De intenção pedagógica, que os meninos de
hoje também deviam ler, que conta significativamente de rebeldias, um pouco à
maneira da condessa de Ségur, de
intenção divertida e formativa, mas com o cunho da intelectualidade natural
numa personalidade literária múltipla, de poeta, ensaísta e escritora, como se
define Eugénia de Vasconcellos. É sempre,
pois, com prazer que a lemos, na sua faceta ensaística, que o Observador nos traz regularmente, a quem os
governantes deveriam, igualmente, estar atentos, pelo menos esses que se ocupam
das questões educativas. Sim, deveriam ler as dicas de Eugénia de Vasconcellos a respeito da
formação moral e cívica a ser difundida nas famílias e nas escolas, de natural
exigência pedagógica mas de natural compreensão das traquinices e rebeldias infantis
que o amadurecimento gradualmente serena, se for devidamente acompanhado.
A escola, os exames, os traumas e os horrores
A alegria que senti depois daquele
exame para o qual me preparei exaustivamente, foi o motor com que atravessei e
atravesso qualquer não até que seja um sim. Na escola também se aprende a ser.
EUGÉNIA DE VASCONCELLOS Poeta,
ensaísta, escritora
OBSERVADOR, 28 jul. 2023, 00:151
Há crianças bem comportadas. Há crianças
mal comportadas. Como, infelizmente, o mundo não se compadece com facilidades
maniqueístas, há crianças bem comportadas que são verdadeiros diabos. Conheci-as muito bem. Dava-me com elas. Era
uma delas, mais precisamente. Fizemos juntas um sem número de indesejadas
romarias ao gabinete da Madre Superior que,
muito convenientemente, estava sempre numa semi-obscuridade espiritual: as cortinas de damasco vermelho escuro
jamais deixavam passar a luz clara do dia e os móveis de pau preto cresciam em
directa proporção com o disparate que nos tinha levado até lá.
Num primeiro momento, silêncio.
Sentia-se o tempo passar: de tão lentos, os segundos pareciam horas. A manobra
silenciosa era eficaz, intimidava. Depois, a Madre Superior levantava a cabeça
da papelada sobre a secretária e perguntava-nos se sabíamos porque estávamos
ali. Nunca, nunca soubemos. Seguia-se um convite à delação: pedia-nos para
apontarmos a culpada, a cabeça, para que as consequências do acto faltoso
fossem menos graves para quem tinha menos responsabilidade. Cerrávamos fileiras. Como consequência
da falta de arrependimento, éramos informadas de que os pais seriam chamados
para uma reunião onde lhes seria revelado o verdadeiro e abominável
comportamento das filhas. Claro que esta sessão parental era a resposta, não ao
disparate, mas à impenitência.
Éramos um grupo de alunas com bom
rendimento académico. O que provocava as famosas reuniões de pais só seria
inaceitável num convento novecentista: celebrámos missa na capela, com o
capelão e o corpo docente devidamente caricaturados; fomos todas confessar os
mesmos três pecados inventados na quinta-feira das confissões, para averiguar
se os segredos de confessionário eram ou não mantidos; escondíamos regularmente
o sino, o que atrasava a entrada nas salas de aula a todas as turmas; andávamos
nas árvores como macacos, colhíamos fruta nos pomares, área proibida às alunas;
caímos vestidas, regular e «acidentalmente», no lago dos peixes ou na piscina,
qualquer que fosse a estação do ano. Nas aulas, o mais que acontecia era
espirrarmos todas, por coincidência, às dez menos cinco em ponto com repetição
à hora certa e às dez e dez, ou qualquer outra parvoíce do mesmo género. Alguma
coisa havíamos de fazer… tínhamos sete aulas de cinquenta minutos por dia,
algumas de cem minutos – assim se explica o bom rendimento. A este horário
somavam duas horas em horário opcional posterior, «o estudo», para fazer
trabalhos de casa e/ou actividades extra-curriculares: ballet ou ballet, para
evitar a monotonia e fortalecer o carácter através da persistência.
