segunda-feira, 31 de março de 2025

Os efeitos da globalização

 

Analisados cientificamente – filosoficamente - por PATRÍCIA FERNANDES. E tudo por via das descolonizações, na origem destes estudos moralistas, criadores de compromissos étnicos e éticos … ou talvez justificativos da falta destes últimos, por vezes, sobretudo da parte dos motivados para lhes apontar os efeitos negativos, no caso das colonizações.

Factos e percepções

Talvez noutro planeta, em que tenhamos mentes que procuram a verdade em vez de mentes morais, as políticas cosmopolitas façam sentido. Neste mundo convém que estejam de acordo com a nossa natureza.

PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

OBSERVADOR, 31 mar. 2025, 00:201

1A hipótese de Gláucon

Continuemos com Jonathan Haidt e a sua hipótese, levantada no livro A mente justa, de que a moralidade é uma ferramenta adaptativa na medida em que possibilita aos homens cooperarem em grandes grupos e sem relação de parentesco, tornando-se, assim, mais capazes de garantir a sobrevivência.

Haidt recorre ao segundo livro d’A República, quando Platão coloca na boca de Gláucon a experiência do anel de Giges: esse anel permite que nos tornemos invisíveis e, por isso, capazes de cometer todos os actos que nos sejam favoráveis sem sermos vistos pelos outros. Segundo Gláucon, nenhum homem que possuísse um tal anel agiria com justiça:

 “não haveria ninguém, ao que parece, tão inabalável que permanecesse no caminho da justiça, e que fosse capaz de se abster dos bens alheios e de não lhes tocar, sendo-lhe dado tirar à vontade o que quisesse do mercado, entrar nas casas e unir-se a quem lhe apetecesse, matar ou libertar das algemas a quem lhe aprouvesse, e fazer tudo o mais entre os homens, como se fosse igual aos deuses.”

De acordo com esta hipótese, ninguém é justo por vontade própria, mas apenas por constrangimento. É o julgamento dos outrosé porque somos seres morais e moralistas – que nos obriga a adequar o nosso comportamento às regras morais da sociedade em que estamos inseridos. A hipótese de Gláucon está, assim, de acordo com a ideia de que a moralidade faz parte do nosso design evolutivo para permitir a cooperação: é mais importante ser visto como agindo moralmente do que ser moral pois é isso que gera confiança nos outros membros do grupo.

A perspectiva opostaa de Platão, expressa por Sócrates no diálogoé designada como perspetiva racionalista: a razão orienta-nos no conhecimento da justiça e o comportamento adequa-se a esse conhecimento. De acordo com Sócrates, é mais importante ser virtuoso do que parecer virtuoso – o que nos dá uma concepção intrigante da natureza humana: as pessoas seguiriam princípios que consideram justos mesmo que parecessem injustos aos olhos dos outros. Devemos, provavelmente, a esta visão de Platão a ideia de que os filósofos são pessoas excêntricasembora não especialmente mais virtuosas do que os restantes mortais.

As religiões (sobretudo as monoteístas) revelam-se, neste sentido, mais perspicazes do que Platão: a existência de um Deus que tudo vê e tudo sabe torna o anel de Giges ineficaz. E daí que tudo seja possível após a morte de Deus: sem esse constrangimento moral, os limites ao comportamento do homem tornam-se frágeis – demasiado frágeis quando somos demasiado humanos.

2Abelhas e chimpanzés

Jonathan Haidt propõe que pensamos a natureza humana como sendo 90% chimpanzé (e, nessa medida, somos eminentemente egoístas, na busca permanente de satisfazer objectivos próprios) e 10% abelha (porque somos capazes de colaborar em grupos maiores). Essa competência colaborativa permite superar o nosso egoísmo ao activar o nosso lado altruísta e solidário e é accionada como um interruptor, a que Haidt chama interruptor-colmeia.

O interruptor-colmeia faz com que sintamos a pertença ao grupo e fortalece as nossas relações dentro desse grupo através de duas ferramentas principais: a oxitocina e os neurónios-espelho. Mas há um aspecto relevante a reter: estas ferramentas funcionam apenas dentro do grupo e não produzem efeito para a humanidade em sentido amplo. Temos mentes grupais, evoluímos dentro de tribos, e é por essa razão que a investigação em psicologia evolutiva mostra que somos mais solidários e empáticos para com aqueles que se assemelham a nós.

Mais uma vez, a percepção é fundamental. As pessoas que se parecem connosco accionam o interruptor-colmeia e quando não há essa semelhança física precisamos de sinalizações de pertença ao grupo, como encontramos nos estudos etnográficos que descrevem códigos de pintura e vestuário. Mas também o sabemos por experiência própria quando vamos ao futebol e sentimos, na aproximação ao estádio do nosso clube, que estamos a chegar a casa.

O que vestimos e como nos comportamos constituem sinais que enviamos permanentemente aos outros – e, acima de tudo isto, o modo como falamos. A língua liga-nos de maneira muito intensa e é por isso que tendemos a sentir desconforto quando estamos no nosso país e não ouvimos falar português à nossa volta: não nos sentimos em casa, no nosso grupo, em segurança. E é também por isso que tendemos a sentir-nos melhor em países que falam a nossa língua e nos sentimos ligados a essas pessoas de forma mais intensa do que a pessoas de outras nacionalidades.

Isto acontece porque a sinalização que nos é dada pela língua (e pelos restantes elementos) é a de pertença à mesma moralidade e isso activa o nosso lado cooperativo e diminui a ansiedade competitiva que sentimos quando não estamos entre os nossos. É uma reacção biológica natural: quando não estamos no nosso grupo, sentimo-nos inseguros.

