Que tantas vezes cruzou a França, em escrúpulo
puritano de que nos seres primitivos, não possuídos, aparentemente, por
distâncias sociais, é que reside a verdadeira virtude igualitária, e logo se
viu a hediondez de uma revolução que decapitou cabeças, como ilustração desses
princípios igualitários, expressão de suprema dignidade, hoje em dia mais que
nunca avassaladora, segundo o ditame “se queres conhecer o vilão, mete-lhe a
vara na mão”. O século XXI, no seu primeiro quartel, a mostrar o que vale, com
a vara da vilania alvar, nessa França secular, de tanta grandeza luminosa - pela
destruição de tudo o que resultou de inteligência e trabalho e sacrifício,
palavras cada vez mais de non-sens,
mesmo sem ser nos guetos. Excelente análise de Eugénia
de Vasconcellos.
A ferro e fogo
Nos guetos, paredes meias, vive o
século XXI, tecnológico, a espreitar a revolução da IA, e o século XII, com um
Estado religioso e uma sociedade classista à beira do analfabetismo, no que têm
de pior.
EUGÉNIA DE VASCONCELLOS Poeta,
ensaísta, escritora
OBSERVADOR07 jul.
2023, 00:158
França
está a ferro e fogo com a morte de Nahel M., de 17 anos, francês de terceira
geração e de ascendência argelina, abatido por um polícia, em Nanterres. Nada
disto é novo. De 1981, em Lyon, à
tragédia de 2005, em Paris. E sempre com as
mesmas respostas diante do horror: sublevação popular e carga policial;
mortos e feridos; destruição de propriedade; cisão social; aproveitamento
político. Não será novo, mas é pior – ainda que não venha a ser decretado
Estado de Emergência durante três semanas como em 2005.
É pior porque também a República está
a ferro e fogo, depois de ter sido sucessivamente atacada pela própria classe
política, ao longo de anos, com a destruição dos princípios democráticos e
liberais em benefício do poder partidário e pessoal e da agenda neoliberal. A extrema-direita e a
extrema-esquerda, esta na sua expressão Woke, atiram combustível às
chamas. A polarização é alarmante. Os factos,
no entanto, permanecem: das banlieues ou bairros sociais, renomeados «bairros prioritários» – o que não deixa de ser irónico
já que ocupam o último lugar desde o rendimento à inserção social -, emergem os franceses, alguns de
terceira e quarta geração, que a França não integrou, em vagas de revoltosa
destruição.
São cerca de cinco milhões os habitantes deste mundo paralelo que
vive noutro mapa estatístico, desde os índices de pobreza infantil aos do
desemprego – dados do Insee, o equivalente francês ao nosso
INS. Quase o triplo da pobreza infantil e do desemprego. O que não obsta ao
sucesso parcial do gigantesco investimento económico feito nestes bairros:
cerca de 33% dos seus residentes habita o bairro durante um período não
superior a 10 anos. O número de estudantes universitários oriundos dos bairros
ou de fora dos bairros é aproximado. O elevador social funciona.
Imperfeitamente, porém, funciona. O que
não funciona são estes bairros. Não funciona o policiamento – verifique-se o
número de polícias assassinados; não funcionam as escolas; nem os centros de
apoio culturais ou outros.
Não há uma só razão para esta porta
aberta ao caos, há uma constelação de razões. Da pobreza à guetização e ao urbanismo. Do elevado número de famílias
monoparentais nos bairros, quase 30%, à ausência de expectativas. Da
perda do sentimento de gravitas à perda do significado de «ser» e da ideia de
«valor». Da horizontalização cultural
à horizontalização política. Da sujeição do «nós» ao eu, e o transversal
narcisismo.
Nestes guetos, paredes meias, vive o
século XXI, tecnológico, a espreitar a revolução da IA, da computação quântica
e a caminho das colonização das estrelas, e o século XII, com um Estado
religioso e uma sociedade classista e à beira do analfabetismo, no que ambos
têm de pior: a delinquência do tráfico de drogas ao serviço da ideia de
enriquecimento e poder simbólicos da juventude, colunas de som, iphone, ténis,
brincos, camisolas de marca, carros; e o islamismo radical que sujeita a mulher
ao homem destituindo-a do seu lugar legal e aprisiona os rapazes num círculo vicioso
de insularidade cultural e social. Entalados entre ambos estão os 33% que deles
saem para não regressar. As histórias de sucesso.
