Com os mercenários sob o comando do seu amigo das comezainas, foi o que foi. E este indignou-se, com justas razões do foro mercenário ou provavelmente do foro puramente íntimo, que as amizades por vezes descambam, mesmo as das comidas e bebidas.
Mas valeu-nos uma história contada com o
primor de sempre, indo aos inícios bem recuados, com Flaubert de permeio. Um prazer
sempre, a leitura de justificação ilustrada de Jaime Nogueira Pinto.
Mercenários antigos e modernos
As revoltas de mercenários têm uma
longa história e estão quase sempre ligadas a atrasos salariais ou falta de
condições laborais. Terá sido esta diferente?
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do
Observador
OBSERVADOR, 01
jul. 2023, 00:1629
Maquiavel, em Il Principe, insistia em
que as fundações de todos os Estados, velhos ou novos, eram “as boas leis e as
boas armas”. Ora as armas tanto podiam
ser do Príncipe, como de mercenários – sendo que os mercenários eram geralmente “inúteis” e “perigosos”: na
paz era-se espoliado por eles, na guerra, pelos inimigos:
“Se alguém tem o seu Estado apoiado nas tropas mercenárias, jamais
estará firme e seguro, porque elas são desunidas, ambiciosas, indisciplinadas,
infiéis;[…] não têm temor a Deus e não têm fé nos homens”.
O primeiro pensador do Estado
moderno deixava assim clara a sua
desconfiança em relação às tropas mercenárias, que eram a regra na Itália de e
nos exércitos do seu tempo.
Um mês antes da sua morte, a realidade
viria dar-lhe razão: a 6 de Maio de
1527, a Cristandade assistia horrorizada ao saque de Roma pelos lansquenetes
alemães de Georg von Fründsberg que, ao não serem pagos a tempo e horas pelo
catolicíssimo Carlos V, cometeriam as maiores atrocidades na Cidade Santa,
vandalizando e destruindo igrejas, assassinando civis e violando religiosas.
É que à revolta dos mercenários luteranos pelos salários em atraso
juntara-se o seu zelo reformador contra a capital dos “papistas”.
E,
no entanto, poucos anos antes de os soldados de von Fründsberg se terem
dedicado a estes latrocínios, celebrizara-se, pelas melhores razões, um outro condottiero
de mercenários, Giovanni delle Bande Nere.
Giovanni
era filho de um outro Giovanni – Giovanni di Pierfrancesco de Medici, “Il
Popolano”, epíteto que ganhara por ter sido relegado para a plebe quando do seu
apoio ao excomungado e incinerado frade dominicano Girolamo Savonarola. Fosse como fosse, nobre ou “popolano”, Pierfrancesco de Medici veio a
casar-se com Catarina Sforza, dos Sforza de Milão, e a gerar Giovanni delle Bande Nere, o condottiero. Nos princípios do século XVI, os Medici,
descendentes de Lourenço, o Magnífico,
conseguiram dar à Cristandade (e à família) dois papas, Leão X
e Clemente
VII. Familiarizado
desde o berço com Giovanni e conhecedor dos seus belicosos talentos e proezas
(aos 12 anos matara um homem numa rixa), Leão X nomeou-o
comandante das tropas mercenárias da Santa Sé. À frente dos mercenários papais, Giovanni começou logo
por derrotar Francesco della Rovere, duque de Urbino. Depois da morte de Leão X, Giovanni delle Bande Nere
decretou que os guerreiros papais passassem a usar “bande nere” nos uniformes e bandeiras, em sinal de luto, e
comandou-os por muitas e vitoriosas batalhas. Ferido em combate e amputado,
viria a morrer vítima de infecção.
Até à levée
en masse da Revolução
Francesa, grande parte das batalhas na Europa eram travadas
entre mercenários. Foram os
mercenários suíços, recrutados nos cantões da Confederação a partir da fase
final da guerra dos Cem Anos, que derrotaram Carlos, o Temerário, duque de Borgonha, na batalha de Nancy; e a partir dos finais do século XV surgiam no mercado
da guerra os alemães, com os Lansquenetes, que usavam o mesmo equipamento dos suíços – as lanças
compridas dos peões em formação cerrada, ao modo dos soldados macedónios de Filipe e Alexandre com as
sarissas.
Georg von Fründsberg organizou os
primeiros contingentes de lansquenetes para o Imperador Maximiano I de
Habsburgo e tornou-se o grande comandante dos Habsburgo. Era ele que estava à
frente dos lansquenetes amotinados que marcharam sobre Roma em 1527. Viria a
morrer meses depois no seu castelo de Mindelheim, com o choque da revolta dos
seus homens – os saqueadores de Roma.
Mas
os mercenários, quando eram pagos a tempo e horas, combatiam, e combatiam bem.
