De David
Martelo, onde vão surgindo, bem moldados, os episódios das
histórias que foram causa de evolução – mesmo em aparência de retrocesso – que David Martelo traz à nossa leitura, afinados os dados
na sua “Bigorna” de superior técnica expositiva. Desta vez, de confronto das
duas lutas civis nos E U – a do
século XIX, bem retratada no extraordinário filme “E Tudo o Vento levou” e esta, de hoje, com um Trump, que pareceu surgir como um estranho vendaval arrasante,
nos seus preconceitos politicamente incorrectos ...
2.ª GUERRA CIVIL AMERICANA
Ao
tomar conhecimento dos termos do Tratado de Versalhes e das pesadas condições
que o mesmo impunha à Alemanha, o marechal Foch não hesitou em profetizar: “Não é um Tratado de Paz; é um armistício por
20 anos.” Foi assim que a Grande Guerra de
1914-1918 se transformou na 1.ª
Guerra Mundial, uma vez
que, entre 1939 e 1945, se verificou um “recrudescimento” do conflito, que
viria a ser designado por 2.ª Guerra Mundial. No intervalo entre as duas guerras,
ocorreram entre os vencedores diversas acções políticas de apaziguamento e
cobardia, o que, naturalmente, viria a favorecer a ascensão de Hitler e a
posterior agudização da situação europeia.
Perante o que está a suceder nos Estados Unidos da América, desde 25 de Maio –
data do assassinato de George Floyd às mãos (ao joelho) de um polícia –, é
tentador fazer uma comparação entre a Guerra Civil Americana de 1861-1865
e o conflito social e político que está
em curso, com muitas lembranças icónicas dessa guerra. Em vez dos “vinte anos de armistício”
previstos por Foch, teríamos, agora, um interregno de 155 anos, durante o qual
a potência vencedora – a União original, comummente designada por “Nortistas” –
foi progressivamente perdendo o controlo político e ideológico dos Estados
Confederados, hoje facilmente identificáveis com os movimentos de ‘supremacia
branca’, com o racismo, com o “America First” e com a perturbadora figura de Donald Trump.
(FOTO: O general
Ulysses S. Grant (esq) recebe a rendição do general Robert E. Lee na McLean
House, em Appomattox)
A
Guerra Civil Americana teve o
seu termo por fases, iniciando-se esse processo com a rendição do Exército da
Virgínia do Norte, em 9 de Abril de 1865, protagonizada pelo general Robert E. Lee. Embora nessa data ainda houvesse outras forças que
iriam depor as armas posteriormente, a rendição do general Lee
marcava, efectivamente, a derrota da causa esclavagista nos Estados do Sul. Na realidade, porém, o que estava a acontecer não era
exactamente o fim de uma guerra. Os partidários da “lost cause” (causa
perdida) assumiam a derrota das suas forças convencionais, mas prosseguiriam a
luta, passando a uma espécie de “resistência armada semiclandestina”, tarefa
muito facilitada pela larga
existência de armas na sociedade civil americana. O primeiro sinal de que o combate não terminara foi
dado 5 dias depois da rendição de Lee (14 de Abril), quando o actor
John Wilkes Booth, um assumido “suprematista branco”, feriu mortalmente o presidente Lincoln, no Teatro
Ford de Washington, DC, o qual viria a falecer no dia seguinte.
(FOTO: John W.
Booth dispara sobre o presidente Lincoln ?
A violência revanchista nunca mais se deteve, optando tanto pelo
atentado selectivo a alvos com significado político como por acções de conteúdo
racista que se orientaram principalmente para os ex-escravos afro-americanos e
os seus descendentes. Nesta forma
de luta sem tréguas destacar-se-iam as forças policiais dos
diversos Estados, as quais se
viriam a envolver em incidentes de policiamento dos quais resultaria a morte
de milhares de cidadãos americanos, na sua maior parte afro-americanos. Em
1865, terminada a guerra, foram constituídos 5 Distritos Militares destinados a
garantir a administração dos Estados vencidos, até que os mesmos dispusessem de condições políticas
para reentrar na União. Excluía o Tennessee,
por este Estado ter já ratificado a 14.ª Emenda, a qual garantia a cidadania
e iguais direitos civis e legais aos afro-americanos. Os antigos Estados
Confederados começaram a ser readmitidos na União em 1868, sendo a Geórgia o último a ser readmitido, em 15 de Julho de 1870. Já havia sido readmitido dois anos antes, mas fora de
novo excluído, por ter removido os afro-americanos da legislatura.
(FOTO - MAPA) Os 5 Distritos Militares destinados a
garantir a administração dos Estados vencidos.