3Factos e perceções

Considerando os aspectos anteriores, a oposição entre factos e percepções, que tem marcado o espaço público entre nós nos últimos meses, deve ser enquadrada como mais um exemplo de uma longa lista de discussões que ignora o corpo e o modo como desenvolvemos esquemas mentais e psicológicos no processo de evolução. Na verdade, o ser racional de Platão – retomado por Descartes e Kant – é uma mera invenção filosófica e todo o conhecimento acumulado ao longo do século XX – desde a neurologia à psicologia evolutiva – demonstram os erros antropológicos dessa hipótese filosófica.

Em Os perigos da percepção, BOBBY DUFFY enumera a longa lista de vieses e limitações que condicionam a nossa forma de pensar e recupera as estratégias que têm vindo a ser propostas por muitos investigadores a partir da seguinte constatação: os seres humanos dificilmente cedem ou alteram as suas ideias perante factos – a nossa mente não evoluiu para se tornar um cientista na procura pela verdade, como diz Jonathan Haidt. E por isso a opção de “atirar factos” para cima das pessoas (como muitos políticos, jornalistas e comentadores habitualmente fazem) é uma estratégia pouco sensata.

O primeiro problema com esta opção é a de que ela tende a produzir o efeito contrário: sentimos que estamos a ser atacados, insultados, diminuídos e tendemos a reagir defensivamente. Em sentido oposto, os estudos revelam que devemos apelar ao lado mais emotivo – tentando chegar ao elefante, na imagem de Haidt – e, por isso, estratégias narrativas, que apelam às emoções e partem de histórias individuais, revelam-se muito mais eficazes.

O segundo problema de “apelar a factos” é que os “factos” políticos tendem a ser produto de interpretações prévias. Um exemplo claro no que diz respeito à discussão sobre imigração prende-se com o uso das palavras “imigrante” e “cidadão português” e que se torna evidente quando se fala no número de imigrantes em Portugal para mostrar que a “percepção” da maioria das pessoas está errada. Pode parecer que estamos a falar de “factos”, mas estas informações resultam de um uso disputável e ambíguo das palavras, uma vez que “cidadania” e “nacionalidade” perderam hoje parte do seu sentido. No caso português, isso é bastante claro na medida em que adquirir a cidadania portuguesa se tornou um mero processo burocrático e de tal forma facilitado que, nos últimos anos, se transformou numa mercadoria que cidadãos estrangeiros ponderam adquirir, em comparação com outras, no mercado global da “cidadania”. Mas a maioria das pessoas continua a olhar para a cidadania a partir do seu sentido tradicional: como o reconhecimento de pertença a uma comunidade que, dentro das fronteiras de um determinado território, partilha um compromisso, uma responsabilidade e uma moralidade, tornando possível cooperar para lá dos laços de parentesco e estabelecer projectos colectivos para o futuro.

Em terceiro lugar, não vale a pena “atirar factos” para cima das pessoas quando os factos ignoram a nossa dimensão biológica. É o que acontece com o chamado benefício dos imigrantes para a segurança social. Os sistemas contributivos do Estado Social assentam numa lógica de reconhecimento, confiança e solidariedade: aceitamos (alguns com maior facilidade do que outros) uma contribuição obrigatória para um bolo comum a partir de uma lógica de solidariedade que se baseia no reconhecimento do outro como parte do nosso grupo. Trata-se de um sistema perspicaz e que funcionou durante décadas porque está de acordo com a nossa lógica grupal: contribuímos porque reconhecemos que a outra pessoa pertence ao nosso grupo. Mas a partir do momento em que nos afastamos de uma solidariedade grupal e a segurança social passa a ser apresentada como uma mera ferramenta burocrática, a lógica da solidariedade cai por terra. Como demonstram os psicólogos sociais, nós não produzimos oxitocina para com a humanidade – só para com o nosso grupo. E é por essa razão que David Goodhart escreve há muitos anos sobre o problema da diversidade a mais (o artigo de Goodhart é de 2004!). Um país too diverse é um país que não mantém redes de confiança e solidariedade (é biologicamente improvável) e o Brexit é, também, uma resposta democrática a essa diversidade a mais – mesmo contra todos os factos que foram atirados para cima dos britânicos.

Um quarto aspecto que importa ter em conta é o facto de os estudos demonstrarem que, mais do que a proporção de imigrantes, o que importa é a rapidez com que a mudança ocorre. Em Povo vs. Democracia, Yascha Mounk analisa as tendências de voto nas grandes cidades (com maior diversidade étnica) por comparação com as pequenas cidades, com menor diversidade mas em que a subida da imigração foi muito rápida. A reacção das populações contra a imigração é muito mais forte nestas últimas porque reagem a essa rápida mudança e à angústia demográfica que decorre de a moralidade partilhada estar a ser posta em causa. A mudança rápida gera a sensação de que todos podem accionar o anel de Giges e não respeitar as regras morais que eram partilhadas e que estão muito para lá do mero cumprimento da lei. Esse sentimento de perda e deslaçamento traduz-se numa sensação de insegurança e é nesse sentido que as pessoas associam insegurança à imigração: não precisam de números para o sentir, nem os “factos” desmentem a sensação que têm. A de que já não se sentem entre os seus e que por isso não estão seguras.

Talvez num outro planeta, em que os seres vivos tenham evoluído para ter mentes que procuram a verdade em vez de mentes morais, estas políticas cosmopolitas façam sentido. Neste mundo, convém que as políticas estejam de acordo com a nossa natureza.