Lembre-se a aflição de Carlos V com o soldo dos seus mercenários, temendo que
se revoltassem e desertassem nas vésperas da batalha de Pavia, e a sua urgência em socorrer-se do dote da princesa Isabel de Portugal, filha do nosso D. Manuel
I, com quem viria a casar.
Em Agosto de 1792, também os
cerca de 900 guardas suíços de Luís
XVI de França que defendiam o Palácio das Tulherias se bateriam bem, na razão
de um para vinte, frente à multidão revolucionária, apoiada pela Garde
Nationale. Metade morreria em combate e os que se renderam foram chacinados
pelos revoltosos. O seu comandante, Karl Joseph von Bachmann, foi preso e
guilhotinado em princípios de Setembro.
Foi a partir da Revolução Francesa e
da progressiva adopção da conscrição nas monarquias constitucionais europeias
que o recurso a mercenários declinou. Ao
longo do século XIX, foi-se estabelecendo uma cultura de cidadania em que, a
par do direito de voto e da alfabetização, veio a ideia de que os homens
válidos deviam prestar serviço militar. Era um regresso ao cidadão-soldado
romano.
Os novos mercenários
Porém, no século XX, depois das
grandes guerras mundiais e do fim dos impérios coloniais e da Guerra Fria, houve
uma acelerada evolução para l’armée de métier, composta por voluntários
contratados; voluntários nacionais pagos, profissionais.
Nos
Estados Unidos, durante a guerra do Vietname, a fuga dos jovens universitários
ao serviço militar, como refractários, tinha já vindo pôr em causa a
“all-voluntary force”; e com as guerras do Iraque e do Afeganistão surgiram
em força as chamadas Private Military Companies, uma espécie
de forças supletivas contratadas para exercer determinadas tarefas em
coordenação com as chefias das forças regulares, uma espécie de parcerias
público-privadas na área da Defesa.
Num tempo de declínio dos valores
patrióticos, parece ser mais fácil morrer pelo emprego do que pela pátria. Além disso, com a causalidade variada das
guerras imperiais e com um “império invisível” como o americano, a contratação
de profissionais civis, principalmente para missões paramilitares, começou a
impor-se.
Os franceses e ingleses também
tiveram e têm companhias de mercenários, companhias militares privadas que, por
vezes, actuam em ligação com os respectivos serviços de Inteligência. Uma das
mais famosas foi a sul-africana
Executive Outcomes, que teve um papel importante nos anos 90 do século passado
na guerra civil angolana.
Com o fim da União Soviética e o licenciamento de muitos militares
das forças especiais, a Rússia teve um excesso de ex-militares canalizados para
tarefas de segurança privada, de aconselhamento securitário e de protecção
pessoal.
Foi um destes militares, o
tenente-coronel Dimitri Utkin, que fundou o Grupo Wagner. Utkin
esteve ligado às forças especiais e à Inteligência militar e combateu na guerra civil síria. Terá sido sua a ideia de fundar a Wagner
e de baptizar a companhia com o nome do grande compositor alemão – que, com
Hitler, ganharia a fama, glosada por Woody Allen, de ser a inspiração perfeita
para toda e qualquer “operação militar especial” (“I can’t listen to that much
Wagner. I start getting the urge to conquer Poland.”).
Depois da Síria, a partir de 2014 e já como Grupo Wagner, Utkin e
outros oficiais terão passado pela Crimeia e auxiliado os separatistas do
Dombas. Por volta de 2017, Yevgeny Viktorovich Prigozhin tomou
conta do Grupo, que, entretanto, se internacionalizara com a bênção do Kremlin,
multiplicando as operações em África e no Médio Oriente.
A vantagem das companhias militares
privadas é servirem, ou poderem servir, a política dos Estados sem os implicar
oficialmente. Os serviços de Inteligência franceses e ingleses usaram-nas em
“operações discretas”, sobretudo em África, e os russos copiaram o modelo.
As revoltas de mercenários têm uma
longa história e estão quase sempre ligadas a atrasos salariais ou falta de
condições laborais. A mais famosa e terrível de todas as revoltas de
mercenários, que Flaubert romanceou em Salammbô,
foi a dos mercenários de Cartago,
vencidos por Amílcar Barca (pai de Aníbal) e cruelmente castigados em 241-237
AC. Séculos depois dos lansquenetes de von Fründsberg, contemporâneos
de Maquiavel, também os mercenários
ingleses do exército liberal de D. Pedro, no Cerco do Porto (1832-33), se
amotinariam, mas sem incidentes de maior.