O
“Compromisso de 1877” foi um acordo não-escrito, concertado no seio do
Congresso, o qual, entre
outros aspectos, determinou a retirada das tropas da União dos 5
Distritos Militares, pondo fim à “Era de Reconstrução”. Assegurou, também, a presidência dos EUA ao
republicano Rutherford B. Hayes, ao mesmo tempo que consolidava o predomínio
do Partido Democrático nos antigos Estados Confederados. Com
surpresa, relativamente ao que são hoje os dois grandes partidos americanos, é através dos conservadores do Partido
Democrático que vai ser prosseguida a “lost cause”, agora sob a forma de leis
de discriminação racial, sob a capa do princípio “separados mas iguais”, leis
que vigorariam do final do século XIX até 1965. Derrotados
na guerra, os Sulistas preparavam-se para ganhar a “memória da guerra”,
aproveitando as características federais dos EUA e um certo espírito de
apaziguamento da parte dos vencedores, assumida em nome da coesão da União. A
vitória na “memória da guerra” irá concretizar-se através do enobrecimento das
principais figuras políticas e militares dos Confederados, levantando-lhes
estátuas, denominando praças e ruas com os seus nomes e fazendo da bandeira da
Confederação um símbolo de afirmação da supremacia branca. Mas fizeram mais e com mais significado. Uma lei de 1864,
patrocinada pelo deputado Justin Morrill, fez com que o Congresso convidasse
cada um dos Estados da União a colocar duas estátuas no Hall do Capitólio –
depois do que aquele espaço passou a designar-se por National Statuary Hall.
Em 1909, já passara o
tempo suficiente para que uma estátua de um confederado ali fosse colocada.
Coube a honra precisamente à estátua do general
Robert E. Lee, enviada
pelo Estado da Virgínia. Seguiram-se as estátuas de Zebulon Baird Vance,
militar e político da Carolina do Norte, em 1916; Edmund Kirby Smith, militar,
Florida, 1922; Alexander Hamilton Stephens, vice-presidente dos Confederados,
Geórgia, 1927; Wade Hampton, militar e político, Carolina do Sul, 1929;
Jefferson Davis, presidente da Confederação, Mississipi, 1931, e James
Zachariah George, político e militar, Mississipi 1931.
(FOTO:
A estátua de Jefferson Davies (2.ª a contar da esquerda), presidente
dos Estados Confederados de 1861 a 1865, no Statuary Hall do Capitólio, em
Washington.)
Também no Exército, a memória dos oficiais confederados iria ser
venerada através da designação das grandes bases militares que começaram a ser construídas a partir da
entrada dos EUA na 1.ª Guerra Mundial. Mas não só os nomes das bases. No interior das
mesmas, arruamentos, casernas, paradas, carreiras de tiro, etc., foram
designadas com nomes de militares, muitos deles antigos combatentes
confederados: Camp Beauregard, Louisiana, 1917; Fort Lee, Virginia,
1917; Fort Benning, Georgia, 1918; Fort Bragg, North Carolina, 1918; Fort Polk,
Louisiana, 1941; Fort A.P. 4 Hill, Virginia, 1941; Fort Gordon, Georgia, 1941;
Fort Pickett, Virginia, 1942; Fort Hood, Texas, 1942; e Fort Rucker, Alabama,
1942. Nos EUA, na década de 1930,
o surgimento na Europa das ideologias fascista e nazista foi acompanhado com
patente entusiamo pelas organizações herdeiras dos Confederados, as quais não
se coibiam de levar a efeito grandes comícios de propaganda, como o célebre rally de 20 de Fevereiro de
1939, no Madison Square Garden, de Nova Iorque. Comício nazi nos EUA (década de
1930) Comício nazi no Madison Square Garden, de Nova Iorque, em 20-02-1939 Quando, em 1979, sendo então
capitão, cheguei a Fort Benning para frequentar o Infantry Officer Advanced
Course, não tardei a aperceber-me de como estava viva, naquele
Estado do Sul, a memória da Guerra Civil, e de como eram exaltadas algumas das
suas figuras militares mais notáveis, com destaque para a do general Lee. Experimentei mesmo um momento de alguma emoção,
durante um evento social no Clube de Oficiais, quando, encontrando-me em
uniforme n.º 1, fui abordado por uma senhora, professora na Universidade de
Columbus, Ga., que fez questão de conversar comigo durante largos minutos. A
certa altura, percebi que estava prestes a dar a conversa por concluída.
