portanto, a scientia não o é das
coisas, mas apenas de signos, de símbolos,
William of Ockham abre o caminho para a libertação da linguagem do seu papel
meramente referencial, fosse ela a mais literária, (sem a qual talvez não
tivesse sido possível a invasão de prosaísmo que o iminente nascimento do
romance revelaria) fosse a mais científica, sem o que jamais se teria
autonomizado o discurso científico, nomeadamente no auge do pensamento
matemático.
Sem Deus,
liberto enfim da mordaça da tradição e da moral, o homem pôde então
entregar-se, sem culpa nem remorso, ao culto deslumbrado de si mesmo, dos seus
ditames, de uma linguagem só sua. Confrontado, como Caim, com o pesadelo da sua
solidão dirige então para a ciência os seus anseios de redenção, exigindo-lhe
um novo catecismo da salvação e novos mandamentos para uma nova beatitude, uma
que às parole não exigisse já a verdade, mas segurança. Kafka, Orwell,
Huxley ou os surrealistas muito nos teriam a dizer sobre isso.
Quando no
contexto das iniciativas de Um Governo Mais Próximo (juro!) António Costa nos brindou em hexâmetros
dactílicos que “ontem foi ontem, hoje é um novo dia. Olhe para o céu, está tão
bonito, adeus”, não foi aquela sua extravagante toleima em se considerar
engraçado que impressionou; nem sequer aquele seu ar serventuário e feliz de
empregado do mês do Leroy Merlin. O que impressiona é o vazio de qualquer coisa
remotamente parecida com o esboço de uma ideia que se pudesse argumentar,
contrapor, refutar. O que impressiona é aquele seu mundo interior completamente
vácuo e despovoado das noções de vínculo, de comunidade e de esperança que a
linguagem política deveria servir. O que impressiona é a distância desmaiada a
que se encontra já a pureza inefável do veloz tornozelo daquela colegial que,
em 72, connosco partilhava o sol de Capri. O que impressiona é este Verão de
acumulados descontentamentos e indigências que nos leva a, reconhecidos e
servis, agradecer penhoradamente esta penúria, tão familiar e tão doméstica,
barrada a quartos de margarina e lambuzada de Capri-Sonne. De laranja, que é
mais barato.
GOVERNO POLÍTICA ANTÓNIO COSTA
COMENTÁRIOS:
Pedro de Freitas Leal: Um artigo
muito divertido! Obrigado.
António Sennfelt: Magnífico
texto de grande erudição e enorme ironia! Muito obg ao autor por nos oferecer
alguns minutos de boa leitura! PS:
"os bigodes de Weimar" assentam perfeitamente na careca de Nietzsche. João Floriano: Crónica muito interessante que me fez viajar até Capri
a um certo hotel chamado Qui se sana e que começou por não ser hotel e ao
período maravilhoso e dourado da canção italiana: Gianni Morandi, Rita Pavone,
Jimmy Fontana e tantos outros. Uma crónica inspiradissima em alguém
que não merecia. Quando ouvimos Parole, parole na voz de Delon e Dalida,
sentimos prazer, saudade, nostalgia. Quando ouvimos Costa aquilo é apenas paleio
não parole. Discordo da
interpretação de Paulo Ramos sobre o vazio de ideias e de conceitos no pedido
de Costa à jornalista: «Olhe para o céu! tão azul, Adeus!» Não confundamos a
economia dos termos com a pobreza da mensagem que seria mais ou menos esta.
«Vai dar uma curva ao bilhar grande e não me lixes porque eu tenho mais com que
me ocupar!». Atendendo a que se trata de um primeiro-ministro, a mensagem
não poderia ser mais rica na sua falta de conteúdo. Muitas vezes menos é
mais. Este é um dos casos. Estou agora a lembrar-me que uma canção também dessa
altura poderia ajustar-se a AC como uma luva de licra de renda se ajusta à mão:
«Non son degno di Te, non son degno di la maggioranza assoluta che mi hai
dato», adaptação do sucesso de Gianni Morandi. António Sennfelt
> João Floriano: Bom comentário! Quanto ao Sr. Costa parece-me que as
suas palavras são apenas parole para parolos! João Floriano > António Sennfelt: Seria má educação da minha parte se não respondesse a
esta sua tão simpática apreciação até porque já é a segunda vez que acontece.
Ontem foi com os óculos rosa barbie. Há aqui pessoas que se destacam pelos
conhecimentos, pelo comportamento impecável, pela autoridade. O senhor é
certamente uma dessas pessoas com as quais seria grande atrevimento da minha
parte pensar que estamos no mesmo nível. Eu estou muito abaixo de si e de
outros comentadores excelentes com os quais tenho aprendido e muito. Mas não
lhe passe pela cabeça que estou num exercício de humildade. Sei perfeitamente
quais são as minhas mais-valias e por que razão eu fico tão bem no meio de
pessoas de inteligência e cultura superior. É o mesmo efeito que tem saber
combinar jóias verdadeiras com uma bijuteria. Se o talento para isso for genuíno,
conseguem-se combinações surpreendentes. Ou por exemplo no meio de uma sala
decorada em impecável estilo clássico aparecer uma peça completamente fora do
contexto. Fica uma maravilha e os bons designers de interiores sabem isso como
ninguém. Muitos de vós, mentes brilhantes, são perfeitos camaleões que assumem
várias identidades e conseguem mudar o estilo de uma para a outra. Tenho uma
genuina admiração por essa capacidade. Eu não consigo e nem quero tentar. Limito-me
a ter uma originalidade e imaginação acima da média, o que prova que a
humildade não é o meu forte. Os meus melhores cumprimentos. António
Sennfelt > João Floriano: Caro
João Floriano. Muito obg pelas suas palavras, mas não estou de acordo consigo
quando alude ao "nível"! Os seus comentários caracterizam-se sempre
por um grande equilíbrio, equanimidade e bom senso! E nada mais é exigível a
nós, simples mortais, sempre com mais defeitos do que virtudes! Cumprimentos!
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