De definir o conhecimento, macaqueando
conceitos que deviam merecer respeito e não uma despromoção de idiotia que os
da branquitude vão aceitando cobardemente, sem pôr cobro a tanta ignomínia, como
convém ao desleixo moral em moda. Análise de excelência, de Patrícia Fernandes.
PATRÍCIA FERNANDES Professora
na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho e na Faculdade de
Letras da Universidade do Porto
OBSERVADOR, 17/7/23
– Parte I
Já há estudos académicos sobre o Fallism (derrubismo?) como teoria política que combinaria elementos do pensamento
descolonizador, do pan-africanismo, da consciência negra e do feminismo radical
negro.
É significativo dos nossos tempos que uma
das exigências políticas mais populares dos últimos anos, no mundo anglófono,
tenha começado com o activista sul-africano Chumani
Maxwele a despejar
excrementos humanos em cima da estátua de Cecil Rhodes para exigir a sua
remoção do campus da Universidade de Cape Town (UCT). Recapitulemos:
é significativo dos nossos tempos que uma das exigências políticas mais
populares seja o derrube de estátuas e que tenha começado com cocó. O futuro
fará as suas avaliações.
A verdade é que Chumani Maxwele atraiu vários estudantes para o protesto que marcou o
mês de março de 2015 e que viria a ser conhecido como Movimento
Rhodes Must Fall (RMF), repetido
em Oxford e suscitando protestos semelhantes
em campi universitários norte-americanos. Encontramos
hoje trabalhos académicos que se debruçam sobre o Fallism (derrubismo?)
como teoria política, que combinaria elementos do pensamento descolonizador, do
pan-africanismo, da consciência negra e do feminismo radical negro.
A
controversa figura de Cecil Rhodes, com a sua doutrina imperialista e um legado
entendido como tendo lançado as bases para o Apartheid, foi sempre alvo de
polémica, sendo legítima a discussão em torno da sua presença simbólica na UCT
(a estátua seria removida um mês depois dos protestos). Mas como é dito no Manifesto do RMF, embora “a estátua seja o ponto de partida
natural deste movimento”, “a sua remoção não significa o fim, mas o princípio
do longo processo em atraso de descolonizar a universidade”.
Mas o que é isso de descolonizar a
universidade?
1Descolonizar a universidade
Para além de exigir a remoção de
todas as estátuas e placas que celebram a supremacia branca, o Movimento RMF
apresentou no seu manifesto uma lista de medidas a adoptar pela universidade.
Vejamos algumas delas:
implementar
um currículo centrado em África e nos subalternos, tratando os discursos
africanos como ponto de partida e analisando as tradições ocidentais apenas se
forem relevantes para a experiência africana;
alterar
radicalmente a representatividade dos professores negros;
rever
as limitações de acesso a posições seniores para académicos negros,
questionando a noção de “excelência académica” (que é usada para limitar a
progressão de académicos e estudantes negros dentro da universidade);
aumentar
a representatividade de académicos negros nos órgãos de decisão (que, dominados
por homens brancos, perpetuam o racismo institucional);
reavaliar
os critérios que determinam as áreas de investigação (passando de áreas
centrais para a branquitude para áreas que são relevantes para a vida das
pessoas negras);
introduzir
um currículo e áreas de investigação relacionados com justiça social e a
experiência das pessoas negras;
adoptar uma política de admissões que use explicitamente a raça como
indicador de desvantagem, atribuindo prioridade a candidatos negros.
Estas exigências revelam como a UCT
aparece aos olhos dos manifestantes como uma universidade impregnada de uma história,
currículos e professores brancos – de acordo com um privilégio branco que
desumaniza as pessoas negras: “Esta desumanização é uma violência imposta
apenas contra pessoas negras por um sistema que privilegia a branquitude.”
A universidade surgiria, assim, não como um espaço livre de produção
de saber e conhecimento, mas como um local de violência – ideia que encontramos
também em Grada Kilomba,
académica activista e artista portuguesa: “[A]
academia não é um espaço neutro nem mero espaço de conhecimento e sabedoria, de
ciência e saber, é também espaço de v-i-o-l-ê-n-c-i-a.”
