quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Quando se pensa

na obscenidade – e obscuridade - de tantas mortes, resultantes da crueldade das guerras, onde se é carne para canhão, quer atirados os corpos dos militares para valas comuns, ou espalhados pelos campos, quer sufocadas as gentes traiçoeiramente em câmaras de gás, achamos que este tempo absurdo, apesar do pavor e do horror em que se vive, de medo e atrocidade causados por um vírus invisível, todavia, não se compara com esses outros horrores que têm pela frente o ódio de outros homens, e sem espaço para se escrever belas palavras de um rendilhado de protesto sensível, como requiem de beleza que àqueles outros escapou. Por isso o texto de Maria João Avillez, sendo belo nesse seu desabafo dolorido, nos soa um pouco a quadro maneirista, traçado em relativa quietude, apesar do esgotamento de médicos e enfermeiros para salvar da morte, numa dedicação de amor pelo próximo, quantas vezes bem-sucedida, mau grado o esgotamento de meios para a dignidade das despedidas ou dos enterramentos. De resto, a morte é sempre obscena, embora necessária, sabemo-lo todos bem, na revolta inútil, quantas vezes a preferir a obscuridade modesta e solitária de um passamento sem espectáculo.

Morrer assim /premium

Não se passa incólume pelo heroísmo, testemunhá-lo confere pesada responsabilidade. Como perceber que bem vistas as coisas, a santidade está afinal mais vezes do que se pensa, ao alcance da mão.

MARIA JOÃO AVILLEZ

OBSERVADOR, 17 fev 2021

1. Que o corpo “era entregue no sábado”, era quando podia ser. O Nuno tinha morrido na quarta feira de manhã, num hospital. Sozinho. É assim que se morre hoje, um anonimato gelado que nos torna o gesto impotente e seca a alma. Erguendo fronteiras subitamente intransponíveis entre nós e a irremediabilidade da morte. Partidas brutais que abastecem a fome das estatísticas. O Nuno era meu cunhado, o mundo gostava dele e queria chorá-lo. Morreu num hospital público mas nunca se interiorizará o suficiente o quanto os “familiares” do cortejo fúnebre das “fatalidades” ficarão a dever à generosidade atenta de uma enfermeira, um auxiliar, uma médica, que conseguem, no meio do incêndio, agarrar num telefone e murmurar “se quiserem vir despedir-se, é melhor ser hoje”. Nunca nem de longe nem de perto, se agradecerá o suficiente a esses interlocutores sem rosto oferecerem-nos o podermos guardar o sorriso desmaiado, um toque de mãos, o último olhar de alguém. Breve raio de sol por entre o extenuante, incerto, infindável nevoeiro dos dias. Tão denso que já não há ninguém que não traga consigo o luto de um familiar que partiu, por Covid ou não, tanto faz. Contará porventura bem mais a trágica circunstância de morrer hoje. Assim como se morre. Em tempos feitos deste nevoeiro.

2. Passaram-se quatro longos, despidos dias e chegou um caixão. O do Nuno. Foi “quando pôde ser”. O segundo acto desta coreografia de desconhecida impiedade também nos privou de quase tudo, o cerco da pandemia roubou-nos a morte feita da proximidade com que a conhecíamos e celebrávamos.

É quase a tactear e quase semi-clandestinamente que se entra agora numa igreja ou se pisa o chão de uma capela mortuária que muitas vezes mal conhecemos ou mesmo onde nunca estivemos. Mas vamos. Vamos porque é de “lá” que mesmo tacteando nos pode, mesmo que apenas a alguns de nós, de nós, vir o consolo, a palavra inspirada de um sacerdote, o eco de um cântico, o toque do sagrado sobre o sentido da perda, a infinita possibilidade da renovação. E quem sabe, outros encontrarão na paz silenciosa de uma igreja o melhor lugar para a despedida

A morte sempre me parou a vida, pondo-me automaticamente em sentido. Nunca a disfarcei ou lhe virei costas, nunca fui capaz de fazer de conta. Sempre a revesti dos seus rituais, que eram – são – para mim o inseparável reconhecimento da inteira dignidade que me merece alguém que se despede para não voltar. O luto, a perda, a pena, necessitam de instrumentos porque o combate é demasiado desigual. É preciso partilhar lágrimas e abraços, murmúrios e preces, a dor e o indizível. São precisos afagos e gente a nossa volta para os dar, a partida de quem amamos interpela um choro comum. E não confinado na superfície solitária de um écran de computador. Haverá mais derisório que estar morto “on line”?

