Uma história vivida, bem contada, fazendo
pressupor o trágico e os medos e o macabro, no caricato das figuras, dançando
ou bebendo, escondidamente, buscando na noite algum conforto, sem a certeza de
que o dia seguinte existiria para algumas delas… E afinal o próprio narrador e
o seu amigo, também isolados do conforto ocidental, menos ameaçador… Uma
história concisa, trágico-cómica, para um tempo de concisão, de absurdo, de
ironia. De peste, como aquela outra que inspirou Boccaccio…
OPINIÃO
Para não estarmos sempre a falar das mesmas coisas
Vai agora fazer um ano, na primeira
vaga da pandemia, falei de livros. Agora resolvi fazer “falar a memória” e
contar alguns almoços e jantares em sítios complicados. Mesmo muito
complicados.
13 de Fevereiro de
2021
Numa
altura em que, por boas e más razões, se criou um deserto noticioso a tudo o
que não seja a pandemia, tenho sempre a tentação de falar de outras coisas. Vai
agora fazer um ano, na primeira vaga da pandemia, falei de livros, mas agora que se pode
comprar livros nos supermercados (e ainda bem) e as livrarias estão encerradas (e mal),
pareceu-me quase sádico escrever sobre livros que as pessoas não podem ir
comprar. Nessa primeira série, mais do que um livreiro disse-me que tinha
havido alguma procura, presumo que três ou quatro livros, e já não era mau.
O
livro com que ia começar era de Nabokov, Speak, Memory,
mas depois resolvi fazer “falar a memória” e contar alguns almoços e
jantares em sítios complicados. Mesmo muito complicados. E faço-o também em
memória do já
falecido José Lello, deputado e dirigente
socialista, com quem partilhava a vontade e a curiosidade de querer ir aos
sítios “complicados”, arriscados, aonde se ia, mas de onde não se sabia se se
vinha, e em que condições. Em dois ou três sítios do mundo, soltávamo-nos do
protocolo, das delegações, da segurança oficial e das companhias mais
timoratas, e lá íamos.
Numa
viagem ao Iraque, durante a guerra Irão-Iraque, muito mais mortífera do que os
conflitos posteriores, estávamos no célebre Hotel Al-Rasheed, que combinava o
luxo com as câmaras de controlo por todo o lado, e estava praticamente vazio.
Governava Saddam Hussein, os
iranianos enviavam uma espécie de V-2 para a gigantesca cidade de Bagdad, que
caíam quando acabava o combustível. A zona onde o hotel se situava era de
alta segurança (depois ficou na Zona Verde americana) e havia recolher
obrigatório e extinção das luzes durante a noite. Podem imaginar o ambiente e o
aborrecimento ao fim da tarde.
Foto: Hotel Al-Rasheed em Bagdad nos anos oitenta do século XX DR
Resolvemos
então inquirir os empregados do hotel sobre a “vida nocturna” de Bagdad, e
estes disseram que, “sim senhor, havia” e era na rua tal. Arranjaram-nos um
carro, e lá seguimos para a rua tal, tudo à custa de dólares, no meio da noite
escura. Na verdade, pelo caminho, era evidente que os iraquianos ligavam pouco
ao recolher obrigatório, mas, mesmo assim, era uma diferença abissal com o caos
infernal das ruas de Bagdad durante o dia. Naturalmente que cada um de nós, eu
e o Lello, nos interrogávamos para onde é que íamos e como é que
regressaríamos. Lá chegámos à rua tal, mas o sítio indicado estava fechado. O
carro desapareceu e havia apenas, mais à frente, uma ligeira luz, para onde nos
dirigimos.
Os
empregados eram na sua maioria filipinos e estavam radiantes com os solitários
clientes a quem trouxeram as iguarias e as bebidas mais caras da casa, mesmo
sem serem pedidas. No intervalo perguntavam “do you want girls?”. Não, não
Era
uma espécie de clube nocturno, meio restaurante, meio pista de dança, e presumo
que meio bordel. À entrada, fomos recebidos efusivamente, o que se compreende
porque não havia turistas em Bagdad e os estrangeiros escasseavam. Sentaram-nos
à melhor mesa, mesmo diante da pista de dança, e na mesa havia várias travessas
com maçãs cortadas. Quando começámos a ver, no meio da pouca luz, havia uma
mesa ao lado onde meia dúzia de árabes – kuwaitianos, disseram-nos – bebiam
sumo de laranja a que misturavam um produto que se encontrava em garrafas
embrulhadas em cartuchos ao lado da mesa. Whiskey, muito provavelmente,
disfarçado para os muçulmanos piedosos. Mais longe, noutra mesa, a mesma cena.