Essa violência aconteceria não só de
forma simbólica (com a existência de estátuas que celebram figuras ambíguas),
mas também com a exclusão sistemática de pessoas negras e de formas de pensar
não-brancas das estruturas e instituições académicas.
2O centro e as margens
Para compreendermos este argumento
temos de ter em conta uma tríade de autores, que se revelaram essenciais para a
consolidação do pensamento pós-colonial:
O primeiro deles é Antonio Gramsci, que se tornou fonte
de várias correntes de pensamento, desde os estudos culturais ao pós-marxismo. No que ao
pensamento pós-colonial diz respeito, importa considerar as reflexões de
Gramsci sobre os subalternos – conceito usado nos seus textos essencialmente
para referir o Mezzogiorno
italiano, mas que, nos anos de 1980, seria apropriado pelo grupo
de estudos sul-asiáticos, o Subaltern
Studies Group para
denunciar os efeitos do colonialismo. De acordo com Gramsci, os grupos subalternos são sempre vistos
pelas elites como bárbaros e patológicos, pelo que a cultura hegemónica cria
barreiras para impedir que as suas vozes sejam ouvidas.
A segunda referência incontornável para a crítica pós-colonial é Michel Foucault, em particular as suas ideias sobre as relações entre
poder e conhecimento. Para
Foucault, aquilo que é considerado conhecimento resulta sempre das relações de
poder e da luta pelo poder, i.e., pela possibilidade de produzir discursos.
Aqueles que não detêm o poder devem resistir e lutar pela produção de discurso
e conhecimento, ou seja, pela possibilidade de fazer ouvir a sua voz.
Em terceiro lugar, importa referir Franz Fanon (autor que
revisitaremos em breve), cujas
reflexões de cariz psicanalítico contêm duas ideias principais: a
essência do colonialismo consiste em negar e recusar a humanidade dos povos
colonizados, pelo que cabe ao homem negro resistir e libertar-se da mentalidade
branca e afirmar um espaço de interpretação e fala que resulte da sua
identidade.
Estes autores e estas ideias estão na
base do desenvolvimento dos estudos pós-coloniais, em particular com Edward Said, que na obra Orientalismo (1978) desenvolve
o argumento de que o Oriente é uma categoria inventada pelo Ocidente, que
o transforma desse modo num produto do pensamento ocidental; mas também
com Gayatri Spivak, que no
texto Pode a subalterna tomar a
palavra? nos coloca no centro da reflexão sobre a
possibilidade de agência dos grupos oprimidos.
Podemos
reorganizar todas estas ideias numa imagem que traduz posições
de poder: no centro
encontram-se os grupos privilegiados, que podem falar e ser ouvidos e
determinam as condições da fala e do conhecimento; nas margens encontram-se os
grupos oprimidos, silenciados e sem agência, i.e., sem possibilidade de fazer
ouvir a sua voz e de produzir conhecimento considerado válido. Notemos como este tipo de imagética é
explorado por Boaventura de Sousa Santos quando fala em Epistemologias
do Sul e defende
o fim do imperialismo cognitivo, imposto pela visão eurocêntrica (a epistemologia do Norte global).
3Descolonizar o conhecimento
Podemos
agora avançar na nossa explanação: os estudos pós-coloniais incidem
essencialmente sobre questões epistemológicas, i.e., relativas à produção de
conhecimento – considerando que essa produção não é neutra, mas está sujeita às
mesmas dinâmicas de poder que regulam toda a sociedade. Como diz Foucault (citado por Spivak): “A episteme
é o “aparelho” que torna possível a separação, não do verdadeiro e do falso,
mas do que não pode ser caracterizado como científico.”