FILOSOFIA POLÍTICA      POLÍTICA

COMENTÁRIOS

Fernando Oliveira: Artigo, como os anteriores, simplesmente Muito bom! Do maior interesse no mundo em que caímos.

De facto


Os rapazes liam muito Júlio Verne, mas não me lembro de ver essa leitura entre as raparigas. Nós, as moças, preferíamos os livros de amor, de capa azul, de escritoras francesas ou espanholas, as Dellys as Max du Veuzit - com a sua obra-prima “John chauffeur russo” e outros - e as Magalis, sucedâneos aos das colecções infantis e mais tarde a colecção de capa amarela, que tinha obras-primas, com que íamos aperfeiçoando o conhecimento, talvez falso, ou menos verdadeiro, do mundo. Mas não esqueço “CORAÇÃO”, e “A MARAVILHOSA VIAGEM DO NILS HOLGERSON ATRAVÉS DA SUÉCIA”, que o professor de português da minha irmã aconselhara às moças do 3º ano (7º actual) e juntamente os livros das Irmãs Bronte e tantas obras de capa amarela, da minha abertura para a vida do sentimento - naturalmente tabu na família, por pudor vindo dos confins dos tempos. É certo que havia colegas de maior intelectualidade que não se limitavam a esses livros para a adolescência, provavelmente possuidoras as suas famílias de bibliotecas mais vastas, mas a estante do meu pai, além dos livros de autores portugueses – que me foram muito úteis – nada tinha a ver com os de capa azul da minha avidez devedora a quem mos emprestava. Mas a crónica do Dr. JAIME NOGUEIRA PINTO é expressiva do conhecimento de um autor de aventuras, que os rapazes, sobretudo, liam, e o retrato que dele faz de viageiro pelo mundo, e dos prazeres que proporcionou, a si próprio e a tantos outros rapazes, é bem expressivo e necessário nos dias de hoje, em que raramente se vê a mocidade a ler, como “no meu tempo adolescente” ou mesmo no posterior, do Dr. Jaime Nogueira Pinto, que não se importa de assim prestar expressiva homenagem a um escritor enriquecedor do saber viageiro pelo mundo, e não só…

«O grande imaginador: Nos 120 anos da morte de Júlio Verne»

Os heróis de Verne, como o capitão Nemo e Cyrus Smith, eram como que “homens novos”, homens de uma nova Renascença, justos, bons, sábios. E, de um modo geral, os romances de Verne acabavam bem.

JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador

OBSERVADOR, 29 mar. 2025, 00:1817

Júlio Verne, popularmente considerado o precursor ou o antepassado próximo da literatura de ficção científica, morreu há 120 anos, a 24 de Março de 1905.

Fui desde cedo um leitor apaixonado da ficção científica que me chegou, como à maior parte dos da minha geração, pela colecção Argonauta dos Livros do Brasil. A Argonauta apareceu em 1953, e foi talvez em 1956, nas vésperas de entrar para o liceu D. Manuel II, que comecei a ler os livros, à medida que iam saindo. E fi-lo regularmente, aí até ao número 200.

Li os primeiros números no Verão, numa praia da Foz do Douro, uma dessas praias do Estado Novo dos anos 50 cheias de regras e rituais – com cabo do mar, baloiços, fatos de banho com peitilho ou camisola interior e três horas de “digestão”. Horas sagradas, que tínhamos de passar “a descansar”, entre o almoço frugal de sanduiches mistas e o banho das cinco da tarde.

Anos mais tarde, no Algarve, o meu sobrinho Pedro havia de me perguntar: “Tio Jaime, acredita na digestão?” Nessa altura já tinha perdido “a fé”, mas quando era novo, todos acreditávamos na digestão. E mesmo que não acreditássemos tínhamos de recolher à barraca durante três horas, independentemente das nossas crenças e vontades. Por isso, foi estendido na toalha de franjas, debaixo da lona grossa da barraca que li muita Argonauta (também se acreditava que não era bom apanhar o sol a pique da hora do almoço e que a leitura não fazia mal ao estômago).

Os livros, em formato de bolso, tinham umas capas lindas, de Lima de Freitas e de Cândido Costa Pinto. Eram de Costa Pinto a capa do primeiro número da colecção – Perdidos na Estratosfera, de A. M. Low – e a de A Sexta Coluna, de Robert Heinlein, um verdadeiro épico do género que então me impressionou consideravelmente. E foi assim que fui descobrindo os grandes escritores da Science Fiction: a poesia das Crónicas Marcianas, de Ray Bradbury, que em Fahrenheit 451 identificou uma distopia de destruição de livros cara aos totalitários de todas as tribos; os robots e a robótica e os ciclos históricos da Fundação e do Império, de Isaac Asimov; Arthur C. Clarke e a sua Odisseia no Espaço; o extraordinário mundo feudal de Frank Herbert, o criador de Dune, que David Lynch adaptaria ao cinema; e outros, como A. E. Vvan Vogt, Fredric Brown, Brian Aldiss, Poul Anderson e Philip K. Dick, um dos “últimos”. E a sobressair num género dominantemente masculino, Ursula Le Guin, a criadora do fabuloso Feiticeiro de Terra-Mar.

Mas a minha iniciação na “literatura de antecipação”, tal como a de muitos, em Portugal e no mundo, tinha acontecido antes, com as “viagens extraordinárias” de Júlio Verne, onde se misturavam o imaginário, a ciência e a geografia.