Os
empregados eram, na sua maioria, filipinos e estavam radiantes com os solitários clientes a quem
trouxeram as iguarias e as bebidas mais caras da casa, mesmo sem serem pedidas.
No intervalo perguntavam: “Do you want girls?” Não, não.
Mas
o mais inesquecível foi o que se passou na pista de dança, num estrado à nossa
frente. Quando entrámos, havia uma senhora já de certa idade que dançava
sozinha, entre uma dança do ventre e uma dança sem ventre. De repente, começa a
ir para o palco um grupo de homens, soldados a gozar a sua licença, vindos da
frente de combate, e que era fácil identificar como sendo curdos, pelas calças
largas, cinto de pano, camisa, colete e, nalguns casos, turbante. Dançavam uns
com os outros, porque não devia haver mais do que duas ou três mulheres no
palco, com-- ma intensidade que impressionava. Guerra, soldados na retaguarda,
no meio de tudo e de nada, rodeados por brutalidade e morte. Isso não se vê
todos os dias e percebe-se muita coisa vendo-se.
Depois,
foi a saga do regresso, apesar de tudo mais fácil do que pensávamos. À custa de
dólares, os filipinos arranjaram-nos um carro e preveniram-nos que por
causa da Mukhabarat, a polícia
política, o motorista não podia ir até ao hotel e deixava-nos perto. Mas como o
hotel era facilmente visível à distância, lá fomos com o passaporte pronto, sem
problemas.
A
sorte protege os audazes. Às vezes.
Historiador
TÓPICOS: GUERRA
IRAQUE MÉDIO ORIENTE BAGDAD LIVROS CONFLITOS OPINIÃO
Rebelde INFLUENTE: Impecável.20.02.2021
João Manuel Correia Valente INICIANTE: Boa história, a
desafiar - até mesmo, a incitar - o desejo de transgressão saudável, de que
nunca deveremos, a bem da felicidade e sanidade, abdicar. No entanto, tendo
ficado a saber que "Girls? Não, não", afinal de contas ... que
jantaram vossas senhorias? Maçãs? ; Aónio Eliphis INFLUENTE: "Quando
entrámos, havia uma senhora já de certa idade que dançava sozinha, entre uma
dança do ventre e uma dança sem ventre. De repente, começa a ir para o palco um
grupo de homens, soldados a gozar a sua licença". Isto no Brasil teria
outra interpretação! FalinhasMansas INICIANTE: Obrigado pela
rábula, a sério, mais ainda por ser tão pessoal e
mostrar....subrepticiamente....que até nos cenários mais adversos é possível
ser-se feliz... mesmo em "transgressão " joaocarvalho INICIANTE: Muito bom. Na
liminaridade encontram-se histórias inesquecíveis. FPS INFLUENTE: Pode ser que, para a semana, volte a
falar de Fernão Lopes ou dê uma perninha por Gil Vicente... que, de facto,
estamos fartos de falar sempre das mesmas coisas. Por bom caminho e segue EXPERIENTE: Boa anedota
(escrevo disto, com um estilo similar, para deixar à descendência, às dezenas),
mas moral da história é coisa de que o Pacheco, meu conterrâneo e meu coevo, se
esqueceu. Dá-me a impressão que cortou do texto o essencial. Conde de Montecristo INICIANTE: Finalmente, uma
história bem contada sem que se vislumbre qualquer vírus pelo meio. Jacob van der Sluis INICIANTE: Engraçado Ceratioidei MODERADOR: Falemos pois de
outras coisas. Aqui para nós: é muito difícil não falar sobre o confinamento. A
pandemia até pode ficar de lado, mas o confinamento é complicado. Afinal todos
já vivemos diversos tipos desse condicionalismo, em tempos e situações
diversas. Obrigada por ter feito falar a memória. Excelente texto. Paulo Batista EXPERIENTE: Obrigado pela
partilha. Certamente que esta é daquelas que não se esquece e que compensam o
risco. Saúde para si JPP. GMA EXPERIENTE: É refrescante ler
coisas diferentes, ditas por quem as viveu e as sabe contar. Que a memória lhe
não escasseie, caro Pacheco Pereira. Pepe iLegal MODERADOR: Uma boa história
que gostei de ler. joao.pedro.smt.903287 INICIANTE: excelente
partilha. Obrigado M Cabral INICIANTE: Interessante
recorda acção. Obrigado pela partilha. Bom dia.
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