3. “Trago em mim uma camada de mortos, só não sei até que profundidade” e há muito que ando às voltas com esta frase de Raul Brandão e sabe Deus com que legitimidade e autoridade a tenho escrito e dito. Carrego também eu essa “camada” comigo, não sabendo quantos mortos conto já entre os meus, os de sangue, ou os do coração, que é o outro nome dado aos amigos-mais-que-família. Não posso saber porque são incontáveis os que não deviam ter partido e partiram. E os que não podiam ter-se despedido e se despediram.

4. A Clara também não podia partir mas partiu e também por estes mesmos dias. Ela não sabe mas raríssimas vezes me foi dado testemunhar de tão de perto, tão concretamente, tão fisicamente o heroísmo. Ficará espantada com este meu escrito ela que era um cipreste, não lhe ocorrendo nunca nem ao de leve apiedar-se com o seu tão estranho destino. Nem saberia como havia de o fazer, os ciprestes não se vergam.

A minha mãe passou por uma experiência limite nestes últimos meses, sem nunca se queixar, sem deixar que a vissem menos bem e até dando força a outros, como a mim próprio. Só em hospitais esteve mais que cem dias, completamente isolada desde Junho, a ser vista por pessoas vestidas de astronautas… E no quarto do Curry Cabral arranjava-se e punha a cabeleira para participar em reuniões diariamente sem denunciar onde estava. Nunca perdeu o sentido crítico, nem o humor. Nunca desistiu. “Os ciprestes também nunca desistem de si próprios”, disse eu ao seu filho.

Não que eu fosse das suas amigas mais próximas mas que importância? Na impossibilidade de a poder ver, curar, salvar, levar para casa ou sequer consolá-la, tinha-me ocorrido no verão passado estimular a sua vivíssima veia criativa: porque não escrever aqui mesmo para o Observador a terrível experiência por que passava, desafiava eu ao telemóvel? Uma experiência, ou melhor dizendo, uma travessia, que ela fazia daquela forma aparentemente tão como dizer, bem-disposta, risonha, coloquial, enérgica e afinal de contas simplesmente heróica? Um calvário que a Clara determinou ser vivido segundo um só mandamento: o sofrimento era só dela, nem um sinal exterior dele por ténue que fosse devia escorrer para seus filhos. (Aflitos e já tão magoados pela morte do pai, ocorrida há não muito tempo e após também dezenas e dezenas de dias em cuidados intensivos devido á bactéria assassina que o havia de vencer.)

Um dia a Clara mandou-me um esboço de um texto onde a asa da gratidão e a do humor voavam ambas sobre as palavras que escrevera. Gratidão pelas pessoas que cuidavam dela e a quem ela por vezes “pedia que a abraçassem mesmo vestidas de astronautas”; e o humor com que pintava as piores situações transformando-as em divertidas anedotas. Concordámos as duas que o texto que ela mandara, dada a experiência que relatava, merecia maior desenvolvimento e justificava mais detalhe mercê da sua própria invulgaridade. Depois “se veria”, e porque havíamos de achar uma e outra que não tínhamos esse tempo? Não tivemos.

“Muitos são os chamados e poucos os escolhidos”. A Clara foi escolhida.

5. O heroísmo nunca é um acaso, não se passa incólume por ele, o facto de o testemunharmos confere-nos pesada responsabilidade. Como por exemplo a de perceber que bem vistas as coisas, a santidade está afinal mais vezes do que se pensa, ao alcance da mão.

Querida Clara fico a dever-lhe o ter-me explicado tão bem isto.