Os banlieues são, eles próprios, o inimigo. O inimigo de quem neles habita tanto quanto de quem
neles trabalha, como de quem deles jamais se aproximará. Se não forem
transformados ao ponto de serem eliminados da paisagem social, ela não mudará.
(O trabalho
feito em Le Plessis Robinson será um
apêndice, mas é exemplar. Recomendo que vejam.)
COMENTÁRIOS
Lúcia Henriques; Não haverá subsídios a mais?
Carminda Damiao: Excelente artigo. Uma boa visão
do que se passa em França. acg
Cisteina: Excelente texto,
infelizmente, com algumas cambiantes, essa realidade existe um pouco por todo o
lado sem soluções à vista; somada a guerra da Rússia/Ucrânia e outras guerras,
fico a pensar se não teremos uma qualquer outra solução final para este mundo,
foi o dilúvio, será tudo arder? Oxalá esteja enganado, a política tem batido no
fundo, muita incompetência, muita corrupção, nula organização, pouca disciplina
e segurança. Jorge
Lopes: Basta ver os vídeos musicais
desses energúmenos ! M C: Primeira reflexão inteligente
sobre o assunto. Parabéns. João
Diogo: A cronista devia
ter perguntado como é que ele conduzia um mercedes topo de gama. Pobre
Portugal: O problema é que
"o wokismo que infesta escolas, imprensa e associações subsidiadas pelo
Estado ensina aos migrantes e seus descendentes que a Europa é “racista” e a
devem tratar como inimiga", como aqui ao lado escreve Rui Ramos. Esse é o problema, que é de fácil resolução:
acabar com essa infestação. Mas, infelizmente, quem disser que a Europa é
racista é aplaudido por todos os média. João
Floriano: Gostei sobretudo
da abordagem de um dos grandes problemas destes banlieues: a mistura inevitável
da tecnologia, das redes sociais, da moda ocidental com as suas sapatilhas e
roupa de marca, os brincos, o wokismo, as novas famílias uniparentais sendo
geralmente a mãe a chefe da família, chocando com ideias ancestrais, fanatismo
religioso e cultural, submissão, racismo e ódio pela «sociedade dos brancos»
fora do banlieue. Um caldo mais explosivo que nitroglicerina logo que se chega
um fósforo. Desta vez o fósforo foi a morte de Nahel, mas poderá ser outra
coisa qualquer. A reboque do descontentamento destes moradores e tirando
partido do seu enorme potencial para a destruição e o confronto, encontramos
certamente muitas conspirações com outros fins e propósitos. A França no
coração da Europa, é um retrato do que temos hoje em dia no mundo ele também a
ferro e fogo. Por um lado, países
interessados na tecnologia de ponta, nas viagens espaciais, na crise do clima,
na protecção dos oceanos, acreditando que a salvação está na democracia. Por
outro lado regimes bárbaros, de uma violência extrema, aplicando a pena de
morte, fanaticamente teocratas, fazendo o tempo voltar atrás, bombardeando
vizinhos e com saudades do imperialismo do passado. A democracia em confronto com o autoritarismo, com tecnologia e armas
nucleares à mistura. Noto no entanto, ou será talvez uma impressão minha, que a cronista
pesando os factos na sua balança de opinião, desloca o peso da culpa mais para
o lado das autoridades e poder político central e alivia assim o ónus dos que
organizam a confrontação, queimam equipamentos e transformam cidades como
Marselha, Paris e Lyon em campos de batalha. E refiro-me precisamente a estas
três porque há ali muito mais em jogo do que a questão das banlieues esquecidos
: já ali há mafias e crime organizado. Quanto à questão da eliminação dos
banlieues da paisagem social, nem sequer nos podemos atrever a avançar com
soluções. A crónica fala em 5 milhões de franceses de 2ª, 3ª, 4ª gerações. Li
algures que serão 10 milhões numa população de 60 milhões, aproximadamente. O
passado colonial francês não explica isto, porque muitos destes novos franceses
nunca puseram o pé no país de origem dos seus antepassados e não têm qualquer
vínculo afectivo ou familiar com esses locais e o racismo funciona aqui nos
dois sentidos e não apenas contra as «vítimas» das banlieues.
Nenhum comentário:
Postar um comentário