domingo, 2 de julho de 2023

Ele não perdoa


Alberto Gonçalves, nas suas análises bem ponderadas , de pessoa arguta e sem ilusões a respeito dos cordéis com que atamos os nossos sapatos… Brilhante e destemido, como sempre.

Um caso de censura, mil casinhos de miséria

Há umas semanas, quando os publicitários do PS disseram ao dr. Costa para fingir que o cartaz era “racista”, meio mundo agarrou a deixa e desatou a exibir o apreço que dedica à liberdade de expressão.

ALBERTO GONÇALVES Colunista do Observador

OBSERVADOR, 01 jul. 2023, 00:1811

O autor do cartaz “suíno” do dr. Costa, Pedro Brito, viu cancelada a sua participação numa exposição colectiva, que integrava com outro cartaz, crítico do ministro da Educação. A exposição envolve a Universidade Nova de Lisboa, a Universidade do Porto e uma coisa chamada espaço comité (com minúsculas, porque é moderno). Após o lançamento de responsabilidades dali para acolá, apurou-se que a decisão de excluir o trabalho de Pedro Brito coube ao “comité”, o qual, diz o respectivo site, “dispõe de diversas salas para eventos, conferências, recepções e exposições com potencialidade de serem usadas em conciliação com a sua própria programação”. É capaz de ser uma espécie de galeria.

O “evento” em causa, ou a “exposição”, chama-se, de modo involuntariamente adequado, “Inclinação Para o Proibido”. Segundo o “comité”, a “Inclinação Para o Proibido” saiu de “um repto lançado pelo colóquio COMbART (?) sobre arte e activismo, questionando a produção, circulação e visibilidade de práticas criativas que veiculam valores decorrentes de lutas dos movimentos sociais actuais. Inversamente, desafia-se as práticas artísticas a resistir a uma potencial reapropriação das mesmas lutas dentro da economia dominante: a anonimidade do artista e de quem transporta e expõe a obra serve esse princípio. A mostra conjuga 30 manifestações textuais com imagens criando processos discursivos que tendem para uma potencial actualização das linguagens gráficas urbanas.”

Peço desculpa pelo tamanho da citação, proporcional à beleza da linguagem. Traduzido para português, o texto pretende informar que a “mostra” mostrará, entre 3 e 21 de Julho, 30 desenhos ou pinturas de protesto. O que o texto não informa é que o “comité” possui um entendimento restrito da palavra “protesto”, e que “as 30 manifestações textuais com imagens” ou eram 31 ou foram reduzidas a 29. Calculo que haverá achincalhos ferozes e corajosos da “extrema-direita”, do “negacionismo climático”, do “colonialismo”, da “família tradicional” e da “transfobia”. Beliscar governantes é que não. Sobretudo se os governantes são os nossos. Sobretudo se os nossos forem do PS. Sobretudo se o PS controla as instituições que patrocinam o “comité”: é difícil resistir à reapropriação das lutas dentro da economia dominante, não é?

Não quero ser injusto. O “comité” está longe de estar sozinho nas tendências censórias e nas vénias aos senhores que mandam. Há um par de semanas, quando os publicitários do Partido disseram ao dr. Costa para fingir que o famoso cartaz era “racista”, meio mundo agarrou a deixa e desatou a exibir o apreço que dedica à liberdade de expressão. No meio da turba inquisitória, nem faltaram colegas de Pedro Brito, desenhadores que se supõem irreverentes embora reverenciem os poderosos, estes poderosos, sem pingo de vergonha. O problema dos Torquemadas não era com o nariz de porquinho, os lápis nos olhos, o racismo imaginário ou o “mau gosto” que nunca se sugeriu no tempo em que o primeiro-ministro anterior era retratado como Hitler e se levavam coelhos esfolados para pândegas. Os Torquemadas limitaram-se a responder ao apelo do Chefe. E é essa subserviência cega, essa propensão para a espinha curva que não começou ontem e não se espera que termine amanhã, que assusta.

No fundo, presumir que os censores e os candidatos a censores agem unicamente por interesses económicos ou receios profissionais é um consolo e, possivelmente, um engano. A perspectiva mais terrível e mais provável é que a tal inclinação para proibir esteja inscrita na natureza humana, e com maior relevo se os humanos são portugueses. Claro que a ideologia pesa, e que um governo de esquerda tende a esperar uma obediência geral impensável sob os governos daquilo que, em Portugal, passa por ser “direita”. Porém, é principalmente o cheiro a opressão que seduz as massas e as converte à jovial submissão em curso. Não é preciso ter lido Maquiavel para se ser figurante d’“O Príncipe”: até certo ponto, uma liderança intolerante e abusiva inspira a fidelidade dos simples, como a liderança “aberta” e “débil” inspira revoltas súbitas e valentes espontâneos. A vocação para o autoritarismo e a tradição de sabujice parece um cenário construído à medida do dr. Costa e de parte substancial dos meus compatriotas. E é.