Disse-me, então, já com os olhos humedecidos, que viera falar comigo porque
o meu uniforme tinha a mesma cor cinzenta dos uniformes do Exército
Confederado, o que a deixara emocionada. Até os três galões
representativos do posto de capitão eram iguais às insígnias do 5 mesmo posto
nos uniformes confederados. Despediu-se, deixando-me a tentar perceber bem
o significado daquele inesperado encontro com a história. Recordo-me
perfeitamente de ter feito um juízo sobre a magnanimidade dos vencedores para
com os vencidos. A
ideia da cicatrização da ferida e do reforço da coesão nacional era algo que
aceitava sem dificuldade. Só muitos anos depois me apercebi de que esse tipo de
raciocínio assemelhava-se à condescendência
dos Aliados perante a Alemanha vencida em 1945, mas que a derrota dos
Confederados fizera deles os Alemãs derrotados em 1918. Isto é, havia uma parte importante do povo americano
que não se conformava com a derrota de 1865 e que estava empenhadíssima em
prosseguir a luta pela causa da supremacia branca. Devo acrescentar que conheci diversos americanos
que assim pensavam. Eram pessoas muito simpáticas, não escondiam os seus
preconceitos raciais e, para minha enorme surpresa, diziam-se cristãos e
frequentavam igrejas. Cá em Portugal também há pessoas assim, diga-se. O
retorno dos Estados do Sul à União, conseguido pela força das armas, não logrou
erradicar o sentimento de pertença a essa “lost cause” (causa perdida) que
ainda hoje alimenta a cultura sulista da sociedade americana. Com
a radicalização do Partido Republicano, esse sentimento, que era cultivado
especialmente nos Estados do Sul, galgou as fronteiras estaduais e espalhou-se
por todo o território dos EUA. Nas manifestações de carácter político que hoje
são associáveis ao presidente Trump, não
é raro ver bandeiras dos Confederados,
mesmo em Estados do Norte. A
“lost cause” tudo tem feito, como os nazis alemães, para vingar a derrota de
1865.
EUA – FOTO recente
Trump, tendo alcançado o poder, como Hitler, por via democrática, procurou ir reduzindo a sua
subordinação aos desígnios da Constituição dos EUA, contando com um Partido
sucessivamente amedrontado pela violência dos seus tweets e pronto a ir
diminuindo as suas características de actor político de obediência democrática.
Ainda a obra de iliberalização da República não estava
concluída quando a roda da fortuna começou a girar contra os novos
“confederados”. Primeiro, o surto pandémico do Covid-19 tratou de pôr a nu a
incompetência do novo regime; logo depois, a morte de George Floyd, difundida
sob a forma de imagens irrebatíveis, lançou a América numa revolta de
inesperadas dimensões. O articulista Eugene Robinson, do Washington Post, ao
dissertar sobre a actual situação nos EUA e a persistente identificação de
Trump com os suprematistas brancos (very fine people), foi mesmo ao ponto de
afirmar, no título do seu texto de 11 de Junho, que “Trump poderia passar à história como o último presidente da Confederação (1),
expressão que revela até que ponto é adequado considerar que está em curso uma
2.ª Guerra Civil Americana. O pior,
para os sulistas, é que o Exército da União tem vindo a demonstrar,
através dos seus chefes actuais e de oficiais-generais na reserva ou na
reforma, que continuam fiéis à Constituição e aos desígnios do seu uniforme azul,
e que não pensam em mudar para cinzento.
Em clara oposição à opinião do seu comandante-chefe,
os mais altos responsáveis do Pentágono encaram mesmo com naturalidade que
sejam mudados os nomes das bases militares acima referidas e banidas das
unidades militares as bandeiras confederadas. A manutenção das estátuas dos
confederados no National Statuary Hall está, igualmente, a ser considerada. Todas
estas réplicas das forças democráticas americanas constituem actos de uma
firmeza nunca dantes verificada quando de anteriores crises de teor racial. Perante a correlação de forças que se vai
prefigurando, estamos a presenciar uma evolução extraordinariamente importante
da história americana, com seguros reflexos na evolução política do mundo
ocidental. É isso que
se pode concluir do citado texto de Eugene
Robinson, quando
refere: “Devia ter acontecido há 155 anos, quando Robert E. Lee se
rendeu a Ulysses Grant em Appomattox, mas talvez – só talvez – a Guerra Civil
esteja, finalmente, a terminar”.
David Martelo
– Junho de 2020
1 Trump might go down in history as the last president of the
Confederacy,
https://www.washingtonpost.com/opinions/trump-might-go-down-in-history-as-the-last-president-of-theconfederacy/2020/06/11/590194e2-ac13-11ea-94d2-d7bc43b26bf9_story.html
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