Winston
Churchill escreve, David
Martelo traduz o que aquele escreve, a respeito dos fios condutores nos jogos labirínticos
da segunda guerra, que poderiam ter sido outros, não fosse o medo de alianças com
uns ou com outros … cada qual uma aterradora incógnita, em termos de
potencialidades materiais e morais.
Para visitar o Blog, clique em http://www.a-bigorna.pt
1939 – O ENIGMA SOVIÉTICO
Winston
Churchill
O governo britânico devia examinar, com carácter de urgência, as
consequências práticas das garantias prestadas à Polónia e à Roménia. Nenhum deste conjunto de disposições possuía o
mínimo valor militar se não se inscrevesse num quadro de um acordo geral com a
Rússia. Foi, portanto, dentro deste conceito que, em 15 de Abril, se
entabularam conversações, em Moscovo, entre o embaixador britânico e o Sr. Litvinov
(Ministro dos Negócios Estrangeiros da
União Soviética. - Nota do tradutor)
Tendo
em atenção a forma como, até então, o governo soviético fora tratado, não era
de esperar grandes resultados. Apesar disso, em 16 de Abril, os soviéticos
apresentaram uma proposta oficial, cujo texto não foi publicado, e que tinha
como objectivo a criação de uma frente única de assistência
mútua entre a Grã-Bretanha, a França e a URSS. Estas
três potências, acrescidas, se possível, com a Polónia, deviam, além disso, conceder a sua garantia
aos Estados da Europa Central e Oriental que se encontravam à mercê de uma
agressão alemã. O obstáculo que se opunha à conclusão de um tal acordo era o terror
que sentiam esses países limítrofes perante a eventualidade de receberem auxílio dos
soviéticos sob a forma de tropas que penetrariam no interior do seu território,
para os defenderem contra os alemães, e de se verem, simultaneamente,
incorporados no sistema soviético-comunista, de que eram encarniçados
adversários. A
Polónia, a Roménia, a Finlândia e os
três Estados bálticos não sabiam se
temiam mais a agressão alemã ou o socorro russo. Era
este dilema pavoroso que paralisava a política inglesa e francesa.
FOTO:Maxim Litvinov (à direita na foto) em conversações com Josef Becker,
ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia (1934)
Não
podemos pôr em dúvida, mesmo hoje, à luz dos acontecimentos, que a Grã-Bretanha
e a França deveriam
ter aceitado a proposta russa e ter proclamado a Tripla Aliança. Quanto
aos métodos a empregar, para tornar esta aliança efectiva em caso de guerra,
seriam regulados pelos Aliados em luta contra o inimigo comum. Em tais
circunstâncias, reina então um estado de espírito bem diferente. Em tempo
de guerra, os Aliados estão disponíveis para fazer grandes concessões mútuas; a
batalha abate-se com furor sobre a frente de combate e todos os meios são bons,
mesmo aqueles que, em tempo de paz, provocam repugnância. No seio de uma Grande Aliança, como essa que
poderia ter sido constituída, não seria fácil a um dos aliados penetrar no
território de outro aliado sem para tal ter sido rogado.