O dilema de Putin
A revolta de Prigozhin tem o seu quê de novelesco: a razão
principal pode enquadrar-se nas clássicas razões da quebra de condições
contratuais. O patrão da Wagner estava há
semanas a queixar-se do Ministro da Defesa e do Chefe do Estado-Maior da
Federação Russa, dizendo que os seus homens não eram devidamente apreciados e
respeitados, não recebiam alimentação nem municiamentos adequados e eram usados
como carne de canhão. Ia também dizendo que a “operação militar especial” ora
era uma brincadeira branda a que era preciso dar gás, fazendo guerra a sério,
ora era um erro de cálculo e de estratégia baseado em informações falsas.
Até ao dia 24 de Junho, eram só
queixas e lamentações, por vezes duras, mas não tocando nunca o Presidente e
Chefe, Putin. Entretanto,
parece que o que estava em marcha era o desaparecimento da Wagner como
companhia militar privada a partir de Julho, e a integração dos seus efectivos
no complexo da Defesa Nacional oficial.
Obedecerá o golpe de Prigozhin, como pretendem alguns analistas, não
a uma reivindicação laboral mas a um plano político com meses de preparação? Terá sido produto do deslumbramento e da sobrevalorização
do próprio poder e influência de um chefe mercenário imprevisível e
emocionalmente instável, que, num ímpeto, resolveu desafiar uma estrutura
estadual poderosa e sofisticada? Teria cúmplices e cumplicidades que
falharam à última hora, como já tantas vezes aconteceu na História?
O golpe não foi incruento: houve
helicópteros e um avião do Governo abatidos, os ânimos de parte a parte
aqueceram e estiveram à beira do choque. O
“homem-forte” da Bielorrússia, Lukashenko, veio mesmo a calhar para mediar uma
solução temporária, que evitou uma confrontação que poderia ter tido
consequências trágicas, não só para a Rússia, mas para todo o mundo. Porque,
como sublinha a revista Limes, se os americanos, num primeiro momento,
pareceram eufóricos com a situação e com a divisão da Rússia, depressa
concluíram que “a Rússia nas mãos de um criminoso qualquer, ou palco
de um confronto entre vários bandidos” seria “um perigo para todos”, com
“muitas mãos a agitarem-se em volta de um botão nuclear”.
Com Prigozhin na Bielorrússia e os Wagner livres para escolher entre
permanecerem Wagner e ingressarem nas operações asiáticas ou africanas da
companhia, integrarem-se no Exército russo ou irem para casa, os polacos e os
lituanos, no flanco leste da NATO, estão inquietos com a vizinhança.
Entretanto, a sorte de Prigozhin
parece abrir um dilema quase trágico para Putin: ou pune Prigozhin e os seus cúmplices
próximos, faltando à amnistia prometida e podendo causar a revolta do Grupo
Wagner; ou cumpre o acordo e mostra fraqueza, o que, para um “líder
autoritário”, pode ser uma contradição fatal.
A SEXTA COLUNA RÚSSIA MUNDO GUERRA CONFLITOS
COMENTÁRIOS (de 25)
Rui Lima: “Se alguém tem o seu Estado apoiado nas tropas
mercenárias, jamais estará firme e seguro, porque elas são desunidas,
ambiciosas, indisciplinadas, infiéis…” Hoje há algo de muito mais assustador para
o futuro do que escreveu Maquiavel. Os governos ocidentais optaram por povoar
o seu território com povos vindos de outra cultura jamais terão paz , o actual povoamento feito no
Ocidente será trágico para o nosso
futuro e nunca haverá dinheiro suficiente para comprar a paz, França foi o
primeiro país ocidental a abrir as portas e durante qua-renta anos, de acordo
com o seu Tribunal de Contas , 10 mil milhões de euros foram gastos ano
após ano, para não mencionar o dinheiro da renovação urbana deixados os
territórios rurais ao abandono ou seja os franceses da província. Esses
auxílios públicos para os novos “ franceses” alguns já vão na 4ª geração de nada
serviu a não ser para elevar dívida da França para um recorde de 3.013, 4 mil
milhões. Esta deriva começou quando começou o povoamento faz com que seja um
dos países com as contas públicas mais degradadas da Europa, é a maior despesa
pública da OCDE também lider em transferências sociais o subsídio e o crime dá
para comprar grandes carros . Como é grátis, os outros pagam essa gente, incendeiam
a escola, o ginásio, a sala do festival, a Câmara Municipal, o centro
médico-social, além, é claro, da esquadra de polícia e da estação ferroviária…
e isso é regular só que agora é em várias cidades, As reivindicações são,
antes de tudo, baseadas na identidade , ceder será o fim das nossas nações
coisa que os mercenários nunca conseguiram .
Maria Tejo: As
suas crónicas dão prazer ao Ler. Não só pelo didactismo mas também pelo
português escorreito que dá corpo a um pensamento culto superior. Para quando,
Sr. Prof., a compilação em livro?
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