Ora, este argumento tem enormes
implicações para o pensamento científico:
A Ciência não seria a procura pela Verdade – ou a tentativa, ao estilo popperiano, de
nos aproximarmos progressivamente da Verdade –, mas seria simplesmente o resultado de relações de poder, que
determinam que conhecimento deve ser considerado científico (e ocupar o centro)
e que conhecimento deve ser relegado para as margens.
Essa repulsão para as margens
constituiria aquilo que, em linguagem identitária, se designa por violência
epistémica: exerce-se violência porque se elimina a possibilidade
de certos grupos serem e se percecionarem como igualmente capazes de produzir
conhecimento – e esta teria sido
uma das consequências do processo de colonização.
Assim, de acordo com a lógica
identitária, aquele conhecimento que,
ao longo dos últimos séculos, foi considerado universal, objectivo e neutro resultaria
antes de uma identidade específica: a do homem branco, que procurou,
desde o século XVII, impor o seu modo de pensar às restantes identidades.
Deste modo, uma
descolonização completa e efectiva teria de passar também pela descolonização
do conhecimento, reconhecendo que a academia é um espaço de violência e que os critérios usados para a produção de conhecimento devem ser revistos
por forma a incluírem outras experiências que foram até agora silenciadas. E embora não se trate de uma
consequência necessária e óbvia, para a perspetiva identitária isto significa
abdicar de ideias tão caras ao pensamento científico, como os conceitos de objectividade,
distanciamento e racionalidade – que são entendidos como traços da branquitude.
Regressemos às Memórias da Plantação, de Grada Kilomba:
“[C]omo académica, dizem-me
habitualmente que o meu trabalho sobre o racismo quotidiano tem muito
interesse, mas não é realmente científico, uma observação que ilustra a ordem
colonial em que residem as/os académicas/os negras/os: “Você tem uma perspetiva
muito subjectiva”, “muito pessoal”, “muito emocional”, “muito específica”;
“isto são factos objetivos?”. Este tipo de comentários opera como máscara, que
nos silencia as vozes mal falamos. Permitem que o sujeito branco volte a
posicionar os nossos discursos nas margens, como conhecimento desviante,
enquanto os seus discursos se mantêm no centro, como norma. O que dizem é científico,
o que nós dizemos não o é:
imparcial/parcial;
elas/eles têm factos, nós temos opiniões;
elas/eles
têm o conhecimento, nós temos experiências.”
Quão estranho parece tudo isto? A verdade é que estas exigências têm
vindo a ocupar o espaço académico anglófono e já se começam a sentir na Europa
continental. As suas implicações e consequências não podem ser desprezadas e é
sobre elas que nos debruçaremos no último texto antes de férias.
UNIVERSIDADES EDUCAÇÃO POLITICAMENTE
CORRECTO SOCIEDADE
COMENTÁRIOS:
Antonio Tavares: Só falta fazer uma lei a recomendar que os edifícios
de ensino superior em países africanos passem a ter todas as paredes exteriores pintadas de cores escuras (preto,
cinzento escuro etc). Maria
Augusta Martins: Quanto mais selvagens escutamos
mais selvagens ficamos! Pobre Portugal: Na minha opinião 2+2=5. Se não
concordarem são racistas. José Vaz:
Dentro de máximo
100 anos pouquíssimos brancos haverá no mundo e então na Europa nenhum, é só
fazerem as contas da gente que tem de África, países Árabes e muçulmanos, Índia
e China depois vejam quantos chegam à Europa todos os dias, a seguir comparem o
número de filhos deles com a média europeia e por fim juntemos a isso o Ódio
que a maioria dessas pessoas tem ao Ocidente e sua cultura. Conclusão: vamos
desaparecer completamente e muito por nossa culpa. Ark Nabul: É preciso disseminar a burrice para que o sábio
ascenda à divindade, posição a partir da qual poderá governar impunemente. Lily Lx: Esta gente é doida. Deixem o
ocidente em paz e vão para África africanizar o mundo. Racistas. Meio Vazio: Cada vez mais "entregues à
bicharada"... Rui Lima: Plenamente de acordo com os comentários da autora,
perante a mais absurda realidade dos actuais racistas negros.
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