Mas
o Sr. Chamberlain (Primeiro-ministro
britânico. -Nota do tradutor) e o Foreign Office deixaram-se ficar desnorteados por este enigma da Esfinge. Quando
os acontecimentos avançam rapidamente e se sucedem em tal quantidade como nesta
conjuntura, é sensato proceder por etapas. A aliança da
Grã-Bretanha, da França e da Rússia teria lançado profundamente o alarme
no coração da Alemanha, em 1939, e ninguém pode afirmar que a guerra não
poderia, então, ser evitada. Na etapa
seguinte, a superioridade das forças encontrar-se-ia do lado dos Aliados. A
diplomacia dos Aliados estaria em condições de retomar a iniciativa. Hitler
não podia permitir-se nem o lançar-se
nesta guerra em duas frentes, que ele sempre condenara veementemente, nem
sofrer um desaire. É
uma enorme pena que ele não tivesse, então, sido colocado nesta posição falsa,
que poderia ter-lhe custado a vida. Os homens de Estado não são, apenas,
chamados a regular questões fáceis. Essas, frequentemente, resolvem-se por si
mesmas. É quando a balança oscila e quando as perspectivas estão entranhadas no
nevoeiro que a ocasião se apresenta como requerendo decisões que salvarão o
mundo. Dada
a atitude lastimável que adoptámos em 1939, era de uma importância vital não
deixar escapar a imensa oportunidade que se nos oferecia. Não é possível, ainda
hoje, identificar com precisão o momento em que Estaline abandonou
definitivamente qualquer intenção de colaborar com as democracias ocidentais e
resolveu entender-se com Hitler. Na
realidade, não houve, provavelmente, um momento preciso. A publicação pelo Departamento de Estado
americano (em Relações soviético-nazis em 1939-40) de uma colecção de
documentos encontrados nos arquivos do ministério alemão dos Negócios
Estrangeiros revelou-nos um certo número de factos até agora desconhecidos. Daí
decorre que qualquer coisa se produziu, a partir de Fevereiro de 1939, mas que
se tratava, então, quase de certeza, de questões comerciais e industriais
relativas ao estatuto da Checoslováquia a seguir a Munique, as quais tinham de
ser discutidas entre os dois países. A incorporação da Checoslováquia no Reich,
em meados de Março, havia dado uma grande importância a estas questões. A
Rússia tinha estabelecido contratos com o governo checoslovaco para o fornecimento
de munições pelas fábricas Skoda. Que iria acontecer a esses contratos, agora
que a Skoda se tornara um arsenal alemão?
Em 17 de Abril, Weizsæcker,
secretário de Estado alemão dos Negócios Estrangeiros, relata que o embaixador
da URSS o viera visitar nesse dia pela primeira vez depois de, havia um ano,
ter apresentado as suas credenciais.
Fez perguntas acerca do tipo de contratos da Skoda, e Weizsæcker fez-lhe
notar que “a atmosfera favorável à entrega do material de guerra à Rússia
não estava, de momento, propriamente criada, devido aos rumores que corriam
acerca de um pacto aéreo russo-anglo-francês e de outras coisas do mesmo género”.
Prontamente, o embaixador soviético passou do comércio
à política para perguntar ao secretário de Estado o que é que ele pensava sobre
as relações germano-russas. Weizsæcker
respondeu que lhe parecia que “ultimamente
a imprensa russa não tinha adoptado completamente o tom antialemão da imprensa
americana e de uma parte da imprensa inglesa”. Após o que o embaixador dos
Sovietes tinha declarado: “As diferenças de ideologia em nada influenciaram
nas relações russo-italianas e também não constituirão para nós,
necessariamente, um embaraço no que concerne à Alemanha. E, essas relações
normais poderiam ir melhorando.” É preciso considerar esta
conversa como significativa, sobretudo tendo em atenção as negociações que
tinham lugar, ao mesmo tempo, em Moscovo, entre o embaixador britânico e o Sr.
Litvinov, e à oferta oficial, feita pelos soviéticos em 16 de Abril, de uma
aliança tripartida com a Grã-Bretanha e a França. É
o primeiro sinal visível da mudança de atitude da Rússia. A “normalização” das
relações entre a Rússia e a Alemanha prosseguiram, daí em diante, passo a
passo, ao mesmo tempo que continuavam as negociações iniciadas para constituir
uma Aliança Tripla contra a agressão alemã. Se,
por exemplo, o Sr. Chamberlain,
ao receber a oferta russa, tivesse respondido: “Sim, liguemo-nos os três contra Hitler, para lhe
torcermos o pescoço”, ou qualquer coisa deste género, o parlamento
teria aprovado, Estaline teria compreendido e o curso dos acontecimentos podia
ter sido modificado. Em 4
de Maio, comentei a situação nos seguintes
termos: O que, sobretudo, é preciso é não perder tempo. Dez ou
doze dias passaram já desde que foi recebida a proposta soviética. O povo