Uma literatura de antecipação

Não era bem ficção científica era uma “antecipação” imaginativa a partir de invenções e acontecimentos relativamente próximos. Não nos podemos esquecer – e às vezes esquecemo-nos sob o impacto das surpresas e maravilhas científicas e técnicas da nossa Idade – que o núcleo duro das invenções que ainda fazem o nosso quotidiano são da segunda metade do século XIX: o telégrafo, a electricidade, o telefone, o cinema, o automóvel, o avião. Ora Júlio Verne nasceu em 1828 e morreu em 1905, ou seja, viveu o politicamente agitado século XIX francês, desde a monarquia tradicional restaurada de Carlos X de Bourbon até à Terceira República jacobina e anti-clerical de Loubet e Combes.

Não me lembro exactamente qual foi o primeiro livro de Verne que li, mas quase que ia jurar que foi A Ilha Misteriosa. A trama é um modelo da narrativa verneana, inspirada no clássico Robinson Crusoe, de Daniel Defoe (1719), no Robinson Suíço, de Johann Wyss (1812), e numa narrativa próxima do tempo do autor, a de François Édouard Raynal, que naufragara nas ilhas Auckland, no Pacífico Sul.

A Ilha Misteriosa saiu primeiro em folhetim jornalístico, entre Janeiro de 1874 e Dezembro de 1875, com ilustrações de Jules Férat. Faz parte das “viagens extraordinárias”, uma série de romances em que Verne combina aventura, maravilhoso, mistério, geografia, imaginação, ciência e tecnologia.

Durante o cerco de Richmond, cinco prisioneiros, cinco abolicionistas, conseguem escapar em balão; depois de cinco dias e quase dez mil quilómetros, chegam a uma ilha deserta do Pacífico. A personagem mais importante do grupo é o engenheiro Cyrus Smith, que leva com ele o criado Nab; há um jornalista, Gedeon Spillet, um marinheiro, Pencroff, e o jovem Herbert. Cyrus é o típico herói de Verne – um homem de coragem, de cultura e de ciência, um chefe natural, que não só vai assegurar a sobrevivência do grupo como a “colonização acelerada” da ilha, valendo-se da convergência de talentos e conhecimentos dos expedicionistas. Assim, a ilha “Lincoln” transforma-se num espaço civilizado, sob o qual vela o grande herói verneano, o capitão Nemo, o do Nautilus e das  0.000 Léguas Submarinas.

Verne nasceu em Nantes, na ilha Feydeau, perto do Quai Jean-Bart, onde passou toda a infância, o que lhe estimulou o gosto da viagem, do mar, das ilhas. Foi para Paris nos anos 1850 onde conheceu, além de Alexandre Dumas e Victor Hugo, Jacques Arago, viajante e geógrafo, que completara uma volta ao mundo em 1817, a bordo do l’Uranie. E, claro, o seu editor Hetzel, que encontrou em 1862 e com quem iria ter uma colaboração modelo e de longa duração. Um editor crítico que levantava objecções e fazia sugestões que o autor aceitava, também criticamente, como bem o documenta a correspondência entre os dois.

Verne e os outros

Em 1864, Verne publicou Cinq Semaines en Ballon, o primeiro romance da sérieviagens extraordinárias”, que um crítico classificou como “roman cientifique”. Théophile Gautier, referindo-se ao novo género, falou em “quimera cavalgada e dirigida por um espírito matemático”; outros consideram-no uma “maravilha científica” e chamaram a Verne “pioneiro do romance científico”.

Por esse tempo, Edgar Alan Poe já publicara os contos e A Narrativa de Arthur Gordon Pym, e Émile Zola, num artigo de 1866, não pôde deixar de comparar “o pesadelo Edgar Poe” à “fantasia amável e instrutiva” de Verne. Outros críticos, reconhecendo a originalidade do fantástico de Poe na literatura de viagens de Homero a Defoe, passando pelas narrativas marítimas dos portugueses, reconheceriam também em Verne a originalidade da convergência “viagem, geografia, ciência, técnica e aventura”.

Os heróis de Verne, como o capitão Nemo e Cyrus Smith, eram como que “homens novos”, homens de uma nova Renascença, justos, bons, sábios. E, de um modo geral, os romances de Verne acabavam bem. Quando comparamos o fantástico de Júlio Verne, com as suas máquinas e invenções que procuram sempre respeitar os dados científicos e técnicos do tempo, e a vindoura literatura de futuríveis do século XX – as distopias clássicas de Huxley, Orwell ou Bradbury, com os horrores das sociedades perfeitas de Brave New World, ou a tirania institucional de 1984 ou de Fahrenheit 451 – a diferença e a ruptura são chocantes. E não terá sido só por o século XX ter visto as primeiras utopias postas em prática, porque nos finais do século XIX, a partir de 1895, já H. G. Wells tinha escrito A Máquina do Tempo, (1895), O Homem Invisível (1897), A Guerra dos Mundos e Os Primeiros Homens na Lua (1901).

Verne escrevera “Da Terra à Lua”em 1865 e era, até por geração, o pioneiro: a crítica não resistiria à comparação. E mesmo em França, onde os livros de Wells foram traduzidos a partir de 1898, revistas como o Mercure de France, a Revue de Paris e a Revue des deux mondes preferiam o inglês a Verne.

A morte de Verne, em 1905, trouxe um clamor de elogios e até um certo espírito de reparação dos que tinham desdenhado o compatriota, preferindo o inglês. Reparação com algum exagero compensatório, como o do crítico Adré Lamie, que comparou o autor de A Ilha Misteriosa a Cervantes e a Balzac.

Verne é mais realista, mais científico, mais hábil a encontrar e encadear mil peripécias do que Wells; Wells é mais filosófico, mais problemático, mais desligado do técnico-científico. Verne é optimista em geral e moderamente optimista quanto à natureza humana e, além disso, é um homem de fé no Criador e na Criação. Wells não parece alinhar nesse optimismo.

