quarta-feira, 5 de julho de 2023

Os verdadeiros interesses

 

Do Governo, são outros, já muitas vezes se disse e se vai repetir com constância inamovível, nem vale já a pena frisar, mas todos nós continuamos a frisar, numa de incontinência verbal, por não termos emenda também, nosotros, amigos da diversão, da paz e do remedeio, que somos um povo de remediados e os governantes sabem disso, que conhecem um pouco os ditos da Bíblia, explicando que os pobres terão o reino celeste, como compensação da falta de reino terreno mais emparelhado com o deles, o que sairia catastrófico até mais não, um tal alargamento paradisíaco terrenal a todas as classes sociais, mesmo na plena democracia em que vigoramos. Miguel Pinheiro, contudo, insiste – e bem – nessa característica do “estado a que chegou o Estado, sob a aparente cegueira dos seus representantes máximos“ e não vamos contestá-lo, pois o constatamos nos noticiários diários, que pretendem ser escrupulosos a contar os factos, tanto os estrangeiros como os nacionais, com imagens visuais e acústicas comprovativas das mazelas que aquele contextualizou comentando, bastante depreciativamente, mas com rigor analítico, que se nos impôs.

O governo do "faz de conta que não vê"

Os professores não ensinam, os médicos não curam e os oficiais de justiça não trabalham, mas o PS governa — e isso, no fundo, é a única coisa que realmente interessa.

MIGUEL PINHEIRO, Director executivo do Observador

OBSERVADOR, 01 jul. 2023, 00:2254

É a frase mais conhecida de Salgueiro Maia e reflecte a forma ligeiramente fatalista e profundamente desiludida como os portugueses olham para as recorrentes fragilidades do país: “Há diversas modalidades de Estado: os estados socialistas, os estados corporativos e o estado a que isto chegou”.

Passaram-se muitas décadas, mas, por mais boa vontade que tenhamos, somos forçados a reconhecer que o estado a que isto chegou não é exactamente brilhante. Em especial quando concluímos, como aconteceu nesta semana deprimente, que, inacreditavelmente, há áreas fundamentais do Estado em que estamos pior do que estávamos durante a pandemia, que foi o evento mais disruptivo desta geração.

Na Justiça, por exemplo. Os números mostram, com inequívoca clareza, que a greve dos funcionários judiciais, que se tem prolongado com incompreensível discrição, já provocou mais adiamentos do que aqueles que aconteceram no período da pandemia: estão em causa cinco milhões — atenção: cinco milhões — de actos processuais e 60 mil diligências que ficaram por fazer.

Nos hospitais, idem aspas. Ficámos a saber por estes dias que, no ano passado, o número de utentes em lista de espera aumentou e que o número de utentes sem médico de família também. Segundo o Conselho das Finanças Públicas, 2022 “caracterizou-se pela agudização de determinados constrangimentos já patentes no período pré-pandemia”. E, agora, foi anunciado esta sexta-feira, vem aí uma greve geral de médicos, a que se soma uma greve regional, a que se adiciona uma greve às horas extraordinárias nos cuidados de saúde primários, a que acresce uma greve à produção adicional nos hospitais.

Nas escolas, há especialistas a avisar que as greves, protestos e paralisações dos professores tiveram consequências piores do que as da pandemia porque, desta vez, não existe uma mobilização generalizada dos cidadãos para arranjar soluções que diminuam os efeitos das paragens na aprendizagem.

Com uma paciência teimosa e inamovível, o governo faz de conta que não vê nada disto. O objectivo supremo de António Costa é convencer o país e a Europa de que não existe contestação na sociedade portuguesa. Porque, na sua cabeça, se não existe contestação, é porque não existe conflito; e, se não existe conflito, é porque não existem problemas.

Havendo greves com efeitos pesados nas três áreas mais sensíveis do Estado — Justiça, Saúde e Educação —, um governo que não simulasse sonambulismo teria duas formas possíveis de actuar para resolver os problemas.

Uma hipótese seria ceder. O primeiro-ministro podia aumentar significativamente os salários dos funcionários judiciais; podia aplicar uma pequena fortuna a criar as condições para os médicos quererem trabalhar no SNS; e podia entregar aos professores a contagem do tempo de serviço que reivindicam. Mas António Costa antecipa as consequências de uma distribuição massiva de dinheiro. Conhecendo a história recente do PS, sabe que iria de cedência em cedência até à troika final.

Outra hipótese seria combater. Um governo de maioria absoluta cercado por sindicatos poderosos poderia explicar aos eleitores as razões para a resistência aos seus interesses particulares e poderia criar dificuldades àqueles que o pretendem fazer vergar. Mas António Costa tem horror a isso porque prospera com uma imagem política que o apresenta como o homem dos consensos que, para usar as metáforas da praxe, derruba muros e constrói pontes. Ele é o anti-Cavaco e o anti-Passos. Combater os sindicatos levaria à destruição dessa imagem propagandística — e isso, para o primeiro-ministro, é impensável. Por duas razões. Primeiro, porque é ela que tem sustentado sempre o discurso de legitimação do governo, mesmo quando faltaram os votos (em 2015) ou quando faltaram os apoios (em 2021, com o fim da geringonça). Sem essa imagem, António Costa perde o seu propósito político. A segunda razão que leva o primeiro-ministro a querer fazer de conta que o país não tem conflitos é porque essa é a imagem que lhe dá força e poder “na Europa”. António Costa é considerado para um cargo europeu porque é socialista e o grupo dos socialistas tem direito a cargos — mas também porque é visto como o homem dos consensos, que tanto fala com o esquerdista Alexis Tsipras como com o nacionalista Viktor Orbán.

