sábado, 8 de julho de 2023

E tudo isso em nome da democracia


Que tantas vezes cruzou a França, em escrúpulo puritano de que nos seres primitivos, não possuídos, aparentemente, por distâncias sociais, é que reside a verdadeira virtude igualitária, e logo se viu a hediondez de uma revolução que decapitou cabeças, como ilustração desses princípios igualitários, expressão de suprema dignidade, hoje em dia mais que nunca avassaladora, segundo o ditame “se queres conhecer o vilão, mete-lhe a vara na mão”. O século XXI, no seu primeiro quartel, a mostrar o que vale, com a vara da vilania alvar, nessa França secular, de tanta grandeza luminosa - pela destruição de tudo o que resultou de inteligência e trabalho e sacrifício, palavras cada vez mais de non-sens, mesmo sem ser nos guetos. Excelente análise de Eugénia de Vasconcellos.

A ferro e fogo

Nos guetos, paredes meias, vive o século XXI, tecnológico, a espreitar a revolução da IA, e o século XII, com um Estado religioso e uma sociedade classista à beira do analfabetismo, no que têm de pior.

EUGÉNIA DE VASCONCELLOS Poeta, ensaísta, escritora

OBSERVADOR07 jul. 2023, 00:158

França está a ferro e fogo com a morte de Nahel M., de 17 anos, francês de terceira geração e de ascendência argelina, abatido por um polícia, em Nanterres. Nada disto é novo. De 1981, em Lyon, à tragédia de 2005, em Paris. E sempre com as mesmas respostas diante do horror: sublevação popular e carga policial; mortos e feridos; destruição de propriedade; cisão social; aproveitamento político. Não será novo, mas é pior – ainda que não venha a ser decretado Estado de Emergência durante três semanas como em 2005.

É pior porque também a República está a ferro e fogo, depois de ter sido sucessivamente atacada pela própria classe política, ao longo de anos, com a destruição dos princípios democráticos e liberais em benefício do poder partidário e pessoal e da agenda neoliberal. A extrema-direita e a extrema-esquerda, esta na sua expressão Woke, atiram combustível às chamas. A polarização é alarmante. Os factos, no entanto, permanecem: das banlieues ou bairros sociais, renomeados «bairros prioritários» – o que não deixa de ser irónico já que ocupam o último lugar desde o rendimento à inserção social -, emergem os franceses, alguns de terceira e quarta geração, que a França não integrou, em vagas de revoltosa destruição.

São cerca de cinco milhões os habitantes deste mundo paralelo que vive noutro mapa estatístico, desde os índices de pobreza infantil aos do desemprego – dados do Insee, o equivalente francês ao nosso INS. Quase o triplo da pobreza infantil e do desemprego. O que não obsta ao sucesso parcial do gigantesco investimento económico feito nestes bairros: cerca de 33% dos seus residentes habita o bairro durante um período não superior a 10 anos. O número de estudantes universitários oriundos dos bairros ou de fora dos bairros é aproximado. O elevador social funciona. Imperfeitamente, porém, funciona. O que não funciona são estes bairros. Não funciona o policiamento – verifique-se o número de polícias assassinados; não funcionam as escolas; nem os centros de apoio culturais ou outros.

Não há uma só razão para esta porta aberta ao caos, há uma constelação de razões. Da pobreza à guetização e ao urbanismo. Do elevado número de famílias monoparentais nos bairros, quase 30%, à ausência de expectativas. Da perda do sentimento de gravitas à perda do significado de «ser» e da ideia de «valor». Da horizontalização cultural à horizontalização política. Da sujeição do «nós» ao eu, e o transversal narcisismo.

Nestes guetos, paredes meias, vive o século XXI, tecnológico, a espreitar a revolução da IA, da computação quântica e a caminho das colonização das estrelas, e o século XII, com um Estado religioso e uma sociedade classista e à beira do analfabetismo, no que ambos têm de pior: a delinquência do tráfico de drogas ao serviço da ideia de enriquecimento e poder simbólicos da juventude, colunas de som, iphone, ténis, brincos, camisolas de marca, carros; e o islamismo radical que sujeita a mulher ao homem destituindo-a do seu lugar legal e aprisiona os rapazes num círculo vicioso de insularidade cultural e social. Entalados entre ambos estão os 33% que deles saem para não regressar. As histórias de sucesso.