Talvez por isso Verne seja um autor para a juventude, para a iniciação num mundo de aventura, como Robert Louis Stevenson, ou James Fenimore Cooper, ou Mark Twain, enquanto Wells é um precursor do século XX. Um século que não trouxe as maravilhas que Verne tinha previsto, em que os submarinos serviram para afundar cargueiros civis e em que as grandes invenções foram acontecendo sobretudo a partir das guerras e para servir a guerra.

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COMENTÁRIOS (de 17)

Coxinho: Creio que comecei cedo demais a explorar o universo de Júlio Verne. Consequência imediata foi a preferência desviada para a leitura de livros "mais próprios" para garotos da minha idade, ou seja, menos elaborados, menos exigentes do ponto de vista da formação científica e literária. Hoje arrependo-me de ter falhado essa experiência tão estimulante. Mas a verdade é que também já não seria capaz, hoje, de colmatar essa falha...                  Ana Luís da Silva: Jaime Nogueira Pinto com este artigo despertou-me saudosos momentos vividos na leitura das aventuras de Julio Verne, sobretudo nas férias, e acrescento outros títulos: Miguel Strogoff, Viagem ao Centro da Terra, Dois Anos de Férias, que devorei na versão livro de bolso Europa América, e também A Volta ao Mundo em 80 Dias, Escola de Robinsons, A Caça ao Meteoro, O Doutor Ox e outros da Livraria Bertrand. São aventuras enxutas de neuroses e psicoses, centradas em resolver desafios e não em perorar sobre problemas. Uma leitura saudável, limpa das extravagâncias imorais e amorais da nossa época perturbada, que recomendo para a leitura dos adolescentes. Muito a propósito para servir de contrabalanço à mini-série televisiva de que toda a gente fala e que não vou ver (Adolescência) por não precisar de passar parte do meu tempo livre a carpir sobre os males deste nosso tempo, degenerescente por razões que estou saturada de conhecer. Mais uma vez, muito grata ao autor pelas linhas que ao sábado escreve e partilha com os leitores do Observador.                 Carlos Chaves: É por ter faltado à nossa juventude tudo isto, estímulo da imaginação pela leitura, regras e códigos de conduta, férias em família e amigos, instrução e educação digna destes nomes... que se calhar estamos a assistir a jovens desconsertados, como há pouco assisti na SIC Notícias, uma jovem a dizer a propósito dos jacarandás em Lisboa, que as árvores têm mais direito a estarem ali do que as pessoas!!!!                 miguel cardoso: Leitor de Júlio Verne desde muito novo (comecei aos 7 anos, hoje tenho setenta) por influência do meu Avô, médico distinto, tendo exercido a sua actividade em Castelo Branco entre 1914 e meados dos anos cinquenta. Li-os nos seus exemplares, alguns ainda do sec.XIX editados pela David Corazzi, Editor, com capas lindíssimas e sugestivas, escritos na ortografia de antes do acordo ortográfico do início do sec XX, onde aceitar se escrevia "acceitar" e oferecer, "offerecer", apóstrofos e "ph" abundantes. Acrescia que normalmente tinham duas ilustrações feitas à pena, a preto e branco, de grande romantismo e qualidade. Juntando com o diálogo divertido com esse meu Avô, num encontro de gerações em que o antes e depois se encontravam e complementavam. E eu aprendia e formava-me. Marcou-me isto para toda a vida e não posso deixar de agradecer aos Senhor Dr. Jaime Nogueira Pinto ter-me trazido esta lembrança.           madalena colaço: Como refere JNP, Verne nasceu e cresceu nesse politicamente agitado século XIX francês. Século, como também lembra, de invenções que fazem ainda parte do nosso quotidiano. A 3 de junho de 1839, François Arago, matemático, físico, astrónomo, eleito deputado pelos Pirenéus Orientais, dirigiu-se aos seus colegas no palácio Bourbon, para que estes aprovassem um projecto lei que concedia ao Sr Daguerre e ao Sr Nièpce uma pensão vitalícia pela cedência do processo de fixação das imagens obtidas na câmara escura. Nesse magnífico discurso, Arago, refere que ele próprio testara o processo para que não restassem dúvidas de que se tratava de uma invenção e que esta invenção prestaria à Arqueologia e Belas-Artes serviços de valor. Garantia que o processo poderia ser utilizado por qualquer cidadão e que esperava também retirar benefícios para a ciência. Finalizou, apresentado várias vistas de Paris, as primeiras fotografias da cidade, que Daguerre fizera no seu estúdio. Samuel Morse, que estava em Paris a divulgar o seu telégrafo, cruza-se com estas imagens. Fica de tal forma impressionado com esta técnica que reproduzia com toda a exactidão a natureza, que escreve ao seu irmão referindo "que até uma pequena letra de uma loja, que escapa ao nosso olho, é visível à lupa". Na época de Verne a política é agitada, mas o dinheiro dos impostos era muito bem escrutinado para onde ia e para que servia. Hoje, qual o político, que se interessa em detalhar para onde vai o dinheiro dos nossos impostos?

domingo, 30 de março de 2025

Lembro-me bem

 

Por essa altura de rodopio em torno de Salazar e da inflexibilidade deste, que orgulhava alguns de nós, eu lamentei, contudo, lá em África, a morte de Kenedy, por ter filhos tão pequeninos, frase que mereceu as troças dos meus eruditos companheiros  de café, o Raposo Pereira, o Rui Knopfli, o Eugénio Lisboa, o Rui Lacerda,  pelo meu desligamento da realidade, confiante, sempre,  nos valores defendidos por Salazar, embora naturalmente humana e não vingativa. O 25 de Abril veio provar, contudo, que não éramos todos confiantes assim, já Salazar morrera e Marcelo Caetano desistiria, a seguir. E nós por aqui vamos indo, olhando para trás de nós e tendo pena. Inutilmente, é claro. Evolução, mudança, volte face, tudo coisas que acontecem ao longo dos tempos, provando que somos seres pensantes, inconstantes, uns dos outros divergentes… Gostei do texto que segue, que me chegou pelo correio electrónico e que me fez recordar.