Por tudo isto, António Costa precisa de poder dizer que reina a paz e a tranquilidade no país, mesmo que essa tranquilidade e essa paz sejam uma fantasia. Os professores não ensinam, os médicos não curam e os oficiais de justiça não trabalham, mas o PS governa — e isso, no fundo, é a única coisa que realmente interessa.

GOVERNO    POLÍTICA

COMENTÁRIOS (de 54)

Manuel Martins: Existe aqui um factor que, em minha opinião, não pode ser menosprezado: os funcionários públicos não recuperaram da pandemia. A pandemia foram tempos "bons" para professores e funcionários da justiça: ficar em casa a receber, afectou muito a motivação e hábitos de trabalho. Na saúde a pandemia foi para médicos e enfermeiros tempos de enriquecer: o valor de horas extra foi brutal, e os vencimentos nunca foram tão elevados: agora custa voltar atrás. O que vemos agora é a chantagem de aumentos perante um governo que determinou o fim da austeridade e que não quer problemas...                Nuno Borges: Os professores não ensinam, os médicos não curam e os oficiais de justiça não trabalham, mas o PS governa. Benvindos ao socialismo.                   Mario Bastos: Na mosca.                    Maria Eduarda Vaz Serra: De repente os jornalistas descobrem quem é antonio costa. Que engraçado, foi preciso chegar até aqui para só começarem a ver quem é realmente esta personagem. Antes o Sócrates: tinha um plano para o país e por muito mau que fosse era um anjinho ao pé deste maquiavel!                  Fernando CE: Muito bem argumentado e bem escrito como sempre. Como disse João César das Neves, Costa atingiu o seu princípio de Peter: as suas “skills” não são necessárias nesta fase de governação. E vê-se pela composição dos seus governos, com os ministros mais fracos e incompetentes de todos os governos constitucionais desde o 25 de Abril, tirando uma ou duas honrosas excepções. No fundo, ele tem medo de ministros com peso político e técnico da área respectiva porque não saberia como gerir políticas a sério. Procura governar dando umas esmolas ao povo de quando em quando para garantir a simpatia do eleitorado. Até hoje não fez uma única reforma digna desse nome, empurrando os problemas com a barriga.                   Rui Castro: O grande problema desta situação é que o povo Português gosta de ouvir coisas bonitas e desculpa sempre qualquer coisinha. Tem tendência a contemporizar com quem gosta. E o povo aaaama o PS. Estamos tramados, portanto.                     Maria Tubucci: Muito bem, MP, olhar para a realidade com lentes reais e não com lentes cor-de-rosa. A “empresa” governo tem muitas classes, de esquerda, que têm de andar sempre na luta por melhores condições de: vencimentos, de emprego, subsídios. É o que sabem fazer dividir para reinar. Assim, vão-se entretendo uns e outros, o serviço público que deveriam prestar não é feito, simultaneamente, o governo passa por entre os pingos da chuva não sendo escrutinado. Por alturas das eleições, o PS irá distribuir as migalhas há muito prometidas, de um bolo que reservou para si, satisfazendo a luta e ganhando o seu voto. O problema verdadeiramente problemático é que se hoje houvesse eleições, os descontentes e indignados, juntamente com os sabujos votariam PS outra vez e a abstenção deixaria o PS ganhar outra vez. Em terra de cegos quem tem olho é rei. Se na altura de votar, os votantes soubessem comparar o rendimento bruto com o rendimento líquido, teriam consciência que andavam a ser roubados há muito tempo. E não votariam em trafulhas, que seriam remetidos para caixote do lixo da história. E em vez disso, dão-lhe a “maioria” absoluta e o leme do país, que eles aproveitam para afundar, reinando a paz dos cemitérios.

Nada é feito ao acaso!                   José Alves: Só não concordo quando Miguel Pinheiro afirma que o governo, “governa”. Este governo só é governo no nome de resto desgoverna em tudo o que toca, habitação, controle de fronteiras, agricultura, família, etc.. Não temos governo temos uma comissão liquidatária. Cumprimentos.   Carlos Chaves: Ou seja, em poucas palavras, mantêm-se esta figura e o seu séquito no poder à custa da degradação dos serviços públicos, do Estado de direito e da própria democracia, e nós assistimos de bancada alimentados pelo que a CS nos quer impingir!                  João Ramos > Amigo do Camolas: Certíssimo!!! Diogo Tovar: Parabéns, bela análise, simples e clara, e infelizmente tão real.

 

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