Foi uma prova de exame, que a
Paula me trouxe, sabendo que eu gosto de desenferrujar as tais células de uma
memória cada vez mais insegura, mas também atendendo a uma curiosidade que a
velhice ainda não eliminou totalmente. Tratou-se, pois, do exame do 12º ano de
Português, que me entretive a resolver, e de que extraio o confronto entre um
soneto camoniano e uma cantiga de amor, que transcrevo, para efeitos de
desenvolvimento comparativo:
PARTE B:
Quem vê, Senhora, claro e manifesto
O lindo ser de vossos olhos belos,
Se não perder de vista só em vê-los,
Já não paga o que deve a vosso gesto.
Este me parecia preço honesto;
Mas eu, por de vantagem merecê-los,
Dei mais a vida e alma por querê-los,
Donde já não me fica mais de resto.
Assim que a vida e alma e esperança,
E tudo quanto tenho, tudo é vosso,
E o proveito disso, eu só o levo.
Porque é tamanha bem-aventurança
O dar-vos quanto tenho e quanto posso,
Que, quanto mais vos pago, mais vos devo.
Luís de Camões
PARTE C
A dona que eu am'e
tenho por Senhor
amostrade-mi-a Deus, se vos en prazer for,
senon dade-me-a morte.
A que tenh'eu por lume d'estes olhos
meus
e porque choran sempre amostrade-mi-a Deus,
senon dade-mi a morte.
Essa que Vós fezestes melhor
parecer
de quantas sei, a Deus, fazede-me-a veer,
se non dade-mi-a morte.
Ai Deus, que mi-a fezestes mais ca
mim amar,
mostrade-mi-a u possa com ela falar,
senon dade-mi-a morte.
O soneto camoniano compõe-se de um retrato da mulher amada, centrado na
beleza dos olhos e consequentemente, do rosto da mesma, retrato de expressão
hiperbólica, agudizada pelo efeito de morte que esses exercem sobre o sujeito
poético, só com o desejá-los – o que minimiza – em valorização hiperbólica subjacente
- um sentimento que se confessa indefinidamente em débito, como traduz a
antítese final – “que quanto mais vos pago mais vos devo” –
requinte expressivo de um amor todo espiritual, ao modo platónico.
A cantiga de amor, demonstra, naturalmente, um primitivismo de escrita,
específico de uma Idade Média não reconhecedora ainda dos requintes do
classicismo renascentista, mas exprimindo idêntico luxo sentimental, próprio das
cantigas de amor cortês, chegadas da Provença, talvez, contudo, de mais humilde devoção amorosa, (em
paralelo com as súplicas das donzelas amorosas dos cantares de amigo da criação trovadoresca nativa), o destinatário
do discurso amoroso sendo, desta vez, Deus – (e não a Dama, como no soneto
camoniano) - ao qual se pede não só a presença da Senhor, mas a própria morte,
caso Deus não o favoreça com a presença daquela.
Religiosidade - e Amor pela Mulher amada, são, pois, temas comuns -
acrescidos do desejo de Morte - no segundo caso, de uma simplicidade que o
paralelismo repetitivo torna, talvez, mais sincero, na expressão de um
desespero aparentemente mais real, pese embora a constância dessa temática na
poesia, (quando não é desvirtuada pela sátira, como no próprio sirventês
medieval, a respeito de um Roy Queimado que morreu por amor (em seus cantares –
“mas ressurgiu despois ao terceiro dia”).
No soneto camoniano, os recursos retóricos são, naturalmente, de diferente dimensão,
para além do poder de religiosidade, que, no soneto serve apenas como recurso
hiperbólico e de trocadilho, demonstrativos de um perfeito engenho de discurso
e de pensamento, a referência à morte servindo apenas como um primeiro momento
de desejo, o segundo momento servindo para o acentuar hiperbólico – (jocoso?) –
que mesmo essa morte seria inútil, o débito para com tão extraordinária beleza
permanecendo para além da morte do emissor da mensagem.
Trata-se, pois, uma vez mais, de definir poeticamente a sedução que a
beleza feminina exerce no ser masculino que, prosaicamente, na vida real, de
todos os tempos, hélas! aquele ignora
nos tais artifícios verbais do para além da morte e do amor, ao contentar-se, passados
os anos próprios dos arrebatamentos sentimentais, com o ter o estômago
preenchido e a roupa apresentável, como obrigação específica da mulher tão
torvamente endeusada. Ontem, hoje e amanhã, mau grado o progresso, é o que
vamos sabendo.
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