União Nacional

1 d

Salazar Recusou Milhões Pela Independência das Ex-Colónias

António Oliveira Salazar rejeitou uma proposta dos Estados Unidos para a independência das ex-colónias portuguesas a troco de mil milhões de dólares (782 milhões de euros), porque "Portugal não estava à venda", revela um ex-responsável norte-americano no seu livro "Engaging Africa: Washington and the Fall of Portugal's Colonial Empire".

Segundo o secretário de Estado adjunto para os Assuntos Africanos durante a administração Clinton, Witney Schneider, o ex-presidente do Conselho rejeitou a proposta americana em 1963, durante um encontro com um enviado da Casa Branca.

O livro detalha minuciosamente, com base em documentos oficiais e entrevistas com personalidades norte-americanas e portuguesas, as relações dos Estados Unidos com Portugal e com os movimentos independentistas das ex-colónias portuguesas, em particular Angola e Moçambique, desde o início dos anos 60 até à independência de Angola, em 1975.

De acordo com o autor, em 1962, o assistente do director adjunto de planeamento da CIA, Paul Sakwa, elaborou um plano denominado "Commonwealth Plan", que visava convencer as autoridades portuguesas a aceitar o que a CIA considerava ser a inevitabilidade da independência das colónias portuguesas.

O plano previa que Portugal concedesse a auto-determinação a Angola e Moçambique após um período de transição de oito anos. Enquanto isso, seria organizado um referendo nas duas colónias para se determinar que tipo de relacionamento seria mantido entre os dois territórios e Portugal após a independência.

Durante esse período, os dirigentes nacionalistas angolano Holden Roberto e moçambicano Eduardo Mondlane receberiam "o estatuto de consultores assalariados" e seriam preparados para a liderança dos novos países.

"Para ajudar Salazar a engolir a pílula amarga da descolonização, Sakwa propôs [ainda em 1962] que a NATO oferecesse a Portugal 500 milhões de dólares [391 milhões de euros] para modernizar a sua economia", escreve Schneider.

Um ano depois a proposta daquele funcionário da CIA foi ampliada pelo diplomata Chester Bowles, que duplicou a ajuda a oferecer a Portugal, propondo que os Estados Unidos concedessem mais 500 milhões de dólares durante um período de cinco anos, ou seja um total de mil milhões de dólares durante o período de transição.

Documentos oficiais mostram que Bowles argumentou que seria "um bom negócio diplomático" se os esforços norte-americanos conseguissem resolver "o feio dilema" de Portugal a um custo de cem milhões de dólares (78 milhões de euros) por ano.

O plano dos Estados Unidos esbarrou, contudo, na inflexibilidade de Salazar.

"Portugal não está a venda", foi a resposta do ditador português quando a proposta lhe foi apresentada, em Agosto de 1963 - ainda durante a administração Kennedy - pelo secretário de Estado adjunto norte-americano, George Ball.

Franco Nogueira considerou a proposta americana uma "idiotice

O autor diz ainda que o então ministro dos Negócios Estrangeiros português, Franco Nogueira, considerou a proposta americana uma "idiotice", porque revelava que Washington acreditava poder determinar ou garantir acontecimentos a longo prazo.

Segundo Nogueira, o plano dos Estados Unidos seria o primeiro passo para a inevitabilidade do caos nas colónias portuguesas em África.

Um dos aspectos mais curiosos do livro é a exactidão com que a CIA e vários diplomatas norte-americanos fazem, com muitos anos de antecedência e em documentos oficiais, a previsão da derrota militar portuguesa em África e o derrube da ditadura.

"A derrota militar portuguesa é uma conclusão inevitável se se permitir que a revolta em Angola ganhe volume e continuidade", adverte o documento da CIA que acompanhava a proposta inicial elaborada por Paul Sakwa, pouco depois do começo da guerra em Angola.

Sakwa questiona-se mesmo se os Estados Unidos poderiam permitir que Portugal "cometesse suicídio, arrastando os seus amigos na mesma via".

O então embaixador dos Estados Unidos em Lisboa, Burke Elbrick, considerado em Washington como um simpatizante das autoridades portuguesas, enviou um telegrama às autoridades norte-americanas em 1963 em que dizia que Portugal estava "debaixo da espada de Dâmocles", pois não era "nem suficientemente grande nem suficientemente rico" para fazer frente a uma guerra de guerrilha em três frentes.

As guerras em África poderiam significar "o fim do império lusitano" e do regime de Salazar, escreveu ainda o diplomata, advertindo que o fim do regime poderia resultar na subida ao poder de um Governo "consideravelmente mais esquerdista ou neutral".

Em 1964 - dez anos antes da revolução do 25 de Abril -, a CIA advertiu que as guerras em África levariam ao aumento do descontentamento interno e que esse "aumento do descontentamento poderá convencer os militares da necessidade de substituírem Salazar".

Nesse mesmo ano, o Conselho de Segurança Nacional advertiu o Presidente Lyndon B. Johnson - que sucedeu a John F. Kennedy - de que as perspectivas de Portugal em África eram péssimas.