Os banlieues são, eles próprios, o inimigo. O inimigo de quem neles habita tanto quanto de quem neles trabalha, como de quem deles jamais se aproximará. Se não forem transformados ao ponto de serem eliminados da paisagem social, ela não mudará.

(O trabalho feito em Le Plessis Robinson será um apêndice, mas é exemplar. Recomendo que vejam.)

FRANÇA   EUROPA   MUNDO

COMENTÁRIOS

Lúcia Henriques; Não haverá subsídios a mais?                    Carminda Damiao: Excelente artigo. Uma boa visão do que se passa em França.               acg Cisteina: Excelente texto, infelizmente, com algumas cambiantes, essa realidade existe um pouco por todo o lado sem soluções à vista; somada a guerra da Rússia/Ucrânia e outras guerras, fico a pensar se não teremos uma qualquer outra solução final para este mundo, foi o dilúvio, será tudo arder? Oxalá esteja enganado, a política tem batido no fundo, muita incompetência, muita corrupção, nula organização, pouca disciplina e segurança.                     Jorge Lopes: Basta ver os vídeos musicais desses energúmenos !                      M C: Primeira reflexão inteligente sobre o assunto. Parabéns.                 João Diogo: A cronista devia ter perguntado como é que ele conduzia um mercedes topo de gama.                 Pobre Portugal: O problema é que "o wokismo que infesta escolas, imprensa e associações subsidiadas pelo Estado ensina aos migrantes e seus descendentes que a Europa é “racista” e a devem tratar como inimiga", como aqui ao lado escreve Rui Ramos. Esse é o problema, que é de fácil resolução: acabar com essa infestação. Mas, infelizmente, quem disser que a Europa é racista é aplaudido por todos os média.                   João Floriano: Gostei sobretudo da abordagem de um dos grandes problemas destes banlieues: a mistura inevitável da tecnologia, das redes sociais, da moda ocidental com as suas sapatilhas e roupa de marca, os brincos, o wokismo, as novas famílias uniparentais sendo geralmente a mãe a chefe da família, chocando com ideias ancestrais, fanatismo religioso e cultural, submissão, racismo e ódio pela «sociedade dos brancos» fora do banlieue. Um caldo mais explosivo que nitroglicerina logo que se chega um fósforo. Desta vez o fósforo foi a morte de Nahel, mas poderá ser outra coisa qualquer. A reboque do descontentamento destes moradores e tirando partido do seu enorme potencial para a destruição e o confronto, encontramos certamente muitas conspirações com outros fins e propósitos. A França no coração da Europa, é um retrato do que temos hoje em dia no mundo ele também a ferro e fogo. Por um lado, países interessados na tecnologia de ponta, nas viagens espaciais, na crise do clima, na protecção dos oceanos, acreditando que a salvação está na democracia. Por outro lado regimes bárbaros, de uma violência extrema, aplicando a pena de morte, fanaticamente teocratas, fazendo o tempo voltar atrás, bombardeando vizinhos e com saudades do imperialismo do passado. A democracia em confronto com o autoritarismo,  com tecnologia e armas nucleares à mistura. Noto no entanto, ou será talvez uma impressão minha, que a cronista pesando os factos na sua balança de opinião, desloca o peso da culpa mais para o lado das autoridades e poder político central e alivia assim o ónus dos que organizam a confrontação, queimam equipamentos e transformam cidades como Marselha, Paris e Lyon em campos de batalha. E refiro-me precisamente a estas três porque há ali muito mais em jogo do que a questão das banlieues esquecidos : já ali há mafias e crime organizado. Quanto à questão da eliminação dos banlieues da paisagem social, nem sequer nos podemos atrever a avançar com soluções. A crónica fala em 5 milhões de franceses de 2ª, 3ª, 4ª gerações. Li algures que serão 10 milhões numa população de 60 milhões, aproximadamente. O passado colonial francês não explica isto, porque muitos destes novos franceses nunca puseram o pé no país de origem dos seus antepassados e não têm qualquer vínculo afectivo ou familiar com esses locais e o racismo funciona aqui nos dois sentidos e não apenas contra as «vítimas» das banlieues.

 

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