quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Para escapar da solidão


Uma história vivida, bem contada, fazendo pressupor o trágico e os medos e o macabro, no caricato das figuras, dançando ou bebendo, escondidamente, buscando na noite algum conforto, sem a certeza de que o dia seguinte existiria para algumas delas… E afinal o próprio narrador e o seu amigo, também isolados do conforto ocidental, menos ameaçador… Uma história concisa, trágico-cómica, para um tempo de concisão, de absurdo, de ironia. De peste, como aquela outra que inspirou Boccaccio…

OPINIÃO

Para não estarmos sempre a falar das mesmas coisas

Vai agora fazer um ano, na primeira vaga da pandemia, falei de livros. Agora resolvi fazer “falar a memória” e contar alguns almoços e jantares em sítios complicados. Mesmo muito complicados.

JOSÉ PACHECO PEREIRA

13 de Fevereiro de 2021

Numa altura em que, por boas e más razões, se criou um deserto noticioso a tudo o que não seja a pandemia, tenho sempre a tentação de falar de outras coisas. Vai agora fazer um ano, na primeira vaga da pandemia, falei de livros, mas agora que se pode comprar livros nos supermercados (e ainda bem) e as livrarias estão encerradas (e mal), pareceu-me quase sádico escrever sobre livros que as pessoas não podem ir comprar. Nessa primeira série, mais do que um livreiro disse-me que tinha havido alguma procura, presumo que três ou quatro livros, e já não era mau.

O livro com que ia começar era de Nabokov, Speak, Memory, mas depois resolvi fazer “falar a memória” e contar alguns almoços e jantares em sítios complicados. Mesmo muito complicados. E faço-o também em memória do já falecido José Lello, deputado e dirigente socialista, com quem partilhava a vontade e a curiosidade de querer ir aos sítios “complicados”, arriscados, aonde se ia, mas de onde não se sabia se se vinha, e em que condições. Em dois ou três sítios do mundo, soltávamo-nos do protocolo, das delegações, da segurança oficial e das companhias mais timoratas, e lá íamos.

Numa viagem ao Iraque, durante a guerra Irão-Iraque, muito mais mortífera do que os conflitos posteriores, estávamos no célebre Hotel Al-Rasheed, que combinava o luxo com as câmaras de controlo por todo o lado, e estava praticamente vazio. Governava Saddam Hussein, os iranianos enviavam uma espécie de V-2 para a gigantesca cidade de Bagdad, que caíam quando acabava o combustível. A zona onde o hotel se situava era de alta segurança (depois ficou na Zona Verde americana) e havia recolher obrigatório e extinção das luzes durante a noite. Podem imaginar o ambiente e o aborrecimento ao fim da tarde.

Foto: Hotel Al-Rasheed em Bagdad nos anos oitenta do século XX DR

Resolvemos então inquirir os empregados do hotel sobre a “vida nocturna” de Bagdad, e estes disseram que, “sim senhor, havia” e era na rua tal. Arranjaram-nos um carro, e lá seguimos para a rua tal, tudo à custa de dólares, no meio da noite escura. Na verdade, pelo caminho, era evidente que os iraquianos ligavam pouco ao recolher obrigatório, mas, mesmo assim, era uma diferença abissal com o caos infernal das ruas de Bagdad durante o dia. Naturalmente que cada um de nós, eu e o Lello, nos interrogávamos para onde é que íamos e como é que regressaríamos. Lá chegámos à rua tal, mas o sítio indicado estava fechado. O carro desapareceu e havia apenas, mais à frente, uma ligeira luz, para onde nos dirigimos.

Os empregados eram na sua maioria filipinos e estavam radiantes com os solitários clientes a quem trouxeram as iguarias e as bebidas mais caras da casa, mesmo sem serem pedidas. No intervalo perguntavam “do you want girls?”. Não, não

Era uma espécie de clube nocturno, meio restaurante, meio pista de dança, e presumo que meio bordel. À entrada, fomos recebidos efusivamente, o que se compreende porque não havia turistas em Bagdad e os estrangeiros escasseavam. Sentaram-nos à melhor mesa, mesmo diante da pista de dança, e na mesa havia várias travessas com maçãs cortadas. Quando começámos a ver, no meio da pouca luz, havia uma mesa ao lado onde meia dúzia de árabes – kuwaitianos, disseram-nos – bebiam sumo de laranja a que misturavam um produto que se encontrava em garrafas embrulhadas em cartuchos ao lado da mesa. Whiskey, muito provavelmente, disfarçado para os muçulmanos piedosos. Mais longe, noutra mesa, a mesma cena.