Lembro-me de uma vez estarmos todas de
pé, já de castigo e em silêncio ao lado das respectivas carteiras, enquanto aguardávamos
na sala a chegada da inquisição, quando alguém começa a cantar, mas alto e em
bom som… Uma das raparigas disse, «já estamos de pé, cala-te senão põem-nos de
joelhos». Nunca me ri tanto como então. A inquisição, chegada entretanto,
ameaçava, e nós ríamos como doidas só de nos imaginarmos de joelhos e de
sabermos que não poderíamos continuar a rir – são patetices, é certo, mas não
alteram os factos: a qualidade da transgressão é definida pela qualidade da
norma e ambas são fundamentais e formativas.
Na quarta classe, hoje quarto ano, tive
de fazer dois exames: o do colégio, como todas as minhas colegas, e um outro
numa escola pública porque «não completava a idade mínima no tempo previsto
para transitar para o 1º ano do ciclo preparatório». A Madre disse-me: «estamos
com os olhos postos em si, olhe que ao representar o colégio representa todas
as suas colegas e professoras. Tome como exemplo a sua colega do 5º ano — hoje
seria do nono ano — que também teve de ir fazer exame no exterior e teve a
melhor avaliação». Já não bastava não ter pedido o posto de embaixadora, senão
ter de somar a responsabilidade da boa embaixada. Os exames provocam stress infantil, dizem. Mas também aumentam a
auto-confiança quando alguém a quem admiramos, como um professor, confia nas
nossas capacidades e acredita não só naquilo que somos, mas no que viremos a
ser. Será stressante mas nem por isso traumático. Será traumático se
aqueles que nos ensinam, tiverem sobre o nosso desempenho baixas expectativas.
Dessa forma aprenderemos também a tê-las.
O Ministério da Educação, que paulatinamente está a destruir o que
resta da educação pública, deveria aprender com os alunos algo considerado
bastante reprovável: a copiar. Deveria
copiar as escolas públicas ou privadas de sucesso. Aquelas que enviam para as faculdades alunos bem preparados, as
mesmas que ensinam o rigor e o trabalho, a resistência à frustração, e o fazem
sem excluir a satisfação. E já que estava no copianço, aproveitava e
copiava também os critérios de selecção e colocação de professores desses
estabelecimentos. Poderia até, com megalomania adolescente, reacender a «paixão
pela educação», e em vez de lhe pegar fogo, estudar os currículos e a
disciplina das escolas que, de facto, quebram os ciclos de pobreza e exclusão
através das competências adquiridas. Como o da excelente Michaela Community School,
no norte de Londres. Um modelo, obviamente controverso, de sucesso. Porque
aprender nem sempre é divertido ainda que não tenha de ser um sacrifício. É
trabalhoso. É exigente.
Lá fui, então, para aquela escola que
desconhecia, de lindos jacarandás em flor no pátio, fazer o obrigatório exame,
escrito e oral. Três professores em cima de um estrado. Este ano, a SPA nomeou
o último livro que publiquei, «Livro da
Perfeita Alegria», para
melhor livro de poesia, depois
de ter sido também finalista do Prémio Ruy Belo. Devo dizer que fiquei
muito feliz. Não porque acredite no conceito de «o melhor livro». Mas porque
antes de publicar o meu primeiro livro recebi mais de vinte rejeições. Mais de
vinte editoras em cima de um estrado. A alegria que senti depois daquele
exame para o qual me preparei exaustivamente, foi o motor com que atravessei e
atravesso qualquer não até que seja um sim. Na escola também se aprende a ser.
COMENTÁRIOS
Susana Ferreira:
Parabéns
Filipe Paes de Vasconcellos: Sempre muito bom ler os seus textos. Muitos parabéns
pelo seu livro que irei ler.
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