"Já não se trata de uma questão de saber se Angola se tornará independente ou não, pois a única questão é saber quando e como, tal como aconteceu na Argélia. Do mesmo modo, é uma certeza que quanto mais a luta durar, mais violenta, racista e infiltrada pelos comunistas se tornará, mais grave será a crise final a que os Estados Unidos terão de fazer face e mais caótica, radical e anti-ocidental será uma Angola independente", diz o documento.

Durante os anos 60, e face a estes avisos, muitos funcionários norte-americanos deram conta em documentos do seu desespero face à inflexibilidade do Governo de Salazar em mudar a política colonial.

Paul Sakwa, o funcionário da CIA que elaborou o "Commonwealth Plan", desesperado com a inflexibilidade de Salazar, terá chegado, ironicamente, a manifestar dúvidas de que o ditador português pudesse aceitar o plano americano "sem o benefício de uma lobotomia".

Para o secretário de Estado adjunto de então, George Ball, Salazar elaborava a política externa de Portugal "como se o Infante D. Henrique, Vasco da Gama e Fernão de Magalhães fossem os seus conselheiros mais próximos".

 

Novo “Carmona”

 

Embora o General—mais tarde feito Marechal, por condescendência salazarista, talvez retributiva de favores - tenha tido um papel de destaque – sem guerra meritória, embora, ao longo da sua vida, antes de ser ofuscado pela figura de Salazar que ele convidara anteriormente para formar governo, Carmona apareceu sempre em segundo plano, no tablado governativo, segundo recordo. Alberto Gonçalves não se refere a ele, todavia, por não pertencer ao grupo dos presidentes democratas, ao tratar do caso do general que se quer propor para a presidência da República – o general Gouveia e Melo, que parece não ter cadastro “governativo”, embora tenha desempenhado um papel preponderante no caso das vacinas contra a Covid. Daí o jocoso da crónica de Alberto Gonçalves, ao retirar-lhe capacidades de Presidência do Estado, por falta de categoria política das ditas vacinas no tablado governativo, como é de todo o critério pensar isso. Mas a Presidência da República não aparenta grandemente pertencer a uma função governativa por excelência, mais atribuída ao primeiro-ministro, tanto assim que já em tempos se aceitou um candidato Tino de Rans para uma dessas candidaturas e ninguém discutiu a questão… talvez por uma questão de segregacionismo aviltante dos que contrariassem tal escolha...

 

O almirante e as baratas

Antes do festival de variedades a que o incumbente reduziu a função não seria provável imaginar que um desconhecido sem particulares méritos chegasse a PR. Agora é.

ALBERTO GONÇALVES Colunista do Observador

OBSERVADOR, 29 mar. 2025, 00:203

Há décadas, largas décadas, que as democracias deixaram de eleger militares para a presidência. Os motivos incluem o cuidado em separar o poder militar do civil, ou o receio do autoritarismo, ou o lugar minúsculo dos conflitos armados nas cabeças ocidentais, ou a hipótese enriquecedora que quiserem adicionar.

O facto é que sem guerras, ou sem guerras que influenciem a sério a vida “comum”, não há heróis de guerra para premiar e pendurar na chefia dos estados. Na América, houve o remoto Eisenhower, com a derrota nazi fresquinha no bolso, como no século XIX houvera Ulysses S. Grant e meia dúzia de figuras comparativamente menores da Guerra Civil. Na Europa, De Gaulle, que morreu em 1970. E, Deus me fulmine se desprezar a pátria amada, Ramalho Eanes, não tanto pela presença nos três cenários de conflito ultramarinos, mas sobretudo pela batalha contra o comunismo que culminou no 25 de Novembro de 1975. Salvo ocasional esquecimento, o inventário fica por aqui: o velho hábito, esporádico e intermitente, de pôr militares na liderança de regimes liberais morreu há-que tempos.

A notícia é que Portugal se prepara para ressuscitá-lo. Meio século após o último presidente fardado de uma nação do “mundo livre”, há altas possibilidades de que o almirante Gouveia e Melo chegue ao topo da República. É sem dúvida uma excentricidade, que aumenta ao percebermos que o almirante Gouveia e Melo nem sequer é o típico destinatário da consagração de carreira, o guerreiro derreado com o peso das medalhas por proezas em combate.

Para dizer a verdade, parece que Gouveia e Melo nunca combateu. Para dizer o que o próprio diz, combateu em duas ocasiões. A segunda, conforme explicou em entrevista de 2023, foi, palavras dele, “uma guerra sem quartel”: consistiu em ser Chefe do Estado-Maior da Armada enquanto uns barcos da Marinha e da Polícia Marítima interceptavam lanchas de traficantes de haxixe ao largo do Algarve. Não é exactamente Gettysburg ou as Ardenas, mas prometo não maçar ninguém com o relato da minha breve passagem pela Escola Prática de Artilharia, em Vendas Novas, onde defrontei o tédio com bravura e fui derrotado.

A primeira ocasião em que Gouveia e Melo combateu foi – soem as trompetas – “no combate da nossa geração” (estou a citá-lo): a coordenação da “task force” de vacinação para a Covid, oito meses de luta intensa, em que enfermeiros administravam injecções a pessoas desejosas de levar com elas, e o almirante, então vice, vigiava as hostilidades à distância e camuflado. O sucesso da empreitada é discutível, as consequências não: com a Guerra das Vacinas em fase adiantada ou terminal, Portugal liderava o planeta em taxas de infecção e mortalidade. Mesmo assim, o povo, infectado ou falecido, apreciou o esforço e venerou a farda. As sondagens das “presidenciais” sugerem que continua a apreciar. E, com ancestral pasmo, a venerar.

