quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Outras alianças e os se…


Winston Churchill escreve, David Martelo traduz o que aquele escreve, a respeito dos fios condutores nos jogos labirínticos da segunda guerra, que poderiam ter sido outros, não fosse o medo de alianças com uns ou com outros … cada qual uma aterradora incógnita, em termos de potencialidades materiais e morais.

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1939 – O ENIGMA SOVIÉTICO

Winston Churchill

O governo britânico devia examinar, com carácter de urgência, as consequências práticas das garantias prestadas à Polónia e à Roménia. Nenhum deste conjunto de disposições possuía o mínimo valor militar se não se inscrevesse num quadro de um acordo geral com a Rússia. Foi, portanto, dentro deste conceito que, em 15 de Abril, se entabularam conversações, em Moscovo, entre o embaixador britânico e o Sr. Litvinov (Ministro dos Negócios Estrangeiros da União Soviética.  - Nota do tradutor)

Tendo em atenção a forma como, até então, o governo soviético fora tratado, não era de esperar grandes resultados. Apesar disso, em 16 de Abril, os soviéticos apresentaram uma proposta oficial, cujo texto não foi publicado, e que tinha como objectivo a criação de uma frente única de assistência mútua entre a Grã-Bretanha, a França e a URSS. Estas três potências, acrescidas, se possível, com a Polónia, deviam, além disso, conceder a sua garantia aos Estados da Europa Central e Oriental que se encontravam à mercê de uma agressão alemã. O obstáculo que se opunha à conclusão de um tal acordo era o terror que sentiam esses países limítrofes perante a eventualidade de receberem auxílio dos soviéticos sob a forma de tropas que penetrariam no interior do seu território, para os defenderem contra os alemães, e de se verem, simultaneamente, incorporados no sistema soviético-comunista, de que eram encarniçados adversários. A Polónia, a Roménia, a Finlândia e os três Estados bálticos não sabiam se temiam mais a agressão alemã ou o socorro russo. Era este dilema pavoroso que paralisava a política inglesa e francesa.

FOTO:Maxim Litvinov (à direita na foto) em conversações com Josef Becker, ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia (1934)

Não podemos pôr em dúvida, mesmo hoje, à luz dos acontecimentos, que a Grã-Bretanha e a França deveriam ter aceitado a proposta russa e ter proclamado a Tripla Aliança. Quanto aos métodos a empregar, para tornar esta aliança efectiva em caso de guerra, seriam regulados pelos Aliados em luta contra o inimigo comum. Em tais circunstâncias, reina então um estado de espírito bem diferente. Em tempo de guerra, os Aliados estão disponíveis para fazer grandes concessões mútuas; a batalha abate-se com furor sobre a frente de combate e todos os meios são bons, mesmo aqueles que, em tempo de paz, provocam repugnância. No seio de uma Grande Aliança, como essa que poderia ter sido constituída, não seria fácil a um dos aliados penetrar no território de outro aliado sem para tal ter sido rogado.