Por isso chegamos aqui, ao lugar em que um cidadão é perseguido à luz do dia por conta de um banalíssimo exercício de sátira e não acontece nada. Há 30 anos, a rejeição “oficial” de um livrinho de Saramago deixou o país às portas de uma apoplexia nervosa, com chiliques de indignação a brotarem de todos os lados. E antes que me acusem de comparar Saramago com Pedro Brito, esclareço: não comparo. Desde logo, dos telejornais à “oposição”, Pedro Brito não tem ninguém a defendê-lo e quase ninguém a noticiá-lo, enquanto Saramago acabou elevado a mártir a pretexto de um prémio obscuro e uma medida estúpida. Além disso, Saramago fora ele próprio um conhecido entusiasta da censura, o que no mínimo lhe dava familiaridade com o ofício e lhe retirava legitimidade para se queixar do dito. Ignoro se alguma vez Pedro Brito teve uma carreira a controlar a informação e a sanear dissidentes a expensas de um poder arbitrário. Mas duvido: se tivesse tido, o dr. Costa gostaria dele, e ele adoraria o dr. Costa.

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COMENTÁRIOS(de 63)

Pedra Nussapato > António Dias: Portanto a academia sueca atribuiu o Nobel a Saramago por "politiquices". Bonito...                José Carvalho: Aplaudo o autor. Apenas lhe pediria que deixe o Saramago em paz. Saramago foi um artista da palavra, que todo o mundo aprecia. Fora da escrita, era comunista, é certo, mas qual é o humano que não tem um defeito?           Alexandre Barreira: Pois. Por falar em censura. É estranho. No meu comentário "apagado". Nada disse que " sensibilizasse a virgem"....!            Alexandre Barreira > José Carvalho: Pois. É verdade. Quando a "alma" é pequena. O Saramago tem. As "costas largas"....!                    José Paulo C Castro: A esquerda não é livre: é colectivista. Pensar que pode haver liberdade de expressão quando se defende o primado do colectivo sobre o indivíduo, é um engano típico dos seus apaniguados. A censura muda de nome mas fica mais forte do que nunca.               Coronavirus corona > Pedra Nussapato: Cruzes credo. Alguma vez a academia sueca fez tal coisa? Alguém se lembra da academia sueca ter feito coisa semelhante? Daqui a pouco ainda vão dizer que o facto de ter dado o prémio Nobel da paz a Obama com alguns meses de presidência foi "politiquice". Nada disso. Por quem sois.             António Dias: A censura está cada vez mais forte com a conivência da maioria da CS. Excelente reflexão, lembrando Saramago que foi um dos maiores censores de jornalistas ao serviço do Partido comunista . Continua a ser uma das maiores injustiças, ter sido atribuído o Nobel ao Saramago , como representante da literatura portuguesa . A língua portuguesa tem excelentes escritores,que por mérito e não por politiquice deveriam ser merecedores deste prémio. O regime está podre.                  Maria Tubucci: Excelente AG. É a chamada liberdade de expressão com trela. Se faz o que o dono não quer, não come a ração. No fundo o visionário GO tinha razão, “todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais que outros”, isto é tão real em 2023 como em 1945, mantém a sua actualidade. O pior cego é o que não quer ver!                 Coronavirus corona: Só faltou fazer menção ao António. O corajoso cartunista que desenhou o primeiro-ministro de Israel em forma de cachorro e a ser levado por Trump. Acto corajoso que a nossa Assembleia da República vangloriou exibindo o desenho lá dentro do palácio roubado à Igreja. Esse mesmo António disse há dias que estes cartazes do nosso Querido Líder em forma de porco foram de extremo mau gosto. Não podemos falar de sabujos sem recordar um bola de ouro nesse desporto.                 João Angolano:  ‘Espinha curva’ e ‘voz do dono’ ta tudo dito!!!              Fernando Cascais: Este governo é como a PIDE do Estado Novo e tem um agente disfarçado em tudo o que mexe. Cancelaram o homem e deram o recado para as novas gretas: How Dare You? Os outros desenhistas, de esquerda, obviamente, de pêlo na venta e testa bem armada, levantaram a cabeça, miraram o intruso e voltaram a baixá-la para continuarem a ruminar erva. O rabinho, esse, bem enfiadinho no meio das pernas não vá o comité desconfiar de algum atrevidote para ter de o amansar. Enfim, somos realmente um povo de cagarolas de esquerda.             