6. Mesmo à hora de entregar este texto chega-me a notícia da morte do Luís Salgado Matos. Também sozinho, também num hospital. Um grande, grande intelectual, amante, praticante e entendido na arte da política, sociólogo respeitado, autor reputado. Foi para mim um cúmplice antes do mais e não direi isto de muitos. Um amigo “daqueles”; um colega intermitente de uma tertúlia radiofónica de bom proveito e boa memória “A Prova dos Quatro” na Renascença; o melhor dos companheiros na histórica viagem de Estado (alguém um dia deveria contá-la tal e qual ela foi) do então Presidente Soares (também ele de tão boa memória) à ainda União Soviética; um comensal mais-que-frequente do Café do Chiado quando por lá oficiavam os Freitas da Costa. E onde o Luís, personagem sui-generis e brilhantíssimo, arqui-imprevisível, desconcertante e meio louco, nos desafiava com pontos de vista inesperados, atirando para cima da mesa polémicas diversas e discussões incandescentes, num fio de conversa que nunca acabava de se desenrolar. Quase madrugada não havia mais remédio do que lembrar-lhe que era “louco” e partir dali para fora. Recorro intencionalmente ao lado solar das coisas e da vida para me congratular hoje com o que partilhámos ontem. Muitas coisas, justamente. Daqui lhe agradeço. A hora é de vésperas, a recordação é um aleluia.

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COMENTÁRIOS:

Gil Lourenço: Um texto muito bonito. Intimo e triste, sobre os nossos mortos. Mas, não sei porquê, também com uma enorme esperança.

Salvador Machaz: Trago em mim uma camada de mortos, só não sei até que profundidade" Raul Brandão...Esta frase é de uma interioridade, e verdade, que dificilmente se converte em palavras.

Maria Cordes: Maria João, remeta-se a estes temas, solidão, morte, amizade, almas. Deixe os outros, espumas inglórias, que o tempo vai tornar pó. São estes que nos consolam, e eventualmente nos ajudam a suportar, o insuportável. Porque a face maligna do que vivenciamos, são as partidas clandestinas. A despedida, os lutos e ritos, as lágrimas partilhadas. A ausência. A ser marcados, como com ferrete. Não, não  vamos poder ultrapassar. 

Graciete Madeira: Belo e comovente texto.

António Lamas: Que belo texto. Que melhor despedida poderiam ter os entes queridos. Agradeço a partilha que faz connosco da sua dor e perplexidade dos tempos em que vivemos 

Luís Martins: Perante um texto assim, só o silêncio tem valor.

Luís Pombo: Maria João, obrigado por este tão comovente como vibrante texto. Poucas, ou nenhuma, vez vi traduzidos e explicados os meus mais profundos e intensos pensamentos sobre esta dualidade de sentimentos, a morte e a despedida. Só por isto, os meus agradecimentos. Texto LINDO.

Vasco Bastos: Belíssimo e brilhante texto da D. Maria João Avillez. Lamento muito a sua perda familiar e as outras que não sendo família são quase família, o que vale o mesmo. A semana passada reagi aqui com rudeza verbal ao seu texto político e lamentei a falta que me faziam os seus texto de antes da geringonça e da troika. Por motivos dramáticos, reencontro hoje a leitura com que me deliciou durante anos. Não por acaso, reli a semana passada o seu brilhante livro sobre Francisco Sá Carneiro (Solidão e Poder) e reconfirmei o seu talento de contadora de histórias de vidas e das pessoas que as viveram. Tenho pena que a política nos distancie tanto e que se tenha deixado amargurar tanto pelos últimos anos de uma geringonça que eu também não apoio. Peço desculpa por algum exagero verbal do meu último comentário. Mantenho por si um enorme respeito enquanto jornalista e cidadã. E, por favor, continue a escrever e a descrever-nos. Obrigado! Vasco Bastos

bento guerra: A morte é agora uma passagem.um ponto na estatística.

Maria Nunes: Maria João Avilez, obrigada por este comovente e belíssimo texto.

André Ondine: Lamento a sua dor. Lamento estarmos a passar por isto. As pessoas que lhe são queridas que refere neste texto, bem como outras que passaram e passam pela mesma solidão num momento limite certamente que mereciam mais, muito mais. Estamos a falhar-nos, de facto.

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