Mas o Sr. Chamberlain (Primeiro-ministro britânico. -Nota do tradutor) e o Foreign Office deixaram-se ficar desnorteados por este enigma da Esfinge. Quando os acontecimentos avançam rapidamente e se sucedem em tal quantidade como nesta conjuntura, é sensato proceder por etapas. A aliança da Grã-Bretanha, da França e da Rússia teria lançado profundamente o alarme no coração da Alemanha, em 1939, e ninguém pode afirmar que a guerra não poderia, então, ser evitada. Na etapa seguinte, a superioridade das forças encontrar-se-ia do lado dos Aliados. A diplomacia dos Aliados estaria em condições de retomar a iniciativa. Hitler não podia permitir-se nem o lançar-se nesta guerra em duas frentes, que ele sempre condenara veementemente, nem sofrer um desaire. É uma enorme pena que ele não tivesse, então, sido colocado nesta posição falsa, que poderia ter-lhe custado a vida. Os homens de Estado não são, apenas, chamados a regular questões fáceis. Essas, frequentemente, resolvem-se por si mesmas. É quando a balança oscila e quando as perspectivas estão entranhadas no nevoeiro que a ocasião se apresenta como requerendo decisões que salvarão o mundo. Dada a atitude lastimável que adoptámos em 1939, era de uma importância vital não deixar escapar a imensa oportunidade que se nos oferecia. Não é possível, ainda hoje, identificar com precisão o momento em que Estaline abandonou definitivamente qualquer intenção de colaborar com as democracias ocidentais e resolveu entender-se com Hitler. Na realidade, não houve, provavelmente, um momento preciso. A publicação pelo Departamento de Estado americano (em Relações soviético-nazis em 1939-40) de uma colecção de documentos encontrados nos arquivos do ministério alemão dos Negócios Estrangeiros revelou-nos um certo número de factos até agora desconhecidos. Daí decorre que qualquer coisa se produziu, a partir de Fevereiro de 1939, mas que se tratava, então, quase de certeza, de questões comerciais e industriais relativas ao estatuto da Checoslováquia a seguir a Munique, as quais tinham de ser discutidas entre os dois países. A incorporação da Checoslováquia no Reich, em meados de Março, havia dado uma grande importância a estas questões. A Rússia tinha estabelecido contratos com o governo checoslovaco para o fornecimento de munições pelas fábricas Skoda. Que iria acontecer a esses contratos, agora que a Skoda se tornara um arsenal alemão? Em 17 de Abril, Weizsæcker, secretário de Estado alemão dos Negócios Estrangeiros, relata que o embaixador da URSS o viera visitar nesse dia pela primeira vez depois de, havia um ano, ter apresentado as suas credenciais. Fez perguntas acerca do tipo de contratos da Skoda, e Weizsæcker fez-lhe notar que “a atmosfera favorável à entrega do material de guerra à Rússia não estava, de momento, propriamente criada, devido aos rumores que corriam acerca de um pacto aéreo russo-anglo-francês e de outras coisas do mesmo género”. Prontamente, o embaixador soviético passou do comércio à política para perguntar ao secretário de Estado o que é que ele pensava sobre as relações germano-russas. Weizsæcker respondeu que lhe parecia que “ultimamente a imprensa russa não tinha adoptado completamente o tom antialemão da imprensa americana e de uma parte da imprensa inglesa”. Após o que o embaixador dos Sovietes tinha declarado: “As diferenças de ideologia em nada influenciaram nas relações russo-italianas e também não constituirão para nós, necessariamente, um embaraço no que concerne à Alemanha. E, essas relações normais poderiam ir melhorando.” É preciso considerar esta conversa como significativa, sobretudo tendo em atenção as negociações que tinham lugar, ao mesmo tempo, em Moscovo, entre o embaixador britânico e o Sr. Litvinov, e à oferta oficial, feita pelos soviéticos em 16 de Abril, de uma aliança tripartida com a Grã-Bretanha e a França. É o primeiro sinal visível da mudança de atitude da Rússia. A “normalização” das relações entre a Rússia e a Alemanha prosseguiram, daí em diante, passo a passo, ao mesmo tempo que continuavam as negociações iniciadas para constituir uma Aliança Tripla contra a agressão alemã. Se, por exemplo, o Sr. Chamberlain, ao receber a oferta russa, tivesse respondido:Sim, liguemo-nos os três contra Hitler, para lhe torcermos o pescoço”, ou qualquer coisa deste género, o parlamento teria aprovado, Estaline teria compreendido e o curso dos acontecimentos podia ter sido modificado. Em 4 de Maio, comentei a situação nos seguintes termos: O que, sobretudo, é preciso é não perder tempo. Dez ou doze dias passaram já desde que foi recebida a proposta soviética. O povo britânico, consentindo o