britânico, consentindo o sacrifício de costumes seculares e profundamente
enraizados, aceita, agora, o princípio do serviço militar obrigatório, e tem o
direito, em concerto com a República Francesa, de exigir da Polónia que não
faça nada que possa prejudicar os interesses da causa comum. Não só
necessitamos de aceitar a cooperação total da Rússia, como também os três
Estados bálticos, a Lituânia, a Letónia e a Estónia, devem igualmente fazer
parte desta associação. Para estes três países, cada um deles habitado por um
povo de soldados, e possuindo exércitos cujo total atinge, talvez, 20 divisões,
de uma bravura a toda a prova, é essencial ter perto de si uma Rússia amiga, capaz
de lhes fornecer munições e todo o apoio necessário. Não há nenhuma forma de
aguentar uma frente oriental contra uma agressão nazi sem o auxílio activo da
Rússia. A Rússia tem todo o interesse em opor-se aos desígnios de Hitler a
respeito da Europa de Leste. Deveria ser ainda possível reunir todos os Estados
e todos os povos, do Báltico ao Mar Negro, numa frente sólida, para fazer
frente a qualquer nova violência e a qualquer invasão. Se fosse estabelecida
com convicção e resolução, se fosse reforçada com acordos militares enérgicos e
eficazes, uma tal frente estaria em condições, combinada com as forças das
potências ocidentais, de se opor a Hitler, Gœring, Himmler, Ribbentrop, Gœbbels
& C.ª, exércitos que o povo alemão hesitaria em desafiar. Em vez disto, verificou-se um longo
silêncio, enquanto preparávamos meias-medidas e compromissos judiciosos. Esta demora foi fatal para Litvinov. A última tentativa que ele tinha feito para levar
a cabo a questão e obter das potências ocidentais uma decisão precisa foi
considerada um desaire. O nosso crédito estava em baixo. Uma política externa
inteiramente diferente tornava-se necessária para a segurança da Rússia, e era
preciso encontrar um homem novo para a representar. Em 3 de Maio, um
comunicado oficial de Moscovo
anunciou que “o Sr. Litvinov, a seu pedido, havia sido exonerado das suas
funções de comissário do povo para os Negócios Estrangeiros e que elas seriam
exercidas pelo primeiro-ministro, o Sr. Molotov”. Em 4 de Maio, o encarregado de negócios
alemão em Moscovo deu conta do caso nos seguintes termos: “Considerando que
Litvinov ainda recebeu o embaixador britânico em 2 de Maio e que a imprensa de
ontem o citava entre os convidados de honra à revista das tropas, o seu
afastamento parece ser o resultado de uma decisão repentina de Estaline... No
último congresso do partido, Estaline tinha insistido vivamente nas precauções
a tomar para que a União Soviética não se envolvesse num conflito. Molotov (um não-judeu) é considerado como
sendo ‘o mais íntimo amigo e o colaborador mais precioso de Estaline’. A sua nomeação parece ser a garantia de que
a política externa continuará a ser estritamente de acordo com as ideias de
Estaline.” Os
representantes diplomáticos dos Sovietes no estrangeiro receberam como instrução
o dever de informar os governos onde se encontravam acreditados de que esta
mudança não implicava nenhuma alteração na política externa russa. Em 4 de
Maio, a Rádio Moscovo anunciava que Molotov prosseguiria a política de
segurança ocidental que havia sido, durante anos, o objectivo de Litvinov. Este eminente judeu, alvo da animosidade dos
alemães, foi deitado fora como instrumento inútil, e, sem lhe ser permitida uma
palavra de explicação, foi afastado, sem cerimónia, para longe da cena mundial,
mergulhando na obscuridade, reduzido à dimensão conveniente e vigiado pela
polícia. Molotov, pouco conhecido fora da Rússia, tornou-se comissário
do povo para os Negócios Estrangeiros, em ligação estreita com Estaline. Não estava comprometido por qualquer declaração
anterior, não estava impregnado pela atmosfera da Sociedade das Nações e podia,
livremente, seguir a via que a segurança da Rússia parecia exigir. De facto,
não existia senão uma via na qual parecia provável que se iria empenhar: fora
sempre a favor de um acordo com Hitler. O
governo soviético estava convencido, após a conferência de Munique e por muitas
outras razões, de que nem a Grã-Bretanha nem a França se bateriam antes de
serem atacadas, e de que, então, não poderiam fazer grande coisa. Aproximava-se
a tempestade e ia rebentar. A Rússia era obrigada a velar pelos seus interesses.
In
Winston Churchill, The Second World War. Tradução de David Martelo a
partir da versão francesa da obra – Mémoires sur la deuxième Guerre Mondiale
– Vol. I – L’Orage Approche – D’Une Guerre à l’autre – 1919-1939, Plon,
Paris, 1948, pp. 370-375. – Janeiro de 2021
Nenhum comentário:
Postar um comentário