Os empregados eram, na sua maioria, filipinos e estavam radiantes com os solitários clientes a quem trouxeram as iguarias e as bebidas mais caras da casa, mesmo sem serem pedidas. No intervalo perguntavam: “Do you want girls?” Não, não.

Mas o mais inesquecível foi o que se passou na pista de dança, num estrado à nossa frente. Quando entrámos, havia uma senhora já de certa idade que dançava sozinha, entre uma dança do ventre e uma dança sem ventre. De repente, começa a ir para o palco um grupo de homens, soldados a gozar a sua licença, vindos da frente de combate, e que era fácil identificar como sendo curdos, pelas calças largas, cinto de pano, camisa, colete e, nalguns casos, turbante. Dançavam uns com os outros, porque não devia haver mais do que duas ou três mulheres no palco, com-- ma intensidade que impressionava. Guerra, soldados na retaguarda, no meio de tudo e de nada, rodeados por brutalidade e morte. Isso não se vê todos os dias e percebe-se muita coisa vendo-se.

Depois, foi a saga do regresso, apesar de tudo mais fácil do que pensávamos. À custa de dólares, os filipinos arranjaram-nos um carro e preveniram-nos que por causa da Mukhabarat, a polícia política, o motorista não podia ir até ao hotel e deixava-nos perto. Mas como o hotel era facilmente visível à distância, lá fomos com o passaporte pronto, sem problemas.

A sorte protege os audazes. Às vezes.

Historiador

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Rebelde INFLUENTE: Impecável.20.02.2021

João Manuel Correia Valente INICIANTE: Boa história, a desafiar - até mesmo, a incitar - o desejo de transgressão saudável, de que nunca deveremos, a bem da felicidade e sanidade, abdicar. No entanto, tendo ficado a saber que "Girls? Não, não", afinal de contas ... que jantaram vossas senhorias? Maçãs? ;          Aónio Eliphis INFLUENTE: "Quando entrámos, havia uma senhora já de certa idade que dançava sozinha, entre uma dança do ventre e uma dança sem ventre. De repente, começa a ir para o palco um grupo de homens, soldados a gozar a sua licença". Isto no Brasil teria outra interpretação!             FalinhasMansas INICIANTE: Obrigado pela rábula, a sério, mais ainda por ser tão pessoal e mostrar....subrepticiamente....que até nos cenários mais adversos é possível ser-se feliz... mesmo em "transgressão "             joaocarvalho INICIANTE: Muito bom. Na liminaridade encontram-se histórias inesquecíveis.            FPS INFLUENTE: Pode ser que, para a semana, volte a falar de Fernão Lopes ou dê uma perninha por Gil Vicente... que, de facto, estamos fartos de falar sempre das mesmas coisas.         Por bom caminho e segue EXPERIENTE: Boa anedota (escrevo disto, com um estilo similar, para deixar à descendência, às dezenas), mas moral da história é coisa de que o Pacheco, meu conterrâneo e meu coevo, se esqueceu. Dá-me a impressão que cortou do texto o essencial.             Conde de Montecristo INICIANTE: Finalmente, uma história bem contada sem que se vislumbre qualquer vírus pelo meio.            Jacob van der Sluis INICIANTE: Engraçado      Ceratioidei MODERADOR: Falemos pois de outras coisas. Aqui para nós: é muito difícil não falar sobre o confinamento. A pandemia até pode ficar de lado, mas o confinamento é complicado. Afinal todos já vivemos diversos tipos desse condicionalismo, em tempos e situações diversas. Obrigada por ter feito falar a memória. Excelente texto.   Paulo Batista EXPERIENTE: Obrigado pela partilha. Certamente que esta é daquelas que não se esquece e que compensam o risco. Saúde para si JPP. GMA EXPERIENTE: É refrescante ler coisas diferentes, ditas por quem as viveu e as sabe contar. Que a memória lhe não escasseie, caro Pacheco Pereira.          Pepe iLegal MODERADOR: Uma boa história que gostei de ler.           joao.pedro.smt.903287 INICIANTE: excelente partilha. Obrigado            M Cabral INICIANTE: Interessante recorda acção. Obrigado pela partilha. Bom dia.

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