João Floriano: Excelente crónica. Pequenos grupos, observatórios, associações minúsculas, partidos sem representatividade, corpúsculos, são a garantia da manutenção do poder por parte do PS. Tornou-se imediatamente evidente que a questão do cartaz «racista» foi um golpe teatral bastante bem encenado por sinal. Completamente na mouche a ida à Régua deve ter sido motivo de celebração no Largo do Rato: 100% de sucesso, com Galamba e o cartaz. Aqui há anos, em Londres, muitos dos músicos de rua exibiam um cartaz. Se a memória não me falha rezava o seguinte: «Help the street musicians! The smallest and largest concert hall in the world!». Pedro Brito até nem tem necessidade de uma exposição organizada por uns grupos medíocres para exibir os seus cartazes de protesto. Se o fizer no centro de Lisboa terá certamente muito mais visibilidade. O que é curioso notar é que Pedro Brito, excelente caricaturista, é cancelado por «compagnons de route», porque imagino-o muito distante da minha direita. E estes companheiros que agora o rejeitam e lhe negam apoio ( veja-se Mário Nogueira a dar-lhe um «chega- te para lá» apesar de Pedro Brito pertencer à Fenprof), são os mesmos que se colocam solidários, solícitos e de mão estendida ao serviço das dores de AC, tal como Costa já vergou a espinha em frente a Van der Leyen quando perguntou se já podia ir ao banco. Confuso tudo isto!                 José Monteiro: O novo termo é INELEGÍVEL Inelegível para eleições Inelegível para conferências Etc              Ana Silva: A liberdade de expressão anda pelas ruas da amargura, com um torniquete ao pescoço que vai apertando as vias respiratórias lenta e paulatinamente, para o corpo (social) não estrebuchar de pânico à medida que sufoca.                 Joaquim Almeida > José Carvalho: Era comunista e censor pidesco no DN, não esqueça nem absolva.                   Carlos Chaves > José Carvalho: Caríssimo José, sem querer ser advogado de defesa do Alberto, até porque ele não precisa, o Saramago não foi um “simples” comunista, foi alguém que contribuiu activamente para que viéssemos a ser uma Cuba da Europa. Deixar em paz, suponho não criticar, como o José pede parece-me muito pouco avisado, o que estas sinistras figuras fizeram/defenderam não podem passar ao esquecimento e muito menos à crítica de quem defende outros valores.                Hipo Tanso: A liberdade de expressão é talvez o pilar mais grosso e mais sólido daquilo que deve entender-se por democracia. Infelizmente esse pilar tem-se adelgaçado notoriamente nos últimos tempos, na mesma medida em que tem engordado a fome de poder dos governantes. CENSURA - é o nome que eles não dão a essa pretensa necessidade de combater as chamadas "fake news", classificação que eles reservam para eles mesmos.             Luís Marques: Liberdade de expressão, só mesmo para malhar na direita... Por falar em nobel, o Tony Tosta arrisca-se a ganhar o próximo prémio nobel da economia, a sua explicação da inflação como resultado dos lucros excessivos das empresas é sem dúvida um contributo revolucionário para a ciência económica.          klaus mullerklaus muller: E tenho de concordar com A. G. quando diz que este servilismo perante o trafulha incompetente do Costa não é só uma questão de "interesses económicos" ou "receios profissionais". Não, é mesmo genético, algo inscrito no ADN de alguns indivíduos.                   João Floriano > Pedra Nussapato:

Credo António Dias, a heresia tem limites. E desta vez estou inteiramente ao lado da/do Pedra.(ironia) Alguma vez a Academia sueca se via envolvida em casos de corrupção e sobretudo em suspeitas de assédio sexual? Nunquinha! Alguma vez os prémios atribuídos sobretudo na Literatura têm a ver com modas e pressões políticas? Nunquinha! Todos sabemos que o único critério exclusivo é a qualidade do escritor. Agora a sério: partilho a opinião do António e não concordo com o/a Pedra o que já é habitual. Saramago esteve ao serviço do partido comunista tanto na sua actividade como jornalista como na admiração que dedicava a ditadores de esquerda, nomeadamente a família Castro. Foi excelente ter ido para Lanzarote. Se pensou na altura que nos fazia uma grande ofensa, fez-nos um grande favor. Mais uma vez Cavaco Silva esteve bem quando não lhe passou cartão.

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