sacrifício de costumes seculares e profundamente enraizados, aceita, agora, o princípio do serviço militar obrigatório, e tem o direito, em concerto com a República Francesa, de exigir da Polónia que não faça nada que possa prejudicar os interesses da causa comum. Não só necessitamos de aceitar a cooperação total da Rússia, como também os três Estados bálticos, a Lituânia, a Letónia e a Estónia, devem igualmente fazer parte desta associação. Para estes três países, cada um deles habitado por um povo de soldados, e possuindo exércitos cujo total atinge, talvez, 20 divisões, de uma bravura a toda a prova, é essencial ter perto de si uma Rússia amiga, capaz de lhes fornecer munições e todo o apoio necessário. Não há nenhuma forma de aguentar uma frente oriental contra uma agressão nazi sem o auxílio activo da Rússia. A Rússia tem todo o interesse em opor-se aos desígnios de Hitler a respeito da Europa de Leste. Deveria ser ainda possível reunir todos os Estados e todos os povos, do Báltico ao Mar Negro, numa frente sólida, para fazer frente a qualquer nova violência e a qualquer invasão. Se fosse estabelecida com convicção e resolução, se fosse reforçada com acordos militares enérgicos e eficazes, uma tal frente estaria em condições, combinada com as forças das potências ocidentais, de se opor a Hitler, Gœring, Himmler, Ribbentrop, Gœbbels & C.ª, exércitos que o povo alemão hesitaria em desafiar. Em vez disto, verificou-se um longo silêncio, enquanto preparávamos meias-medidas e compromissos judiciosos. Esta demora foi fatal para Litvinov. A última tentativa que ele tinha feito para levar a cabo a questão e obter das potências ocidentais uma decisão precisa foi considerada um desaire. O nosso crédito estava em baixo. Uma política externa inteiramente diferente tornava-se necessária para a segurança da Rússia, e era preciso encontrar um homem novo para a representar. Em 3 de Maio, um comunicado oficial de Moscovo anunciou que “o Sr. Litvinov, a seu pedido, havia sido exonerado das suas funções de comissário do povo para os Negócios Estrangeiros e que elas seriam exercidas pelo primeiro-ministro, o Sr. Molotov”. Em 4 de Maio, o encarregado de negócios alemão em Moscovo deu conta do caso nos seguintes termos: “Considerando que Litvinov ainda recebeu o embaixador britânico em 2 de Maio e que a imprensa de ontem o citava entre os convidados de honra à revista das tropas, o seu afastamento parece ser o resultado de uma decisão repentina de Estaline... No último congresso do partido, Estaline tinha insistido vivamente nas precauções a tomar para que a União Soviética não se envolvesse num conflito. Molotov (um não-judeu) é considerado como sendo ‘o mais íntimo amigo e o colaborador mais precioso de Estaline’. A sua nomeação parece ser a garantia de que a política externa continuará a ser estritamente de acordo com as ideias de Estaline.” Os representantes diplomáticos dos Sovietes no estrangeiro receberam como instrução o dever de informar os governos onde se encontravam acreditados de que esta mudança não implicava nenhuma alteração na política externa russa. Em 4 de Maio, a Rádio Moscovo anunciava que Molotov prosseguiria a política de segurança ocidental que havia sido, durante anos, o objectivo de Litvinov. Este eminente judeu, alvo da animosidade dos alemães, foi deitado fora como instrumento inútil, e, sem lhe ser permitida uma palavra de explicação, foi afastado, sem cerimónia, para longe da cena mundial, mergulhando na obscuridade, reduzido à dimensão conveniente e vigiado pela polícia. Molotov, pouco conhecido fora da Rússia, tornou-se comissário do povo para os Negócios Estrangeiros, em ligação estreita com Estaline. Não estava comprometido por qualquer declaração anterior, não estava impregnado pela atmosfera da Sociedade das Nações e podia, livremente, seguir a via que a segurança da Rússia parecia exigir. De facto, não existia senão uma via na qual parecia provável que se iria empenhar: fora sempre a favor de um acordo com Hitler. O governo soviético estava convencido, após a conferência de Munique e por muitas outras razões, de que nem a Grã-Bretanha nem a França se bateriam antes de serem atacadas, e de que, então, não poderiam fazer grande coisa. Aproximava-se a tempestade e ia rebentar. A Rússia era obrigada a velar pelos seus interesses.

In Winston Churchill, The Second World War. Tradução de David Martelo a partir da versão francesa da obra – Mémoires sur la deuxième Guerre Mondiale – Vol. I – L’Orage Approche – D’Une Guerre à l’autre – 1919-1939, Plon, Paris, 1948, pp. 370-375. – Janeiro de 2021

 

 

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