Do trabalho do almirante na condução da Armada não falo, excepto para notar que, logo que ele saiu, o único submarino operacional cessou de operar e um navio de instrução afundou-se, talvez por solidariedade e luto. Na despedida, a revista que por acaso Gouveia e Melo tutelava comparou-o a D. João II. Hoje, porém, o fundamental é avaliar a capacidade do homem para desempenhar o cargo a que está quase a candidatar-se. Muitos queixam-se de que não sabem o que ele pensa: eu queixo-me por saber demasiado.

Para quem é louvado pela discrição e autoridade, Gouveia e Melo abre a boca com extraordinária frequência e alivia-se de extraordinárias proclamações. Ele encontra-se “entre o socialismo e a social-democracia”. Ele quer mais habitação, quiçá em tendas. Ele quer menos impostos. Ele quer imigração “estruturada e sustentada”. Ele quer uma “economia inovadora”, do mar e de mercado. Ele quer turismo, indústria química e “saúde digital”. Ele quer apostar na defesa e na construção naval. Ele não quer soluções simplistas. Ele quer repetir clichés partidários, aparentemente julga vir a decidir políticas governamentais e evidentemente concorre ao emprego errado.

Outro equívoco que persegue o almirante é o de que ele apenas poderá vir a ser presidente porque, do alto de uma mítica “solenidade”, representa o exacto oposto do prof. Marcelo. Trata-se de um tiro na água, embora se aceite que Gouveia e Melo apenas poderá vir a ser presidente por causa do prof. Marcelo: antes do festival de variedades a que o incumbente reduziu a função, afinal subtraindo-lhe qualquer réstia de prestígio, não seria provável imaginar que um desconhecido sem particulares méritos públicos, currículo ou, desculpem, “carisma” chegasse a PR. Agora é. E isso vale para Gouveia e Melo e vale para a respectiva concorrência, um punhado de minudências cujo apetite só cresceu graças ao precedente nivelador do prof. Marcelo – e cuja pequenez simbólica ajuda a destacar o D. João II a que temos direito, que fisicamente é alto.

Parcelas somadas, o enfado põe a questão: faz diferença? Muda alguma coisa enfiar em Belém Fulano, Sicrano ou um Beltrano apoiado por Isaltino Morais e o dr. Capucho? Há razões para pensar além da modorra interminável a que chamamos a nossa terra? Há sentido em esperar que nos tornemos o que firmemente recusamos ser? Há esperança sob a pesada sentença deste anonimato em forma de país? A internet teima em atribuir, se calhar falsamente, uma frase a Gouveia e Melo: “Os portugueses são como as baratas: resistem a tudo”. E são pisados por nada.

Almirante Gouveia e Melo      Política

COMENTÁRIOS:

A Sameiro: agora As alternativas são de fugir!!!!Vitorino lá anda nos seus pluri-empregos!!! Não passa duma "PRIMA-DONA" da politica!!!

Liberales Semper Erexitque: O Capitão Iglo poderá mesmo ser eleito, mas não devido a ele. Em terra de cegos quem tem olho é rei, e o panorama que se apresenta aos portugueses é desolador. O Capitão Iglo não se tenciona candidatar a um cargo político prestigioso, tenciona candidatar-se a um cargo político que ninguém, excepto anões mais ou menos truculentos, quer!

Alfredo Vieira: Ser-se mínima e desgraçadamente lúcido em Portugal, é como andar-se à procura de um qualquer perfume num esgoto, e sair-se de lá sempre com a mesma fragrância pegada ao corpo. Por isso tantos já partiram, e tantos mais irão partir a seguir, até à bangladechização final.

Jose Marques: Com notável mestria AG desconstruiu aquele almirante que jamais participou numa batalha naval. Espera-se que os debates televisivos ponham a nu (salvo seja) a vacuidade do almirante do mar da palha!

Maria Paula Silva: 👏👏👏👏👏 E X C E L E N T E !!!. p.s. - faltou o pormenor do dia de campanha em Fátima a que chamaram de dia de "não campanha" !

Maria Tavares: Ainda não entendi este medo de um militar!! Estes jorna analíticos, que de jornalistas, o que têm é enviesado, e de analistas nem se fala, andam com uma azáfama a abrir caminho ao MM. Ok percebo que é pequenino mas se quer ser marcelinho deixem no ir, não aprenderam nada com marcelo!!

 

sábado, 29 de março de 2025

Tempo manipulado

 

Não tão exacto assim, pois,

Que atrasamos, adiantamos

Conforme as exigências

Do nosso interesse,

Por hábitos bem ancestrais

De falseamento de dados

Em cada ano que passa

No sobe e desce constante

Do nosso horário mutante.

E o Ricardo assim se diverte

Enviando-me o texto seguinte:

«O dia das 23 horas é já depois da próxima meia noite»

E eis chegado o dia

Que todos ambicionavam.

O Manel mais a Maria

E quantos com eles privavam.

 

É o mais curto do ano,

Por isso passa a correr.

E nisso não há engano,

Pois está sempre a acontecer.

 

É à noite que aparece,

Ao dar a volta na cama.

E ocorre, ao que parece,

Sempre ao fim de semana.

 

À uma dá-se a segunda,

De seguida, sem perdão.

Dá-lhe, que ela merece,

Ele também goza, então!?

 

Não pensem os mais afoitos,

Que falamos com maldade,

Não referimos biscoitos,

Mas sim horas de verdade.

 

É que o tempo não pára

E há que dormir depressa.

P'ra entrar com boa cara

Na semana que começa.

 

Ricardo 29.03.2025

(A letra está aqui... falta compor o fado.)